Conforme havia solicitado, Renato alcançou o auxílio de um grupo de irmãos socorristas que desejaram aliviar a sobrecarga obsessiva que pesava sobre Juvenal, a partir dos crimes contra diversas pessoas agora desencarnadas.
Durante aqueles seis meses, ele pôde acompanhar os trabalhos como mero assistente, sem voz ativa, mesmo porque muito pouco entendia das providências que se faziam necessárias.
Foi assim que descobriu que havia quatro pobres criaturas debatendo-se em ódio imensurável contra quem lhes havia tirado a vida, nenhuma delas cônscia do fato, acreditando todos que ainda estavam vivos, sendo supliciados por algozes.
Não havia acusações dirigidas diretamente ao espírito de Juvenal, mesmo porque ignoravam a autoria dos disparos, cujos ferimentos sangravam sem cessar. No entanto, muitos asseclas dos infelizes tinham tido conhecimento dos autores e agiam contra eles, carregando-os de vibrações altamente deletérias.
Os coitados imersos nas trevas é que se constituíram em alvo dos socorristas, não no sentido de serem aliviados do martírio, mas no de poderem avaliar quais as próprias ações que redundaram naquele sofrimento. Para tanto, houve a necessidade de revelar-lhes aspectos do passado em que causaram infelicidade a outros seres, transformando-lhes as acusações em necessidade de defesa, porque lhes foi ativada a consciência, cada qual em um nível adequado à compreensão de que tinham menos de vítimas e mais de agressores.
Eis que, com isso, os que protegiam Juvenal conseguiram atenuar a atividade malévola dos que o perseguiam, uma vez que não alcançavam mais concentrar sobre ele as enfraquecidas vibrações negativas.
Todo o trabalho se realizou concomitantemente com o tratamento medicamentoso do Doutor Moacir, favorecendo ao paciente um repouso que o deixava livre para pensar nos fatos da vida como uma seqüência de causas e efeitos, a ponto de levá-lo a presumir que muitos dos seus atos contra as pessoas se prendiam à formação do caráter desde outras encarnações.
Lutécia e Renato estiveram presentes aos encontros de Juvenal com Glorinha e com Terê. Da mesma forma que Moacir se pusera a observar as reações do rapaz, Benedito acompanhou as do pai e da irmã do moço, anotando todos os sentimentos que cada um ia deixando transparecer, à vista das revelações que se faziam. Mais particularmente interessava ao abnegado protetor o tônus emocional de Renato, tendo em vista que estava recebendo o influxo perispiritual da mulher que o havia abandonado, principalmente quando esta concentrou nele a responsabilidade de muitas conseqüências desastrosas para as vidas dela e do filho.
Tanta foi a efusão dos sentimentos de Renato que foi preciso retirá-lo da cena, para o que foi convocada Marilu, sua enfermeira desde que chegara ao etéreo.
Mais calmo, enquanto mãe e filho partiam para suas tarefas, foi Renato acolhido por Benedito, que demandou uma reunião com aqueles mesmos que deliberaram ajudar Juvenal.
Dispostos em círculo, o guia espiritual assumiu o controle do grupo, abrindo os trabalhos com uma prece simples em que solicitava dos mentores de cada um que dessem assistência para que ninguém perturbasse a exposição que havia preparado.
— Meus irmãos, iniciou, pedi que comparecessem em caráter de urgência, porque preciso despertar Renato e Lutécia para a análise de seus próprios sentimentos. Já está na hora de eles entenderem de modo absoluto como se dá o mecanismo do perdão, no nobre sentido de se deixar à justiça de Deus e à sua sacratíssima misericórdia a resolução final de como devem as criaturas sofrer as conseqüências das más ações. Eles acompanharam todo o trabalho dos socorristas e perceberam que estes concentraram sua atuação sobre os infelizes, com o intento de desviar de Juvenal as ondas de ódio que sobre ele faziam recair muitas entidades sofredoras. Ora, ambos tiveram a desdita de ser feridos mortalmente por balázios certeiros, criando inimigos em sua maneira de julgar o descalabro dos crimes de que foram vítimas. Ambos vêm estudando as circunstâncias determinantes das ações dos criminosos, sempre elevando os pensamentos em prece, agradecidos por se encontrarem amparados em nossa colônia.; Lutécia, desperta para um passado de diversas encarnações.; Renato, desconhecendo seus feitos anteriores, já que vem prestando mais atenção nos desvios da última encarnação. Eis que se exerceu sobre eles o mesmo efeito aplicado aos inimigos de Juvenal. O que eu pretendo elucidar, preliminar e definitivamente, é que, como está nos evangelhos, “a verdade liberta”. Em João VIII: 32, se lê: “...vocês conhecerão a verdade e a verdade os libertará”. Não se trata, porém, daquele conhecimento parcial dos fatos, mas da absoluta percepção das causas que geraram tais efeitos. Renato aplicou-se em sua vida à justiça manipulada pelos mortais. Ele mesmo se dedicou a avaliar até que ponto poderia burlar a lei, sem ferir-lhe a letra, mas conturbando-lhe o espírito, através de manobras da retórica jurídica que favoreciam os clientes, sem lhes considerar a culpabilidade como o reflexo de sua maldade intrínseca. Em outras palavras, Renato, compreendendo, embora, o que o legislador tinha em mente ao redigir os textos, buscava inocentar os bandidos ou, ao menos, atenuar-lhes o mais possível a pena a ser cominada pelo juiz. Agora, está ele perante a justiça de Deus, inarredável, eterna, absoluta. Não existe a possibilidade de qualquer subterfúgio. Terá, então, de compreender que deve deixar nas mãos do Senhor a execução das sentenças naturais que estarão recaindo sobre os culpados de sua morte. Se, conhecendo os autores dos disparos, ele se indispuser contra tais criaturas, irá desfeitear o Criador. Percebo que minhas palavras estão sendo entendidas por todos os presentes, muitos de nós já calejados nas experiências desta natureza. Peço-lhes, antes de desvendar o segredo material dos acontecimentos funestos, que emitam irradiações de muito amor pelos companheiros em vias de passar por um transe de consciência de tal magnitude.
Após alguns minutos de silêncio, em que pai e filha se sentiram fluidicamente amparados pelos companheiros, Benedito aproximou-se de Lutécia e lhe pediu que observasse a cena que iria transferir para sua mente.
Ato contínuo, ocorreu um influxo energético vindo de um grupo de espíritos que se mantivera o tempo todo concentrado, influxo que se transformou na reprodução do episódio em que o assassino que lhe tirara a vida se revelava.
Lutécia não se abalou. Ergueu, em pensamento, uma prece em que solicitava a Deus o perdão para aquela criatura, entendendo que precisava o assassino, muito mais do que ela, da ajuda dos espíritos de luz.
Quando chegou a vez de Renato, sua reação não foi a mesma. Antes, porém, que transformasse suas emoções em ódio, recebeu o impacto de outra cena muito mais contundente, em que era ele o protagonista de um episódio de sangue contra aquele mesmo indivíduo.
Em seguida, sob o efeito de tranqüilizantes, foi levado para o ambulatório do hospital da colônia, preocupando os médicos de plantão quanto a um possível recrudescimento dos males, conforme o estado em que chegara da crosta.