Lourival já não acreditava que estivesse sendo punido, senão que algo deveria fazer para oferecer-se à revelação dos mentores espirituais. Não precisou de muito esforço para perceber que o túmulo estava absolutamente vazio, não havendo sequer vestígio de ataúde, muito menos de cadáver. Seu olhar percuciente conseguia varar a “atmosfera” material e sólida, como se a energia se compusesse complacentemente conforme sua vontade soberana.
Viu, com desagrado, que o cordão luminoso que fixava o perispírito ao corpo carnal estava bem ali aos seus pés, enfronhando-se na espessa camada até onde sua visão já não mais alcançava. Era mistério mui profundo, difícil de decifrar.
Quis uma entrevista com o amigo de muitos séculos, reconhecido mentalmente no glorioso momento de paz, pois lhe parecia que as dificuldades menos importantes estavam resolvidas, pelo menos perifericamente, no relacionamento grosseiro dos que se aceitam como individualidades mas sem os apegos sentimentais de quem verdadeiramente se ama.
Lembrou-se da esposa quando encarnando Margarida e não compreendeu a razão das ojerizas que se mantinham quase intactas. Afinal, não houvera amado a mesma criatura na qualidade de Felícia e não a havia respeitado como Ernestina? Por que tais fixações de épocas que deveriam esquecer-se?
Recordou-se da figura que acompanhava a esposa de outra época e quis decifrar esse enigma antigo.
Ao voltar o olhar para cima, na súplica que se seguiria, deu com a presença do companheiro, este mesmo que se identificou como narrador.
Não tive dificuldade em fazê-lo entender que nosso relacionamento nem sempre fora o mais saudável, imantando-o para épocas bem anteriores em que disputávamos o amor da mesma mulher. Fi-lo compreender que a amizade entre os três começou a se sedimentar quando me retirei para estagiar em colônia de atendimento espiritual no etéreo, de sorte que deixei o campo em aberto para que se desenvolvessem a simpatia, o amor e as demais afinidades entre os dois.
Não posso esconder que sofri e que enviei muitos fluidos de mau caráter contra ambos, neutralizados, contudo, pela fé que mantive acesa na misericórdia divina. Privilegiado por companheiros de jornada com os mesmos problemas, pude desvendar os segredos do egoísmo que me forçavam a enganar-me quanto ao desejo de posse e manutenção de outro ser.
Não preciso dizer que o comovi muitíssimo, pois Lourival era bem capaz de perceber que os mesmos sacrifícios deveria realizar em prol do cumprimento maior da lei, do mandamento ou do ensino do Mestre Jesus, ou seja, de que a maior das leis é a do amor a Deus, o que nos obriga a devotar os melhores sentimentos a todos os irmãos, sem exclusões.
Confessou-me que a visão do ser que acompanhava Margarida era tremenda forma de acelerar-lhe o coração, nas horas horrorosas em que imergira nas trevas conscienciais, especialmente porque não se considerava puro para a sublimidade do amor de Jesus, tantas foram as mulheres com quem se entretivera, até mesmo e principalmente naquela longínqua encarnação.
Fiz-lhe ver, com palavras bastante sóbrias, sem paixão, que a minha presença junto a Margarida, na sua mente, era a tradução de antigos ciúmes e demais configurações do ódio e do desejo de vingança.
— Querido amigo, disse-lhe emocionado, não corra atrás dos fantasmas da imaginação. Se você teve o direito a uma vida estimulada pelas diretrizes espíritas fundamentadas nas doutrinas de Kardec, foi porque, com Felícia, soube desvencilhar-se completamente das ilusões da grandiosidade apoteótica de quem tudo pode perante a matéria.
Era preciso, pelo consenso dos orientadores envolvidos no atendimento a Lourival, que soubesse distinguir as conotações das últimas quatro encarnações, de forma bastante rigorosa, no intuito de caracterizar os pontos evolutivos conquistados através do sofrimento e da reflexão sobre a dor.
Lourival se dispôs a perlustrar cada uma das encarnações, conforme os pontos mais importantes ligados aos casos amorosos, na descoberta das causas de todas as vicissitudes.
Mas colocou condições.
Queria saber a razão de estar preso ainda ao cordão da vida e quais as razões de não estar sendo tratado em alguma colônia, conforme a declaração que lhe fiz a respeito de meu estágio anterior. Queria saber, também, por que não fora estimulado de maneira clara para a decifração, precisando comportar-se até de forma desprimorosa perante os amigos que estariam a observá-lo.
Eram desejos lícitos? Seria hora de dizer-lhe que se encontrava ainda preso ao corpo no hospital, não tendo, portanto, desencarnado? Seria o momento de lhe revelar que a esposa se arremessara sobre seu corpo não porque morrera, mas porque dera sinais inequívocos de recuperação da consciência?