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Erotico-->12. DUAS SEMANAS DEPOIS -- 04/07/2003 - 08:00 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Procurarei um modo menos brusco de trazer as notícias do trágico acidente em que se transformou o abalroamento. Devo dizer que gostaria de amenizar o desfecho do episódio, mas pareceria insensível se, gracejando, dissesse que Maria pôs luto e que Aristides não deixou viúva inconsolável apenas porque era celibatário.

Em consideração aos leitores mais rigorosos com a trama, advirto que não estou retirando duas personagens para efeito da economia do enredo, porque o que pesa nas obras espíritas é o fato de que a morte apenas oculta, sem jamais eliminar.

O que pode comover é o desperdício das vidas jovens, porque houve lágrimas a serem enxutas e filhos despojados de pai amoroso e preocupado. Também Maria teve de assumir a responsabilidade dos negócios, para o que passou a ter a ajuda do Raul, enquanto ia aprendendo comigo os segredos da administração. Inteligente, nunca perdeu o ritmo empreendedor que demonstrou possuir desde o início. Aliás, sem julgar as cicatrizes que lhe ficaram no coração, a da face quase não se percebia, especialmente quando a maquilagem se fazia especial.

Resta explicar as causas físicas da morte, tendo Luís passado algumas horas cônscio, alegre até. Acontece que se manifestou um edema ou algo semelhante, fenômeno que qualquer facultativo médico poderá elucidar. Quanto a mim, chorei bastante a perda do mano querido e busquei compreender o divino sinal, porque, na ocasião, tudo começava a parecer-me lógico dentro do esquema irreversível da lei de causa e efeito.

Certamente, ouvi, entre outras conjeturas, que a morte de Luís estava programada, porque seu avanço espiritual não lhe diagnosticava permanência na carne muito extensa. Quem pensava desse modo me viu formalmente agradecido, embora, no seio de meu ser, nas profundezas de minha alma, plantada estivesse a sementinha da dúvida quanto a tanta simplicidade de fundamentação doutrinária.

Houve dois procedimentos mentais preponderantes durante as duas semanas que se seguiram.

O primeiro, mais agudo e extraordinariamente emotivo, concentrava-se na idéia de que o Espiritismo havia adentrado as nossas existências em conjunto com os problemas da vida e da morte. Quando me recordava do passamento de meus pais, isso tinha valor histórico. Era como se tivesse acontecido a outra pessoa. Era o mesmo que raciocinar sobre o falecimento dos pais de Ana. A morte de Luís surpreendeu-nos em plena efervescência filosófica, apanhando-nos “de calças curtas” durante o abandono da Igreja Católica.

O segundo, relacionado ao anterior, mas bem mais tênue quanto aos sentimentos envolvidos, dizia respeito à perda do amigo e confessor, tanto que, em momento algum, levantamos a voz para acusar a culpa, que era flagrante, da imprevidência do sacerdote—motorista. É claro que imaginávamos o que estaria levando o padre a dirigir tão apressado, mas, aconselhados pelas palavras evangélicas, não emitíamos juízo de valor, crendo que seríamos medidos pela mesma medida com que medíssemos.

Compareceu a família à realização da missa de sétimo dia encomendada pela diocese, agradecendo muito que fosse sagrada em memória dos dois. Não nos importamos em ajoelhar e em nos persignarmos. Recusamos a confissão e a comunhão, mas todos umedecemos os lenços na hora da pregação do monsenhor.

Sem o intuito de causar distúrbios religiosos, preciso confirmar a presença no templo dos amigos do centro espírita, estes, sim, pelo que me foi dado observar, conservando a dignidade de uma atitude eqüidistante entre a amizade confortadora e a subserviência ao serviço eclesiástico.

No dia anterior ao da missa, a reunião da quarta-feira não nos agasalhou. Em casa, na terça, recebemos Raul e Odete, mais Maria, quando efetuamos a leitura de um trecho de O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO. Talvez tivesse alguma observação importante para extrair dos ânimos, porém, tão abatidos estávamos que o máximo que posso afiançar, sem medo de incorrer em imprecisão, é que Raul se supunha causador indireto da morte de Luís.

No entanto, a vida prossegue e a gente não tem como não abrir as portas do comércio, porque servimos ao público, sob as leis comunitárias. Também o sofrimento não pode prevalecer para sempre, senão teríamos de chorar a crucificação do Cristo pela eternidade. O sangue corre pelas veias, exigindo que se tempere de oxigênio. A respiração pode ficar irregular e o peito constrangido pela ansiedade subjetiva de querer volver o tempo para um instante anterior à desgraça, contudo, aos poucos, as mentes se reequilibram e as exigências sociais impelem à ação.

Sei que a abertura deste segundo ato de minhas recordações está fortemente impregnada das impressões do luto e das reflexões filosóficas posteriores, todavia, mesmo assim, empenho-me em fazê-las o mais fidedignas possíveis, em relação às verdades que venho assimilando dentro do centro espírita.

Para aliviar o peso desta introdução, deveria descrever a reunião seguinte, duas semanas depois. Entretanto, embora hesite em volver a outro problema que enfrentamos, vou sumariar, para ilustração, um acontecimento, que precedeu a nossa ida ao centro.

Correu à boca pequena que o Padre Aristides não estava dirigindo o carro, tendo o motorista verdadeiro fugido. Se o povo se desse ao trabalho de investigar os relatórios oficiais, iria verificar que o nome civil do sacerdote estava consignado como causador do acidente. Mas o pessoal da igreja descarregou sua frustração no Luís, achando que havia sido ele quem tinha provocado a morte de ambos. Não sei se por causa de estarmos freqüentando o centro, se por sermos da família do indigitado, sofremos a desdita de termos muitos rostos virados à nossa passagem. Na missa, quando entramos, escutamos um zunzum que atribuímos à curiosidade. No entanto, quando recebemos as condolências apenas dos mais íntimos e dos representantes oficiais do clero, ficou evidenciado, principalmente porque os familiares de Aristides se viram cercados, que estávamos sendo rejeitados pelos fiéis.

Feito o registro, passo a descrever o clima da sessão de estudos. Começo dizendo que estavam todos presentes, exceção feita de Joana, conforme nos explicou Rosa Maria:

— Tendo em vista a faculdade mediúnica da confreira, julgamos que seria melhor que fosse imediatamente transferida pra classe mais adiantada, o que se deu já na reunião anterior. Pra que saibam como transcorreu, vou pedir a alguém pra que faça um resumo. O que eu desejo ressaltar é que dedicamos boa parte do tempo pra orar em favor de pronto desvelamento da consciência do seu irmão e do padre.

Prontificou-se Jurandir:

— Antes de contar como foi a última reunião, devo referir duas ou três ponderações que se fizeram depois que vocês saíram, no fatídico dia do desastre. É importante para que entendam os pontos principais da última sessão. Em primeiro lugar, Joana recusou-se a admitir que tivesse ouvido o nome do filho do “Seu” Rui, embora todos tivéssemos dito que sabíamos que o nome dele era Diogo. Mas isso não teria nenhuma conseqüência, não fosse pelas afirmações dos pais, que podem ratificar agora, segundo as quais o filho nada sabia de Espiritismo e nunca se dera à leitura dos Evangelhos. Vocês devem estar lembrados daquilo que o espírito que se manifestou disse a respeito. Por outro lado, o nível da linguagem e o desenvolvimento das idéias demonstravam uma entidade bem dotada de intelecto, o que supusemos que não fosse o caso do Diogo, conforme concordaram os pais. Então, suspeitamos que se tratava de um guia ou benfeitor, com o intuito de colocar as coisas em seus devidos lugares, para que ninguém ficasse levantando hipóteses desairosas, deselegantes, agressivas, contra o amigo Cláudio ou contra os padres de modo geral. Foi assim que acabou a discussão.

Rosa Maria aproveitou o momento de tomada de fôlego de Jurandir, para dizer o que pensava a respeito da manifestação do rapaz:

— Vejo que você esteve pensando bastante sobre todos os fatos aqui ocorridos. Aplaudo a sua capacidade de expor e acho que não sou somente eu.

Através de diversos gestos de apoio, percebeu-se que Jurandir havia conquistado a simpatia do auditório.

Foi ele quem prosseguiu:

— Na última semana, com a morte do seu irmão e do padre Aristides, a turma não estava muito animada para continuar examinando a fala do espírito, contudo, a nossa instrutora, muito sagaz, inquiriu se havia alguém que estava duvidando que se tratava de mediunidade autêntica. Vocês se lembram de que, antes de se retirarem, ela havia pedido apenas a opinião dos que concordavam em atribuir o fenômeno ao etéreo. Todos quiseram externar a sua opinião, discutimos bastante e chegamos à conclusão de que o espírito que se manifestou não queria apenas falar a respeito do que aconteceu ao Diogo, mas estava tentando avisar os familiares do que se passava com o seu irmão.

Notei que Rosa estava meio inquieta, segurando com dificuldade o desejo de intervir. Jurandir é que parecia dono da situação:

— É claro que, conversa vai, conversa vem, alguém (parece que Frederico)...

— Eu mesmo!

— Certo! O Frederico propôs que falássemos a respeito das intuições que cada um teve em sua vida. Rosa concordou e começou a dizer o que ela mesma tinha experimentado nesse campo. Se vocês estiverem interessados, eu conto, de maneira breve, cada descrição.

Com medo, certamente, de ter de ouvir tudo de novo, Rosa aconselhou:

— É melhor não. Encerre falando um pouco do tema da benquerença, que foi como terminamos.

— É verdade. Se vocês cinco quiserem contar algum episódio seu, acho que a turma gostaria de ouvir, principalmente se alguém achou que estava prevenido em relação ao acidente. Foi por isso que falamos a respeito dos laços afetivos de amor e companheirismo, ou seja, levantamos a hipótese de que os entes do outro lado, sabendo que algum mal vai acontecer, vêem a necessidade de advertir aqueles a quem amam e protegem, o que eles fazem através da inspiração íntima, dentro da mente e do coração dos protegidos, ou através da comunicação mediúnica, como se deu neste grupo.

Jurandir terminou como quem encerra uma longa exposição que merecesse ser acolhida por palmas do auditório.

Sabendo da disposição de ânimo do meu irmão e da esposa de Luís, adiantei-me, porque julgava que devesse dar uma palavra a respeito de minha derradeira intervenção:

— Quero pedir desculpas ao casal de amigos, “Seu” Rui e Dona Valéria, se fui muito grosseiro quando disse que as pessoas estão na Terra pra sofrer. Na verdade, pensei bastante sobre isso e resolvi mudar um pouco de opinião. A morte de meu querido mano me abalou e eu pude aquilatar a dor dos pais com a perda do filho. Entretanto, vejam bem, o que o espírito disse deve ser a pauta de nosso procedimento, isto é, devemos unir-nos no sofrimento, amparando-nos uns aos outros, como vocês fizeram indo à missa e transmitindo-nos os seus pêsames. Por isso, agradeço em nome da família.

Frederico, que visivelmente estava emocionado, aparteou:

— Cumprimos um dever de amizade. Se a gente não tem presença na hora da necessidade, então não deve ficar ouvindo as lições do Cristo.

Se estivéssemos num grupo informal, eu teria dado um abraço no homem. Mas contentei-me em fazer-lhe um gesto de “positivo”. Prossegui:

— Creio que nenhum de nós gostaria de falar a respeito dos sinais do plano espiritual quanto aos recentes acontecimentos. Eu acho que as pessoas devem respeitar as manifestações, devem ouvir atentamente as palavras ditas pelos médiuns, mas devem também tomar muito cuidado pra não tirar conclusões apressadas, precipitadas. Quanto a ter sido ou não o filho do “Seu” Rui quem veio trazer palavras de consolação e esclarecimento, não deve ser o problema maior a ser levantado...

Não sabia que estava mexendo no vespeiro, de modo que me surpreendi com a reação da pessoa citada. Sem pedir licença, foi ele logo atropelando o que eu falava com o coração na mão:

— Pra você com certeza não interessa. Mas espere pra ouvir alguém dizendo que é o seu irmão ou o padre. Vai ver como as coisas mudam de figura.

Valéria deu outra martelada na minha fleuma:

— Vocês estavam presentes e mesmo assim não estão acreditando. Será que é preciso que ele venha mostrar as feridas, como fez Jesus com os apóstolos?

Levado o problema para o campo pessoal, voltei um olhar suplicante para o Raul, que me acudisse “na hora da necessidade”. Contudo, inesperadamente, partiu do Jurandir a palavra conciliadora:

— Estou entendendo perfeitamente a posição adotada pelo amigo Cláudio. Eu também passei por uma fase dessas quando comecei a ler a obra de Kardec. É que a gente quer manter o coração afastado das decisões da razão, exatamente como quando pedia o mestre francês em relação à fé, que para ser conforme as prescrições espíritas, tem de ser raciocinada, ou seja, fundamentada nos elementos lógicos e científicos extraídos diretamente da natureza do universo.

Rosa olhava e ouvia tudo com extrema atenção. Parecia espantar-se a cada declaração, mas não buscava pôr panos quentes, deixando que as pessoas expusessem seus pensamentos à vontade.

Raul aproveitou-se da deixa de Jurandir e acrescentou:

— É verdade, eu também estou propenso a admitir que devamos estudar muito mais antes de exercer o direito de inferir resultados doutrinários das ocorrências no plano fenomênico...

Não pôde continuar, porque Odete fez questão de interromper o jorro de conceitos formulados de maneira tão complexa, a ponto de ofuscar a simplicidade da maioria dos presentes:

— Como é que vocês querem que todos entendam o Espiritismo, se ficam empregando termos tão difíceis? Eu acho que o “Seu” Rui e a sua mulher devem estar pensando que todos estão contra eles e os sentimentos deles. Cada um deve acreditar no que bem entender, quando as palavras que foram ditas se viu que eram pra melhorar o moral de todos. Pra mim, o espírito era mesmo o Diogo, ajudado por algum protetor, porque a gente sabe que os seres em dificuldade na outra vida sempre têm quem dê suporte pra agüentarem os trancos da consciência.

Correu Jurandir com a pergunta que muitos julgavam definitiva:

— E como explicar que o Diogo tenha dito que, durante a vida, tivesse estudado Kardec e os Evangelhos?

Odete não se perturbou:

— Que vida? Não pode ter sido na penúltima?

Perguntou e aguardou que a interrogação calasse fundo na mente do auditório. Realmente, Rosa Maria deixou que o silêncio perdurasse, para a meditação provocada. Finalmente, vendo que ninguém se atrevia, Odete encerrou a sua participação naquela noite:

— O “mistério” tem segredos que não nos cabe investigar. Se estamos aqui pra aprender, não vamos querer ensinar.

Foi quando Rosa Maria julgou oportuno contribuir com a palavra oficial do centro:

— Primeiro, devo deixar bem claro que esta turma está se revelando, de longe, a que melhor se portou na discussão dos problemas espíritas. É recomendação do grupo de instrutores que, no começo, as pessoas exponham a sua maneira de pensar e de reagir às provocações de todo tipo. Vocês tiveram a vantagem de ouvir a manifestação mediúnica transmitida por intermédio da Joana. Infelizmente, passaram também por um drama pungente, daqueles que apenas raramente acontecem com grupos que se iniciam nos estudos doutrinários. Isso, de certa forma, preparou vocês pra enfrentar a realidade da vida e da morte, não do ponto de vista meramente especulativo, mas de forma plena, material, empírica, se me permitirem o termo desconhecido da maioria, que quer dizer “baseada na experiência”, sem, portanto, caráter científico. Vamos encerrar como de costume, rogando aos protetores que amparem a cada um de nós nas vibrações que emitirmos entre nós e pros que partiram pro além. Vou pedir pra Dona Alzira, se estiver disposta, pra que diga a prece conforme lhe ditar o coração, com a certeza de estar sendo inspirada pelas entidades que nos assistem. Pra próxima semana, vocês devem ler, se possível, o capítulo “Existem Espíritos?”, d’O LIVRO DOS MÉDIUNS.

Infelizmente, não sei reproduzir as belíssimas palavras da oração espontânea dita pela colega de estudos. Foi mais ou menos assim que ela se expressou:

— Querido Pai, nós lhe agradecemos muito o entendimento das lições. Sabemos que nos foram enviados mensageiros de muita luz e de muito poder, pra nos facultarem o confronto entre as idéias que tínhamos com as que vamos adquirindo dentro da doutrina espírita. Sabemos, também, que os parentes e amigos que partiram pra outra realidade estão enfrentando as dificuldades próprias da adaptação de quem foi colhido de repente pela morte. Agradecemos toda a ajuda que estão merecendo e rogamos que nos sejam enviadas, pela forma que melhor nos convier, as informações de como se encontram e de como podemos fazer pra auxiliar no despertar de cada um. Não nos falte nunca essa assistência, por mais que avancemos nos conhecimentos, porque nós sempre iremos ficar, nesta encarnação e nas próximas, bastante distanciados da conduta que Jesus pedia aos homens. Que algum espírito benfazejo fluidifique a água que está sobre a mesa. Muito obrigado. Assim seja. Graças a Deus!

Como a outra turma estava ainda reunida, ficamos a conversar em pequenos grupos.

Rui e esposa vieram em minha direção, para comovente e apertado abraço. Eu estava sem entender, quando ele esclareceu:

— Nós lamentamos muito o comentário que fizemos. Achamos que faltamos com o dever evangélico do amor ao próximo. Perdoe-nos, por favor!

Eu não tinha o que recriminar, porque havia entendido muito bem o ponto de vista de quem se vê de público censurado. Em todo caso, meio titubeante, asseverei:

— Não se preocupem. Eu vejo tudo o que se passa na reunião como alguma coisa de que posso tirar proveito. Às vezes, na hora, não chego a compreender o que eu mesmo digo, porque sou atrevido e logo vou falando a primeira coisa que me vem à cabeça. Quem tem de pedir desculpas sou eu.

Como resposta, recebi novo abraço.

Sem saber como continuar a conversa, ficamos imersos em nossos pensamentos, um pouco sem jeito. Mas a situação não se afigurava desagradável. Era como se velhos conhecidos se encontrassem sem terem sobre que falar, tão diferentes foram as suas experiências de vida. Cada um fica imaginando qual tema abordar, deixando passar o tempo em branco.

Ana se aproximou, perguntando ao casal:

— O filho de vocês deve estar recebendo bons fluidos, porque agora temos a certeza de que os protetores estão agindo, sob a supervisão das entidades superiores. Vocês não sentem assim?

Foi Valéria quem respondeu:

— Não é maravilhosa esta religião? Eu sei que o pessoal não gosta que a gente fale em religião, mas, se temos o consolo dos espíritos, não podemos ficar apenas nos conceitos, na doutrina. Temos de sentir a presença deles ao nosso redor.

Ana insistiu:

— Vocês sentem?

Valéria confirmou:

— Antes de a gente vir aqui, era como se a morte tivesse levado Diogo pra sempre. Estava enterrado no cemitério e sua alma tinha ido pro inferno, porque morreu em pecado.

Rui acentuou:

— Muitos pecados, que só a gente sabe...

Valéria retomou a linha dos pensamentos:

— A mensagem que nos deram em nome dele foi muito importante pra nos fazer acreditar que os espíritos são as almas das pessoas que viveram na Terra. Espero em Deus que vocês também consigam uma mensagem tão linda.

Nesse momento, abriu-se a porta da outra sala e os grupos se confraternizaram.

Como a nossa turminha tinha ido num carro só, despedimo-nos das pessoas e fomos para minha casa, onde tínhamos guardado o carro de Raul.

No caminho, ainda trocamos algumas idéias a respeito da reunião. Foi Maria quem deu início:

— Vocês estão tristes mas não sabem como estão as crianças. A gente vem a um centro espírita e pede a Deus coragem pra enfrentar o sofrimento. Será que as crianças também recebem, por intuição, a notícia de que o pai está bem?

Acorreu Odete, a pegar carona no assunto:

— Eles estão com onze, dez e oito anos. Devem estar meio perdidos, sem saber a quem culpar, ainda mais que falamos que foi o padre quem avançou sobre o seu carro. Sei que você deve estar pensando em largar estas reuniões pra ficar com eles.

— Eles não me aceitam. Acho que, lá no fundo dos corações, pensam que eu devia ter ido com o pai.

Ana limitava-se a afagar os cabelos da cunhada. Mas Odete procurava ajudar:

— Acho que não é isso. Eles estão imaginando que os homens correm riscos e que a sobrevivência é o prêmio.

Eu dirigia mas toquei na perna de Raul, a meu lado, como a suplicar que interviesse com alguma idéia mais sensata. Ele se saiu com esta:

— As crianças e os adolescentes são egoístas por força da idade. Bem sei que eles choram a perda do pai, sempre alegre, sempre companheiro...

Não conseguiu concluir. Retirou o lenço já úmido e pôs sobre os olhos. Creio que, de todos, eu fui aquele que menos extravasei o sentimento de pesar, talvez porque precisasse prestar atenção no trânsito.

Todos concordaram em tomar uma xícara de chá ou um cafezinho, de modo que pudemos conversar mais um pouco.

De novo, Maria começou:

— Vocês acham que eu devo levar os meus pras aulas da mocidade espírita, no centro?

A questão propunha, tacitamente, que todas as crianças fossem lá matriculadas.

Raul ponderou:

— Na Igreja Católica, as idades estão bem definidas. O Crisma e a Primeira Comunhão são sacramentos com hora certa. Não é verdade que os seus filhos, como os meus, já se confessam e comungam desde algum tempo? Acho que só o Lucas ainda não está na hora de freqüentar o catecismo.

Ana se viu coagida a explicar:

— Ele já me pediu pra acompanhar os primos e sabe rezar até o pai-nosso. Vocês já viram que vamos ter problemas...

Realmente, criou-se um impasse. Em outros tempos, a animação habitual teria sido suficiente para acender a discussão e chegaríamos a alguma conclusão naquela mesma noite. Não foi isso o que ocorreu e o assunto feneceu, na expectativa da opinião dos jovenzinhos.

A sós com Ana, tive oportunidade de comentar:

— Sabe que não tinha pensado na formação religiosa dos pequenos? Nos nossos, eu pensei. Acho que você estava de acordo em levar o Lucas, quando chegasse o momento, pra fazer a primeira comunhão. Mas a coisa está complicada pros outros.

Ana não esperou que perguntasse a opinião dela. Sabia de cor o que fazer:

— Nós fomos à missa de sétimo dia. Continuaremos, por algum tempo, indo à igreja, até decidirmos se o Espiritismo é realmente tudo aquilo que está parecendo ser. Quando estivermos mais convictos das nossas razões, optamos. Que tal?

Por mim, estava certo de que o centro espírita iria ganhar alguns adeptos. A opinião de Ana foi uma espécie de água fria na fervura. Mas concordei:

— Acho que você tem razão. Vamos dar tempo ao tempo, que Deus não criou o mundo num só dia.

Como se verá, a decisão da minha mulher, como sempre, demonstrou ser muito sábia.

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