Ainda sob o impacto das discussões do final de semana, uma vez que as senhoras se opuseram a que fôssemos tão benignos quanto desejávamos, abri a loja, na segunda-feira, decidido a efetuar a minha contribuição para desafogar um pouco as necessidades da nova sobrinha.
Conversava com Raimundo a respeito da deliberação caritativa do nosso grupinho espírita, quando Setembrina se fez anunciar por um dos empregados.
Discretamente, Raimundo desapareceu, permitindo que conversássemos à vontade.
Foi ela quem declarou suas intenções, sem esperar que a interpelasse:
— “Seu” Cláudio, Orlando e eu achamos que o senhor mostrou ser uma pessoa confiável. Raimundo sempre elogiou todos os membros da família e eu não posso esquecer-me da generosidade do Luís. Vou ser franca: estamos passando por terríveis necessidades...
Antecipei-me:
— Com certeza, Raimundo foi a sua casa neste fim de semana. Fale a verdade.
Ela me encarava firmemente e seus olhos tinham o condão de me abalar. Eu não podia deixar de pensar em que Luís tivera motivos muito justos para pôr-se enamorado. Mas Setembrina foi taxativa:
— Se ele tivesse ido à minha casa, eu começaria a conversa falando a respeito. Pode acreditar.
— E que é que a Dona Setembrina propõe?
— Detesto esse nome. Pode me chamar de Iná, como todo mundo.
— Pois bem, Dona Iná, o que é que a senhora veio pedir-me?
— Em nome de Luís, vim pedir que os tios de Orlanda continuem a dar a mesada. Prometo que devolverei o dinheiro, quando for possível.
— A senhora quer dizer: quando for Orlanda incluída no inventário?
— Eu sei que tudo isso é muito “chato”, muito aborrecido, mas que mais podemos fazer, se os padres se recusam a adiantar os pagamentos?
— Eu acho que daquele mato não sai coelho. O seu advogado...
— Na verdade, o advogado foi o Orlando quem arrumou, quando precisou se defender. Vocês já devem saber que ele passou uns tempos preso...
Não sabíamos, mas disfarcei:
— Soubemos que ele desapareceu por alguns dias.
— Alguns meses. Vim pra falar a verdade e não vou esconder nada. Esteve preso porque se meteu numa briga...
— Não estou pedindo pra me contar a história de sua vida. A bem da verdade, decidimos que vamos lhe entregar todo mês a mesma quantia que Luís lhes passava.
— Deus lhe pague!
A mulher queria me beijar as mãos mas eu as recolhi e afirmei:
— Não vamos exigir nenhuma devolução, mas vamos cessar a entrega do dinheiro, assim que o juiz decidir sobre o que deve ser feito.
Só aí é que vi lágrimas naqueles olhos.
Mas precisava fazer uma cobrança:
— Como a senhora sabe, nós somos kardecistas. Você sabe a diferença entre a minha linha doutrinária e o que se passa nas tendas da Umbanda?
— Sei muito pouca coisa. Sei que vocês fazem o bem e que, nas mesas brancas...
Não me contive:
— A cor das toalhas não importa: pode ser verde, azul ou vermelha. O serviço que se presta é que vale, é que deve ser imaculado, puro. Mas o que eu queria era impor uma condição, como se faz em qualquer centro que se preza. Lá onde vocês vão buscar a sopa, o macarrão, a carne, o leite e o pão, não pedem pra vocês ouvirem umas preleções?
Iná, sem fazer menção de se surpreender, por certo por imaginar que Raimundo havia contado tudo, confirmou:
— Eu não tenho tempo pra ir no centro, mas Orlando foi várias vezes. Se não for, a gente fica sem a comida.
— Quem disse isso? Não é verdade. A condição é facultativa. Mas o pessoal gosta de mostrar que o centro espírita está fundamentado em idéias muito profundas e verdadeiras.
Notei que a reação dela foi de descrédito mas não insisti. E voltei à carga:
— Eu gostaria muito de ver a sua família toda reunida, uma vez por semana, no centro que nós freqüentamos, que fica destes lados da cidade. Pra que não diga que é impossível, eu sei que o seu marido está desempregado. E também posso dar o dinheiro da condução.
A conseqüência imediata foi que precisamos mudar das terças para as quintas o dia do “evangelho no lar”, porque não iria eu deixar de fiscalizar a presença deles nos dias de palestras.
No dia seguinte, pois, lá estava eu aguardando o pessoal. Para meu desapontamento, Iná chegou sozinha e logo foi explicando:
— Por favor, “Seu” Cláudio, compreenda que eu não mando na vontade de Orlando. Ele se recusou a me acompanhar, dizendo que eu estava mendigando e outras bobagens que passaram pela cabeça dele. Então, deixei Orlanda tomando conta dos menores e vim de fugida, com muita preocupação. A minha vizinha ficou de dar uma olhada de vez em quando nas crianças. O senhor não acha que elas iam causar problemas aqui, porque conversam e choram?
Precisei reconhecer que Iná preparara o discurso com razoáveis argumentos. Contrariou-me o fato de não ver Orlanda e passou-me pela mente que, desse jeito, não iria afeiçoar-me à sobrinha. Diante, porém, do acontecimento irreversível, precisei ceder:
— Mas a senhora vai ficar até o fim dos trabalhos?
— Vim pra isso.
Era cedo e deu tempo de apresentar Raspace e Rodolfo, tendo eu feito questão de referir, em particular, que era este quem iria participar com um terço da contribuição. Aliás, preciso dizer que a mulher se apresentou dignamente, com roupa modesta mas limpa, sem outra bijuteria além de uns brincos discretos e de uma gargantilha barata. Não trazia aliança ou anel e o relógio no pulso não chamava a atenção.
Naquela noite, Rodolfo se estendeu sobre a necessidade de as pessoas se entenderem enquanto vivas, ressaltando as palavras de Jesus, quando recomendou ao povo que se reconciliasse com os inimigos. Falou por mais de quarenta minutos e terminou assinalando a recomendação evangélica do amor aos inimigos.
Como Ana Paula não quis encontrar-se com a figura que estava usurpando um lugar na família, pude trocar algumas idéias com Iná na fila do passe. Foi quando fiquei sabendo que Orlando não estava bebendo mais, com certeza por estar sendo obrigado às palestras no centro espírita. É claro que desconfiei de que a infeliz estava mentindo, mas, naquele ambiente sagrado, a todo momento me surpreendia trocando idéias com os meus protetores, como se eles estivessem interessados em orientar os meus pensamentos para a exposição que terminara de ouvir. O que me impressionou nas expressões que Iná utilizou foi a mansidão, a paz, a calma, a segurança com que se manifestava, muito diferente da sofreguidão do dia anterior. Perguntei-lhe a respeito do que estava sentindo naquele recinto e ela correspondeu, confirmando que se encontrava muito bem, confiante em que a vida da família iria tranqüilizar de vez.
Como logo chegou a nossa vez de receber as vibrações espirituais na saleta reservada, tive tempo de propor-lhe que aceitasse a minha oferta de condução. Foi assim que, pela primeira vez, conduzi a moça.
No caminho, matei uma curiosidade:
— Qual era a diferença de idade sua de Luís?
— Ele era quase sete meses mais velho.
— Isto quer dizer que você é seis anos mais velha do que eu.
— Estou com trinta e cinco.
— Eu, com vinte e nove.
— Então, o senhor trate de me respeitar...
— E a senhora passe a me tratar por você.
Quando contei a conversa a Ana Paula, a reação dela foi imediata:
— Terça-feira que vem, nós vamos juntos ao centro. A tia Eulália está reclamando que Lucas e Mateus estão crescendo e logo não vão fazer caso de ficar com ela, como os da Odete e também os de Maria. Você está sabendo que o Luisinho tem ficado sob os cuidados de uma babá especializada, enfermeira formada, com diploma universitário?
Desejei brincar com o que me pareceu um ciúme fora de propósito, mas a presença das formas arredondadas de Ana e a lembrança da figura esguia de Iná me preveniram quanto ao encontro delineado.
Preciso avançar nesta narrativa senão não termino mais. O quadro que prenunciava ventos e tempestades se deixou colorir com os tons do arco-íris, porquanto Aninha, tanto quanto acontecera comigo, se encantou com a imagem de Setembrina.
No dia da reunião, talvez para impedir que eu me aproximasse da estranha, Ana puxou-a para si, impediu-a de ouvir a conferência e tiveram uma longa conversa a portas fechadas no gabinete de Raspace. Se eu tentasse reproduzir o que disseram, iria ter de me fiar nas parcas informações de minha mulher. Mas a conseqüência mais significativa foi o seu resultado prático, para mim admirável. Disse-me ela:
— Iná precisa muito que a gente lhe dê apoio financeiro. O emprego que Rodolfo ofereceu a Orlando, que não tem qualificação profissional...
— Estou sabendo que é pedreiro, meia-colher ou coisa semelhante.
— Mas não tem saúde. Vai precisar passar por exames médicos rigorosos. Pelo que ela falou, são vermes. Aliás, eu acho que as crianças também deviam merecer a mesma atenção. Vou conversar com Odete e iremos providenciar. Pra que servem os médicos do centro, afinal?
— Você ia falando do emprego...
— Pois é. O cara falou que ia pensar a respeito, porque não sabia se o cargo de ajudante geral na fábrica não ia exigir que carregasse peso, o que ele acha que vai ser impossível.
— Se não der certo com Rodolfo, vou colocá-lo em alguma obra, que não faltam empreiteiros reconhecidos.
Em pouco mais de um mês, estavam as crianças medicadas, Orlando se aplicava em cumprir as tarefas na fábrica e Iná manifestou o desejo de conhecer Maria.
— Com que objetivo? — lembro-me de haver perguntado a Aninha.
— Ela quer tirar a má impressão que causou, mesmo porque, depois que Luís se casou, nunca mais mantiveram relações, além do envio do dinheiro. Ela quer que Maria saiba que nunca deu em cima do seu irmão e que não aceita ser chamada de “a outra”.
— É justo mas... e os sentimentos de nossa cunhada?
— Entendo que a raiva tenha passado. Você não tem reparado que ela está se dando muito bem com Rodolfo?
— Um erro não justifica outro...
— Muito mal empregado esse dito popular. Acho que você foi impreciso.; mais ainda: injusto e preconceituoso.
Gostava quando Aninha me devolvia aos trilhos da ponderação e do equilíbrio. Muitas vezes — não foi o caso naquela hora — eu provocava esse tipo de reação, para chamar a conversa para a área moral e doutrinária do Espiritismo.
A observação dela me facultou, agora sim, uma provocação proposital:
— É bom que se entendam aqui mesmo, porque, segundo sei e tenho lido nas obras espíritas, as mulheres e os homens, em diferentes encarnações, se casam ou se unem a diversas pessoas, o que, no plano espiritual, deve causar uma confusão tremenda.
— Veja lá o que você tem pra dizer!
— Pouca coisa. Apenas eu gostaria de conhecer os espíritos dos seus antigos maridos.
Ana, contudo, percebendo que eu gracejava, entrou na minha:
— Os espíritos dos maridos e das esposas, como quando fui homem na Itália e no Japão, em duas encarnações seguidas, conforme pude ler nos arcanos de minha memória, por regressão mediunicamente induzida.
Era mentira o fato em si mas me deu o que pensar a respeito. Essa, porém, é história que vai ficar para outro livro, que pretendo um dia escrever.
Não querendo envolver outras pessoas, Maria, tendo concordado com o encontro, foi ao centro e, de novo, a porta do escritório de Raspace se fechou na minha cara. Contudo, lá entraram Odete e Aninha também, de sorte que o que se passou naquele ambiente resguardado transpirou, para que Raul, eu, Rodolfo e Orlando tomássemos conhecimento.
Foi naquela semana que se decidiu a questão da indenização pleiteada por Setembrina junto à Igreja.