Numa tarde chuvosa, recebo Raul, olhos tristonhos e fisionomia carregada. Não esperou nenhum comentário meu e logo foi informando:
— A Igreja está fora. O juiz não pronunciou a ré, argumentando que Aristides não estava investido de suas funções religiosas. Estamos sozinhos, navegando num barco furado.
Notei que a reação de ambos deveria ter sido eufórica e pus em evidência o sentimento:
— Pelo menos, não se acusou Luís de pai da criança. No entanto, estamos cabisbaixos, como se, no íntimo, esperássemos ver Orlanda recebendo os três mínimos da arquidiocese.
— Esse dinheiro já estamos providenciando e não deve causar problema. O que não acho justo é ter o clero apressado a manifestação do tribunal. Encerrada essa questão, ficamos à deriva no mar das probabilidades.
Fiquei meio aturdido com a enigmática afirmação de Raul. Percebeu ele o meu ar interrogativo mas a emenda foi pior que o soneto:
— Pense bem, Cláudio: se estamos sendo ludibriados por um advogado ardiloso, ele está firmando suas bases no fato de continuarmos a ação caritativa do Luís. É um reconhecimento de que Orlanda é nossa sobrinha.
— Você ainda tem esperança de que não seja?
— Você não?
— Raul, eu acho que a nossa família toda está torcendo pro time adversário.
— Nós estamos praticando Espiritismo, simplesmente. Trata-se de um dever cristão, baseado na crença de que Luís deve ter sua memória respeitada. Depois, vocês todos caíram de amores pela Setembrina...
— O doutor não se inclui nessa turma?
— E se ela for uma hábil aproveitadora?
— Quem não está crendo na Justiça não sou eu.
— Cláudio, querido, a Justiça já começou sua ação de maneira equivocada.
— Juro que não estou entendendo o seu ponto de vista.
— Veja bem! Eu acho Dona Iná muito simpática, inteligente e trabalhadeira. Vem cumprindo o nosso trato à risca. Mas é do mais alto interesse dela. Como é que vai reagir quando se vir elevada à categoria de pessoa ligada à nossa família?
— Importa o pensamento nosso ou o dela?
Raul sentiu que eu vinha opondo resistência às suas sugestões de repúdio à ação impetrada a favor de mais uma herdeira dos bens do falecido. Tentou safar-se pela tangente:
— Dificilmente iremos integrar a jovenzinha em nosso meio familiar. Então, vai ser muito desagradável a lembrança de que existe mais alguém a exigir de nós o afeto capenga e adventício pela via da responsabilização legal. Eu sei que a sua atitude busca, ao contrário, estimular benquerença e incentivo sentimental, pela aproximação das pessoas. Mas isso é muito perigoso, se estivermos sendo enganados. Crescerá o mal-estar e nos sentiremos como tolos, revoltados, irados, furibundos.
Naquele instante, enquanto ouvia, pus-me à disposição do plano espiritual, tendo invocado mentalmente Zabeu, para que me desse amparo, no sentido de dizer as palavras certas, sem tirar a autoridade de que se revestia o meu irmão mais velho. Sabia que os espíritos estavam ajudando a gente, porém, não acreditava que Raul estivesse em faixa vibratória adequada para a percepção intuitiva dos processos através dos quais os protetores costumam influenciar o nosso ânimo. Foi assim que me expressei:
— Pra mim, talvez seja mais fácil admitir ou aceitar a falcatrua, porque Luís era mais velho que eu. Você, sendo o primogênito, vê a família com olhos de pai, de responsável, de mentor, ainda mais por advogar a nossa causa em âmbito jurídico, apesar de ter passado a representação oficial a outro causídico. Parto do princípio de que Luís não pode ter sido enganado tão completamente. A criança não é filha dele? Isso cabe ao tribunal determinar legalmente. Mas ele a considerava preciosa ou não ajudaria a família, mesmo sabendo que o pai é Orlando.
— Deixa ver se entendi. Você está querendo dizer que Luís, apesar de tudo, estava agradecido pelos favores de Dona Setembrina, apesar de não ser o pai da criança?
— Não estou querendo dizer nada. Apenas levanto uma hipótese fundamentada no dinheiro que ele estava dando a ela. O mérito da questão não ponho em julgamento. Tanto não ponho que acatei a sugestão de Rodolfo e estou participando da coleta mensal. Vou além. Não fui eu que coloquei as cartas na mesa e levei a mulher ao centro? Com que finalidade? Criar amor pela sobrinha, o que, reconheço, está sendo frustrado, porque não tem ido com a mãe. Em todo caso, pretendo ampliar a ajuda à família, conforme plano que estou bolando e que vou passar pra vocês brevemente.
Para compreender a postura de Raul, não posso esquecer-me de dizer que tivera ele apenas um único encontro com Iná. Foi a isso que atribuí a sua exposição final:
— Veja se você não vai cair na esparrela de se envolver com a filha do outro, pensando ser sua sobrinha. Existem laços afetivos entre pai e filha que devem ser preservados. A mocinha não pode imaginar que a pessoa a quem chama de pai não o seja positivamente. Ana não lhe disse que Orlanda chamava Luís de tio, conforme informação da requerente? Reflita sobre isso.
Bem que eu quis dizer que, em lugar de um, agora ela tinha dois tios, mas refreei o impulso, para não estimular ainda mais o azedume de meu interlocutor. Simplesmente, conforme sugestão dele, refleti muito, no entanto a respeito de que o tempo reserva maravilhosas surpresas de sabedoria.
Ana Paula, quando lhe contei a conversa com Raul, deu-me incondicional razão, a ponto de estimular-me a lhe contar o projeto de auxílio a Iná que eu tinha em mente. Como que inspirado, desenvolvi amplamente o tema:
— Em primeiro lugar, acho que não podemos interromper o envio da mensalidade. Depois, temos de dar condições materiais de conforto à pequena, o que inclui uma reforma em regra do prédio e a troca da maior parte dos móveis e utensílios. No fundo do terreno, se der, podemos construir uma edícula ou barracão, onde disporemos algumas máquinas de lavar roupa e, pelo menos, uma secadora, dando início ao esquema de uma lavanderia, caso a mulher seja capaz de dar conta do negócio. Se ela quiser expandir, favoreceremos a criação de uma microempresa, para o que trabalharemos em conjunto, Raul, Maria e eu, cada qual em seu setor profissional. Pra concretização do empreendimento, haverá necessidade de colocar as crianças em escolas e creches, segundo a idade de cada um, quando precisaremos dar a ela uma ajudante pros serviços gerais.
Eu iria mais longe na exposição de meus sonhos de benfeitor, se Ana não me interrompesse:
— Você está indo ao centro na terça, na quarta e na sexta. Às quintas, lemos o evangelho. Aos domingos, sempre que pode, vai com os pequenos pra brincarem com os filhos dos outros dirigentes. Sei que você tem lido quanto livro caia em seu poder, tendo passado por mais de vinte de empréstimo da biblioteca. Como vão os negócios no depósito? Não está na hora de serem “expandidos”, pra que Lucas e Mateus, um dia, venham a receber o mesmo benefício que você e os seus irmãos mereceram do seu pai?
— Você está com ciúmes!...
— E não é natural que esteja? Ou você pensa que me esqueci da modelo do “outdoor”?
Não tendo como me sair bem, aventei uma hipótese salvadora:
— Que tal passarmos mais tempo juntos, por exemplo, você me acompanhando nos exercícios da academia?
Ela não compareceu um só dia à ginástica comigo, não obstante, oito meses depois, vestia modelos seis números menores.