Uma vez exposta a opinião do Doutor Dirceu, que enfatizou o parecer médico, lembrando que se tratava de um jovem em convalescença de sério problema mental, conforme atestado que se encontrava no “dossier” que os policiais vinham trazendo, concordou o delegado em liberá-lo para tratamento, acatando a idéia da vigilância ostensiva, para que os comparsas da quadrilha não alcançassem novo resgate.
— Eis aí, doutor, retrucou-lhe Dirceu, uma séria acusação que mereceria uma diligência mais acurada, tendo em vista que o meu cliente ficou internado tanto tempo, sem ter sido auxiliado por ninguém, a não ser as pessoas da família e os amigos mais chegados. De resto, as visitas só foram permitidas recentemente, mesmo porque o rapaz estava sem condições de identificar sequer as pessoas.
Exagerava, evidentemente, porque desejava livrar o moço do xadrez. Mas o delegado estava assoberbado, com os repórteres à sua porta, querendo entrevistá-lo e ao advogado do homicida, de forma que não levou o assunto adiante, recomendando que a saída do rapaz se desse com o máximo de cautela, se possível através de manobra que evitasse a aproximação deles do prisioneiro.
Voltando à sala em que Juvenal dormia, Dirceu informou a Macedo a respeito da deliberação e das precauções do delegado. Ao perceber que Juvenal dormia, ficou menos excitado, aproveitando o ensejo para uma conversa mais cordial com o detetive, a quem levou para o corredor, deserto naquele instante.
— Meu caro inspetor, esclareça-me um ponto que me está intrigando: como foi que o senhor chegou até o meu cliente?
— Juntando vários elementos. O principal deles foi a descoberta de que ele chefiava uma quadrilha que mantinha certa boca de fumo no bairro. Sua popularidade era tão expressiva que não foi difícil encontrar alguns rapazes da mesma idade, alguns mais novos até, que o indicaram como integrante da gangue. Quando interrogamos a mãe, ela nos confirmou que o filho estava envolvido com o tráfico, sem, no entanto, nos dizer exatamente até onde. O marido foi quem nos deu vários nomes, uma vez que ele mesmo havia procurado saber as razões de o rapaz manter a irmã fechada em casa, passando parte do dia dormindo, saindo apenas à noite.
— Essa parte, eu conheço. Segundo me contou o Doutor José, Juvenal revelou tudo ao médico, não escondendo suas proezas da época em que era menor de idade. O que eu quero saber é como o senhor chegou à conclusão de que foi ele quem assassinou o pai, a irmã e os empregados.
— Eu detive vários elementos da quadrilha mas fui obrigado a soltar todos, tendo em vista que nenhum foi preso em flagrante. Eles tinham ordem para não portar droga. Na batida, só detivemos uns poucos com alguns gramas, todos alegando que eram consumidores. Uns dias antes é que ele havia assassinado a irmã, de forma que foi por muito pouco que não o pegamos na qualidade de traficante. Se tivéssemos agido logo que recebemos a denúncia, teríamos evitado a morte da irmã, porque ele estaria envolvido com o processo que seria instalado.
— O senhor não está respondendo...
— Eu chego lá. As investigações tinham avançado bastante quanto a configurar a participação dele no tráfico, entretanto, após a morte da irmã, ele mudou completamente de hábitos, por força da influência da antiga professora da mocinha, Elvira, que o senhor deve conhecer...
— Sei quem é. Disseram que ela se apresenta na televisão.
— Pois bem, ele se interessou pelos temas da vida após a morte, passando a estudar as obras de Kardec e a ir esporadicamente ao centro espírita. Ao mesmo tempo, mudou de escola sem, contudo, ir muito à aula. Eu o fazia seguir por toda a parte. Às vezes, ele conseguiu despistar-nos, mas houve uma falha no esquema que montou: ele se encontrou com o segundo na linha da quadrilha, um elemento conhecido como Armando. Este caiu na nossa rede, porque não foi difícil seguir-lhe os passos, até que adquiriu uma boa quantidade de cocaína. Escolado, deixou que outros fossem apanhados transportando o carregamento. Ele mesmo arrumou um álibi, comparecendo à delegacia para prestar depoimento a respeito da participação de Juvenal na quadrilha no justo momento em que fazíamos a apreensão da droga.
— Quer dizer que ele denunciou o amigo?
— De forma alguma. Ele insistiu em que os dois eram meros consumidores e ainda de pequenas quantidades, demonstrando que não havia indício de nenhuma picada em qualquer parte do corpo. Saiu ileso. Mas não me convenceu e eu mantive a “campana” sobre ele. Um dia, fui chamado pelo meu homem, que estranhou o fato inusitado de ele ter saído de casa de moto, com um sujeito grandalhão na garupa, ambos com capacete e folgadas jaquetas de couro, o da garupa com um blusão preto, tal como foi descrito o blusão do elemento que matou as moças e o empregado da família.
— E daí?
— Daí que fomos seguindo-os pelo rádio das patrulhas que se postavam no caminho que os dois faziam, de sorte que, quando atiraram na viatura em que ia Juvenal, tínhamos conhecimento dos autores da tentativa.
— Quer dizer que os próprios elementos da gangue tentaram eliminar o chefe?
— Foi o que pensamos na hora. E foi o que nos afiançou o grandalhão, conhecido pela alcunha de Formigão, foragido do instituto correcional do Estado, menor de idade, com uma ficha muito extensa. O outro está desaparecido até hoje.
— Não sei como uma coisa tenha levado à outra.
— É que Juvenal cometeu um deslize. Saiu do hospital deixando lá seu carro blindado. O fato nos demonstrou que não estava com medo de novo atentado, mesmo porque o carro em que foi atacado também está protegido por blindagem.
— O senhor concluiu que o ataque tinha sido armado...
— Com base nessa presunção, levantamos a hipótese de ter sido ele o verdadeiro assassino do pai e da irmã.
— Bem imaginado. Mas onde as provas?
— Não existem provas. Só a revelação dele mesmo, que só não fez uma confissão formal, porque eu não pude atendê-lo quando me procurou de manhã. Eu testemunhei o momento em que ia revelar tudo, tendo sido impedido por Glorinha.
— Quer dizer que ela sabia dos crimes?
— Aqui entra o imponderável espiritual. Ela não falou diretamente. Foi como em transe mediúnico. Foi como se a irmã assassinada falasse pela boca da encarnada, pedindo e justificando o pedido, de forma que me levou a considerar que as minhas suspeitas estavam corretas. Foi quando dei voz de prisão a ele.
— Sem nenhum apoio material?
— Que havia de mais importante, na concepção do rapaz, do que a presença junto dele dos espíritos das pessoas que eliminou?
— Quer dizer que eu estava certo em deduzir que a sua acusação tinha sido gratuita?
— Do seu ponto de vista, foi. Do meu, que venho estudando a doutrina espírita, minha acusação estava baseada numa certeza transcendental. Depois, a esquizofrenia de que ele está atacado e todo o sofrimento que lhe foi infligido pela mãe e pelo pai na infância me favoreceram a formação do quadro patológico favorável à criação de uma personalidade criminosa de alta periculosidade. O senhor, Doutor Dirceu, não teve em mãos nenhuma prova concreta de que foi ele o assassino, no entanto, adquiriu a certeza de que ele é o homicida. Não é verdade?
— O que não vai impedir-me de protegê-lo nos termos da lei.
— Faça isso, porque eu acredito que ele possa regenerar-se, desde que não fique preso. Conte comigo para todos os seus argumentos favoráveis à atenuação da sentença.
— Só mais uma coisa: como foi que o senhor descobriu o esconderijo em que o prendeu agora à noite?
— A população, alertada pelos meios de comunicação, costuma ligar para o disque-denúncia. Recebemos muitos telefonemas, três ou quatro deles de comerciantes que tinham entregas a fazer em tal endereço, com o nome Juvenal anotado. Foi fácil.
— Muito obrigado, inspetor. Começo a compreendê-lo melhor, já admirando o seu senso de justiça. Deus o abençoe!