Sinto-me em débito permanente com a sociedade, a qual jurei defender das injustiças e dos erros humanos provocados pela volúpia das posses e pelo desregramento do poder. Naquela cerimônia de entrega dos diplomas, compenetrei-me de que haveria de me doar ao povo, caso lograsse êxito retumbante junto ao Tribunal, verboso que era, pois me demonstrara promissor nos entreveros simulados.
Não contava com a sorte, essa madrasta dos desvalidos.
Paro para raciocinar sobre a derradeira frase. Não deveria erguer o edifício da vida profissional? Que história é essa de facultar ao acaso os encontros e os desencontros com os que me levariam ao alto da fama forense ou que me atirariam ao ostracismo dos gananciosos incompetentes?!
Na verdade, o primeiro grande triunfo se deu na defesa de criminoso confesso. Forjei provas contrárias, anulando as acusações, argumentando que a confissão fora extraída mediante tortura. Na época, o expediente vigia e era do conhecimento público. Fosse o juiz requerer investigações “in loco” e abriria a possibilidade da descoberta dos recônditos dos presídios, das delegacias e, principalmente, dos quartéis. Meu cliente não cometera crime político, senão que surrupiara os bens de certa viúva (alegre viúva), terminando por extirpar-lhe a vida.
A família estava de olho na arrecadação das propriedades, habilmente transferidas para o nome do sacana e alienadas a tempo de não levantar a suspeita dos compradores.
Era caso claro de apropriação indébita, mediante coação moral. O promotor, no entanto, não se esforçou para levar avante o libelo acusatório, tendo em vista particular conversa que mantivemos, durante a qual certos valores em moeda corrente foram transferidos de mãos.
Julguei que houvera alcançado repercussão e, de fato, assim aconteceu. Entretanto, o que se espalhou foi que me fizera esperto demais quanto aos subterfúgios aplicados. Meu cliente sujou-me o nome, sorrateiramente, contando a comparsas as manobras de minha habilidade. A triste figura do colega da acusação era conhecida nos meios jurídicos e o juiz não era o mais ilustre membro do ministério público.
Esse conjunto de fatores, os quais não forjei mas dos quais me aproveitei, direcionaram-me os processos subseqüentes. Enquanto os réus apresentavam condições financeiras para arcarem com despesas insólitas, fui referendado nos argumentos pelas decisões dos jurados ou pela brandura da condenação, quando perdia para a realidade irretorquível. Assim, pena que deveria ser de cinco a dez anos, se reduzia a dois, dois e meio, no máximo, com direito a “sursis” e demais regalias sob as prerrogativas do meritíssimo. Derrotas nominais, portanto, eram consideradas vitórias acachapantes contra a honestidade dos que, do outro lado, pleiteavam a culpabilidade.
Eis que formulo o contra-senso do suicídio. Tão integrado estava nesse devaneio de que a fórmula do perdão estava sendo controlada por mim que não posso requerer para os leitores compreenderem a suprema condenação que lancei contra a minha pessoa, à revelia de todas as leis humanas e divinas.
Se é verdade que recebi merecido castigo dos companheiros advogados e que me vi obumbrado pela fortaleza da instituição pública, jogado atrás de pilhas de processos administrativos que, monótonos, vinham lamber-me os pés, como as ondículas que se perdem no extremo areal das praias, inofensivas e isentas de interesse e motivação, também devo reconhecer que não me admiti como culpado, declarando veemente inocência, arquitetando vinganças improváveis, deliciando-me com os frutos colhidos no pomar de Criseide, espicaçado pelos atos de sua liberalidade.
Foi patética a crise que me fez imergir em álcool. Sentia-me o mais incompreendido dos mortais, o mais envergonhado, o mais injustiçado. Quisera estabelecer princípios legais próprios, a partir das leituras dos textos referidos no capítulo anterior. Não atentei para o princípio do Direito. Desejei ver-lhe os fins, na capitulação do tribunal aos argumentos da astúcia, enquanto enchia a burra com o produto dos crimes alheios. De repente, estancaram as fontes em que me fartava. A Ordem dos Advogados e Criseide, como se agissem de comum acordo, arremessaram-me no desvario das frustrações e comecei a “afogar as mágoas”...
Faço questão de repetir a cediça imagem, para demonstrar que o cunho popular da expressão se coaduna perfeitamente com a gravíssima queda moral de um sujeito que se quis o estandarte da jurisprudência do país.
Torno torta a escritura, para que sintam a perturbação mental que se apossou de mim. Afirmei alhures que não era alcoólatra. Não tive tempo para isso. Na primeira oportunidade, joguei o carro contra o maldito muro, que, para me azucrinar ainda mais a paciência, resguardou-me, sem condescender com os pobres filhinhos.
Dava personalidade às coisas. Achava que o carro se desgovernara por injunções mecânicas em descompasso com o meu bater de coração, como se o ritmo dos pistões tivesse sofrido colapso, entrando em coma profundo, na velocidade que a perícia calculou como de cento e quarenta quilômetros por hora.
Se me tivessem dado o dever da acusação junto à barra do tribunal, teria demonstrado a responsabilidade criminosa do motorista, alcançando, seguramente, condenação máxima por crime doloso, pois iria configurar o desejo suicida.
A morte das crianças foi a desculpa esfarrapada que tentei inculcar na mente das pessoas. Tal desculpa me acompanhou durante todos os momentos em que rastejei pelos charcos do Umbral, clamando por salvação, sem esperança de ser subtraído aos horrores da consciência. Enquanto não atinei com a verdade psíquica, pela tremenda força que imprimi aos acontecimentos que me despencaram do alto da infâmia para o enfrentamento da verdade cósmica, precisei curtir a dor da desconfiança da inferioridade espiritual, em contraste terrível com a malícia cristalizada pelas manifestações da inteligência desenvolvida.
Ainda não superei o desespero. Digo mal. Ainda não me restabeleci do choque da monstruosidade, como se, besta-fera, me visse súbito perante o espelho da verdade, em condições de aceitá-la como realidade, mas sem poder de sublimação.
Deveria reproduzir as sábias palavras do Professor Jeremias, contendo-me os arroubos descritivos, para que não me prejudicasse no momento justo da percepção dos defeitos, das imperfeições, sagrado momento da tomada de consciência perante as oferendas da divina misericórdia, que o termo “desespero” do parágrafo anterior jogava por terra. Não vou, contudo, sedimentar a fórmula dos capítulos anteriores. Valha o discurso indireto. Aqui se acende tênue luzinha de esperança, vocábulo que deveria grifar como o mais importante para meu presente existencial.
O mais vai ser trabalhar pelos semelhantes, pelo bem e pela felicidade de todas as criaturas, desapegado das perspectivas de grandiosidade pessoal, convicto de que a restauração dos perdidos ideais de Justiça dependerá de nova peregrinação pelo globo, sufocadas as faculdades do intelecto, segundo pude absorver dos ensinos kardequianos.