Desde que perdeu papai, Mercedes se pôs à disposição do plano da espiritualidade para possíveis reencontros. Sabia ser grande a dificuldade, à vista da morte provocada por livre-arbítrio, crime maior que arremete o indivíduo em dolorosa senda de sofrimentos.
No início, pensava ela que seria dupla punição ter perdido o marido e não receber dele notícia alguma. Mas tão logo os companheiros do centro espírita se inteiraram do suicídio (não esquecer que ela pretendia fazer passar a informação de que houvera assassinato), puseram-na a par das dificuldades da invocação.
Ao ler as obras de Kardec, entusiasmada principalmente com “O Evangelho”, Mercedes foi tomando-se de cuidados para com os filhos, desejosa de fornecer a nós quatro as diretrizes fundamentais da doutrina. Pegou-me em época de profunda descrença, aos treze anos, cinco após o desenlace de meu pai, rebelde e estúpido, enciumado com o tratamento dispensado aos outros três.
Não deveria mas vou levantar, porque era assim que me sentia então, a suspeita de que a freqüência à instituição de socorro fraterno teria tido influência desastrosa em meu ânimo, porque me sentia abandonado, entregue aos professores do ginásio, contra quem mantinha forte ojeriza, dada a displicência dos ensinos para os melhor dotados. Ficavam a repetir, enfadonhamente, os conceitos que não entravam nos bestuntos dos mais atrasados e impediam aos adiantados evolutir no conhecimento da matéria.
Evidentemente, desleixava as lições para me dedicar a leituras variadas, extracurriculares, fazendo o mínimo necessário para as promoções de série. Raciocinava pelo avesso da realidade, ou seja, se indivíduos como eu, disciplinados e respeitadores, inteligentes e cultos, não lograssem aprovação, ninguém mais lograria. Na verdade, havia colegas muito mais atentos às matérias, realizando o máximo de sua capacidade, enquanto eu minimizava, infelizmente, o empenho, pondo os professores na defensiva, pelas respostas que lhes atravessava, na busca da comprovação de que eram medíocres.
Revelo tal aspecto da educação formal, para demonstrar a ausência de minha mãe. Houvesse tido ela a preocupação de avaliar o meu sucesso escolar e teria descoberto que me ensimesmava, cultivando desmedido orgulho, tola vaidade e perverso egoísmo.
Daqui a rejeitar os preceitos teóricos do Espiritismo foi simples passo.
Todo o curso de segundo ciclo dediquei-me às matérias preparatórias do exame de habilitação para a Faculdade de Direito. As ciências naturais e as matemáticas se rejeitaram de per si, conquanto me ufanasse da facilidade com que assimilava os conhecimentos relativos a elas. Mas não me interessavam. Encasquetei a idéia de que seria defensor dos fracos e oprimidos...
Na Universidade, aos dezoito anos, era ateu e farrista, reservado em relação aos colegas, no plano das atividades sociais, temeroso de intimidades, fazendo-me distante dos menos categorizados, competindo com os melhores, sem evidenciar-me superior, calado a maior parte do tempo, só interferindo nos debates quando instado, sempre levantando pontos estranhos aos quesitos, mas citando autores e textos de cor, alguns em latim, para surpreender e atemorizar.
Nunca Mercedes, sequer de longe, quis saber qualquer particularidade dessa participação acadêmica. Quando rejeitei as teses espíritas, como que ergueu tremenda muralha afetiva, como a afirmar, tacitamente, que o tempo seria o mestre de todas as falhas e o normalizador dos distúrbios filosóficos. Com isso, punha a lápide sobre a cabeceira do túmulo, tendo a pesada lousa sido depositada desde há muito.
Não sei se traduzi com eficácia as sensações mentais que me mantiveram distanciado de Mercedes durante todos aqueles anos. A verdade é que me constituí em tremenda decepção, quando cheguei com a novidade da expulsão da Ordem e com o impedimento de exercer a advocacia.
Não me disse nada, como se estivesse aguardando exatamente isso. O mais certo é que deveria desconfiar das facilidades com que introduzia os artigos de luxo, móveis, tapeçarias, quadros etc. Havia, também, o retrospecto pouco lisonjeiro das advertências pela falta de compostura de Criseide, o que não admiti, que nos causou estremecimentos e rompimentos, sempre contornados pela assistência que prestava aos netos, de quem cuidava, na ausência da mãe.
Dois meses durou-me a prostração pela perda da condição forense. Não me reergui jamais, contudo a conferência com o “pistolão” do emprego público me abriu perspectivas novas, posteriormente não confirmadas, tendo em vista a ilusão de que prestaria assistência jurídica de primeira grandeza a departamento específico ligado à Corregedoria do Palácio do Governo.
Como é que, tendo sido escorraçado da profissão, fui admitido em função correlata? Simplesmente porque os espíritas sempre estão propiciando aos que caem uma segunda, terceira, “n” oportunidades de recuperação.
Por essa época, Mercedes foi ao médico. Câncer no útero, sem mais nem menos. A operação extirpou-lhe todo o material contaminado, porém, ficou-lhe aquela impressão terrível dos procedimentos pós-operatórios, quimioterápicos, cuja recordação me põe saudoso da época em que éramos crianças, Mercedes enfrentando a vida sozinha, denodada, positiva, masculinizada, se assim posso dizer, pela absorção dos padrões dos homens, no trato dos negócios.
Criseide era o oposto. Feminina, meiga, carinhosa. Deu-me o que me fora negado pela “megera”, que outro não era o adjetivo que utilizávamos ela e eu, para caracterizar quem queria se interpor entre nós.
Quando mamãe morreu de derrame cerebral, fazia tempo que Criseide tinha partido, confirmando, de certo modo, o que Mercedes previra e me dissera, com mansidão, no medo de me ofender, pelas minhas turbulentas manifestações de desagrado. O que me tornava particularmente furioso era o cicio dos conselhos, os quais atribuía à influenciação deletéria dos parceiros de centro espírita, que julgava igrejeiros, ainda mais que os padres e pastores, frustrados das outras religiões, necessitados de conchavos e conluios, que era como via o movimento espírita, pela impressão de que tudo se fazia na calada da noite, na escuridão dos ambientes em que diziam conversar com as almas do outro mundo.
Posso dizer que, quando mamãe morreu, não senti emoção alguma. Transformara-se em ódio o amor doentio da infância e o desprezo da adolescência. O fato de ser enterrada não me causou nenhuma alteração de ânimo, como se fora a conseqüência natural do ato de viver. Nisto até que estava certo. O em que errei foi não ter percebido que perdia o único apoio moral que me mantinha alerta contra a desfaçatez das atitudes, conquanto rejeitasse os elementos cármicos como necessários para o progresso do homem.
Fazendo o balanço das noções que Mercedes me passou condizentes com o aprendizado neste educandário, posso afirmar, sem medo de exagero, que foi bem mais de dez por cento do que hoje sei, embora com a dificuldade insuperável da descrença. Mas sou obrigado a reconhecer que, apesar de não ter-me impregnado desses conhecimentos, ainda assim me valeram no Umbral, para a efetivação teórica das suspeitas que ia levantando.
Busquei, neste relato, driblar o medo de cair na turbulência sentimental que me teria arremessado de rojo nas trevas, conforme a declaração do dia de ontem, todavia, não disfarcei o que de negativo havia na mente e no coração, em relação a Mercedes. Tenho para comigo que esse procedimento esfriou a narrativa, não dando o tônus dramático das descobertas psíquicas a que procedi durante o período de agudo sofrimento. A lembrança mais recente dessa entidade ímpar nos meus relacionamentos como que apagou os velhos dissabores morais. Sinto-me compreendido e perdoado, mas não me estimo compreendendo e perdoando.
Enfim, saio deste capítulo bastante mais tranqüilo, como se me tivesse livrado de tremenda carga emocional. O mais serão questiúnculas a serem decifradas, até o momento das explicações provindas das antigas crises, porque não presumo felizes os encontros de outras vidas.
Geraldo e Francisco estão distantes. Meu pai nunca se aproximou. Anacleto e Fabrício espicaçaram-me a paciência. Carla se encastelava em longos períodos de demência artística e nunca me tratou...
Sinto-me afetivamente desamparado. Será que não há amor para mim?