Neste final de semana, avistei-me com mamãe e com meus filhos.
Quero registrar que se apresentaram com as roupagens carnais da última jornada, para o efeito dos estremeções afetivos. Eu os recebi sem aviso, de forma que minha indumentária perispirítica não se adequava muito bem às impressões de filho e de pai.
Creio que Mercedes deve ter-me achado mais velho uns nove ou dez anos além da idade do momento de sua morte. As crianças não demonstraram surpresa e me trataram com muito carinho.
Ajoelhei-me perante as três entidades, necessitado de pedir-lhes desculpas por atos e pensamentos.
Os meninos não compreenderam por que lhes pedia perdão.
— Fui eu quem arremessei o carro contra o muro e lhes tirei a vida!...
Não deram maior importância ao fato. Francisco chegou a dizer:
— Papai, sinto muito que tenha sido assim, mas acho que iríamos esbarrar com algo parecido, tanto estamos usufruindo a vida deste lado, aprendendo e trabalhando...
— Mas vocês são tão pequenos...
Esquecia-me, pela forte emoção, de que são espíritos adiantados e que só se apresentavam no formato característico para minha percepção de suas personalidades. Entretanto, não esmiuçaram os temas dos estudos nem a natureza dos trabalhos.
— De qualquer jeito, quero que me perdoem por todo o mal que lhes causei.
— Quanto a mim — era Geraldo a se manifestar —, não tenho nada além do que agradecer ao desvelo do paizinho, não só por ter cuidado de nós mas também por nos ter dado a chance da vida. A morte é acidente da jornada, imprescindível para a recuperação do verdadeiro estado do ser, qual seja, o de espírito.
Na hora admirei a facilidade da exposição e a profundeza das considerações. Contudo, dei de barato que estavam inibindo a capacidade (os espíritas diriam que ofuscavam a luminosidade) e que se esforçavam por me deixar à vontade.
Francisco, simplesmente, apoiou as palavras do irmão e me abraçou, infundindo-me vibrações de muito amor e respeito. Pelo menos foi assim que senti o estremecimento interior que me chegou à percepção intelectual. Quanto aos fatores emocionais, após a saída deles, vi-me emaranhado em confusas tendências de aceitação e de suspeita, como se eu mesmo tivesse sido muito canhestro em transmitir a vontade de requerer-lhes a benquerença.
Não foi assim que terminei a descrição psicológica do capítulo anterior? Pois tenho a certeza de que os mestres da “Escolinha”, em benéfico conluio com os protetores familiares, quiseram mostrar-me a misericórdia divina, trazendo-me os seres mais chegados, afetuosos, delicados, meigos...
Tento redigir com isenção de sentimentalismo, dado que muito chorei nestes dois dias. Por incrível possa parecer, somente hoje de manhã é que despertei para a necessidade de vir participar aos encarnados os acontecimentos que tão profundamente me atingiram.
Por isso, devo resguardar-me quanto às impressões de Mercedes sobre a mente e sobre o coração. Mamãe estava simplesmente linda, no apogeu da formosura material, como eu mesmo não a havia conhecido senão por fotografias. Tentei em vão recordar-me de sua fisionomia à época em que me deu à luz, que era como melhor poderia cotejar com o retrato atual.
Mas essa composição física apenas me atrapalhou as considerações morais a que deveria dedicar-me, para conhecimento mais exato de como estava saindo-me na absorção dos valores éticos emanados desse relacionamento esdrúxulo, assoberbado por extremos de posse e exclusivismo.
Mercedes não foi fria mas deve ter sentido certa repulsa da minha parte, porque lhe pedia perdão sem o referendo das vibrações íntimas. Compreendia eu que necessitava extirpar do coração as dolorosas ondas de...
Não quero nem vou estender-me sobre os sentimentos ruins. Baste aos leitores saberem que eu mesmo me senti esquisito, ajoelhado sem contrição, falando palavras que não repercutiam, julgando que deveria ser honesto sendo hipócrita, temeroso de dizer e deixando passar todas as informações, querendo e não querendo pôr tudo em pratos limpos.
Talvez tenha sido essa a verdadeira razão de ter ficado quase prostrado depois da visita. Descobria o que já suspeitava, ou seja, que a falta do amor dos demais para comigo não existia. Eu é que me inquietava com as imperfeições atribuídas aos seres, imperfeição que estendia aos sentimentos de amor, de simpatia ou de simples comiseração.
Quando a pessoa é inferior (não há como apostrofar-me a conclusão, uma vez que, nestes planos, a superioridade é sempre relativa, sendo o absoluto prerrogativa que atribuímos ao Pai), não se pode desejar que tenha sentimentos perfeitos. E eu, imerso nesses raciocínios predominantes para a minha estrutura mental, não pude desgarrar-me para o abraço sentido, para a lágrima de felicidade.
Se de nada valeu a presença de mamãe, que saiba eu tirar proveito das considerações que realizei sobre as minhas reações. Daqui estar preparando o texto das podridões atuais, conquanto venha sendo impedido pelos mentores e até pelos colegas de grupo, os mais chegados, que se importam comigo e com os humanos, devido ao fato de que não posso acachapar-me vícios e defeitos maiores dos que verdadeiramente se me infiltraram na psique.
Quando encarnado, cheguei ao máximo das acusações e vilipêndios contra a minha pessoa, tanto que culminei suicida. Agora, querem que evite “estressar-me” (perdoem-me o neologismo), para o que me oferecem os subsídios das autocríticas arquivadas no setor de documentação da colônia.
Esse passo, se conseguir dar, é grandioso, fundamental para o desenvolvimento que almejo na área das pesquisas psíquicas, oferecendo-me o recurso da apreciação alheia, portanto, sem os rigores tenebrosos das acusações conscienciais. Será sinal de que estarei progredindo.
Devo advertir para a correlação entre “saber” e “fazer” existente no campo dos sentimentos e das formulações intelectuais. Da mesma forma que não consegui ser explícito com Mercedes, temo não estar preparado para executar o programa dos estudos objetivos.
Eis a encruzilhada que me colocam à frente, para que possa resgatar a imagem de criatura de Deus, que perdi em algum lugar das apocalípticas reflexões a respeito da maldade de que fui capaz.
Rezem por mim!
Rogo o favor e, imediatamente, percebo que se distancia o tempo da redação do momento da leitura, posto os companheiros e o médium possam considerar-se convocados. Assim, mantenho a solicitação no presente e requeiro dos que vão chegando que se interessem pelos desprazeres de muitos dos mensageiros, sofredores como eu, realizando por eles as preces que acreditam extemporâneas em relação a mim.
Anoto prazerosamente o tópico anterior, para evidenciar que estou adquirindo a noção da esperança, acreditando-me, em futuro mais ou menos distante, bonançoso, a ponto de prescindir (mais que muitos outros) da boa vontade dos amáveis leitores.