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Erotico-->37. CONVERSAS INTERROMPIDAS -- 11/02/2003 - 06:48 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Ao chegarem, Cléber foi distribuindo embrulhos para as irmãs e para a mãe. Eram pequenos presentes que se constituíam de brincos, broches e colares. Traziam o selo do imperfeito, porque fizera questão de dar-lhes só as peças que ele mesmo havia produzido. O gesto inesperado encantou a todas. Lurdes recebeu um mimo diferente, uma boneca de plástico, de ótimo acabamento, que pôs as outras duas com inveja. Era efeito com que não contava, mas a menorzinha agarrou a boneca, não deixando ninguém se aproximar.

Estando o almoço servido, Juliano foi convidado a partilhar da refeição, o que fez com imenso agrado.

Cléber era o novo centro das atenções, pelas coisas que tinha para contar. Relatou as peripécias da manhã e como fora obrigado a se retirar, sem se referir, evidentemente, ao vício dos colegas e à necessidade da mendicância para arrecadar dinheiro. Pintou o velho com cores mais vivas e transformou a bengala em temível arma secreta, dentro da qual se escondia fina lâmina de aço.

A peripécia representou muito perigosa para Maria e Deodato, que tiveram oportunidade de admoestar o filho, sem, contudo, demonstrarem rancor ou má vontade. Falavam carinhosamente, preocupados com a possibilidade de ser maltratado.

— Vocês pensam que não sei me defender? Se aquele velho viesse com muita prosa, iria dar-lhe uns bons pontapés. O duro é que estava acompanhado por quatro bandidos, uns caras cheios de músculos, como esses gorilas dos filmes da televisão.

Fazia gozação mas os outros não acharam graça nenhuma.



Depois do almoço, Juliano foi para casa, as meninas ficaram presas à tela da televisão, enquanto Maria punha ordem na cozinha. Rosângela não estava, para frustração de Cléber. Mas não fez perquirição alguma a respeito dela.

— Pai, precisamos conversar.

— Sobre?...

— Sobre uns planos que estou fazendo. Você sabe quanto tenho na conta?

— Uns seiscentos reais.

— Mais de dois mil.

Deodato ficou estupefacto. Precisava trabalhar quase o ano todo para arrecadar a quantia que, em três semanas, o maroto faturara.

— Mas devo dizer a verdade. Esse dinheiro não vem das vendas. Vem das esmolas que me dão, quando mostro os pedaços de pernas.

— Bem que Antunes preveniu...

— Vamos deixar o Antunes de lado. Hoje de manhã, eu fiz o teste da venda com e sem mostrar as pernas. Com as pernas de pau, foi um fracasso. Sem elas, muitos dão alguma coisa. Alguns jogam notas até de dez reais.

— Mas isso não está certo...

— Vamos conversar sobre o futuro da família. Eu não vou precisar mais comprar as próteses. Então, também não vou precisar mais guardar dinheiro, a não ser que reserve pra comprar outras coisas, como uma casa maior, roupas, comida...

— Não cabe a você...

— Espere um pouco. Paciência. Depois você fala. Eu não quero ser egoísta mas também não sou cego. As coisas aqui em casa estão muito apertadas. Mamãe está trabalhando...

— Ela está de olho na licença...

— Que se dane a licença! Eu estou falando nela não trabalhar mais. Nela ficar tomando conta das crianças. Nela cuidar do nenezinho que vai nascer. Nela trazer de volta o Gaspar.

— Sem o dinheiro dela...

— O dinheiro dela não é nada perto do que eu posso arrecadar.

— Você está querendo dizer que quer continuar...

— ... que vou continuar explorando a comiseração e a boa vontade do povo.

Não puderam prosseguir, porque Maria apareceu na porta e disse, tranqüila, que as contrações estavam com intervalos de menos de dez minutos. Era hora de ir para a maternidade.

Os cinco partos anteriores tinham sido fáceis. Nada fazia prever que a criança fosse oferecer qualquer espécie de problema. Os exames pré-natais foram favoráveis e o tempo de gestação só se reduzira de duas semanas.

De fato, o nascimento se deu em parto normal e a criança chegou perfeita. Diferente das outras quanto à cor da pele, porque todos os outros eram bem claros, como os pais, e a que estava chegando puxava para um moreno acentuado, principalmente porque os cabelos eram escuros e fortemente encaracolados.

Deodato não aceitou presenciar o nascimento, permanecendo na sala de espera. Cléber não o acompanhara, tomando a iniciativa de ficar com as meninas, as quais precisava conquistar, para o que havia pensado em algumas histórias. Contudo, elas preferiram ficar diante da televisão, o que o levou a desejar ficar com a mais nova no quarto, brincando com a boneca, rindo e aproveitando-se do fato de que era muito pequena para se interessar pelos programas.

Mas a menina não era expansiva e não largava o brinquedo de modo algum. Não falava palavra, apesar de ter quase dois anos. Quando Cléber fez menção de pegar a boneca, começou a chorar, desesperada, defendendo-se do ataque do irmão, a ponto de atrair a mais velha para o quarto:

— Essa aí agora não vai parar mais.

Tinha pouco mais de seis anos, mas a experiência lhe ensinara muitas das verdades da vida.

— Quando ela fica assim, o que é que vocês fazem?

— Vou chamar Rosângela.

— O que é que você está esperando?

Isabel saiu correndo

Quando Rosângela chegou, Lurdes estava soluçando, prostrada, quase sem fôlego. Mesmo no colo da amiga, demorou para se acomodar.

Cléber deduziu que as coisas não iam bem com a pequena. Talvez tivesse problemas mentais. Talvez sofresse de distúrbios cármicos, desses que ouvira Antunes descrever, segundo a vontade das pessoas antes da encarnação. Com certeza, estava precisando ir ao médico.

A presença, porém, de Rosângela, na intimidade do quarto, o deixou sem jeito. Puxou conversa:

— Ela sempre fica assim?

— Só quando é contrariada.

E o assunto morreu, ambos constrangidos com o inesperado encontro.

Cléber resolveu sair para o quintal. A mocinha foi atrás. Não queria perder a excelente oportunidade de matar a curiosidade a respeito da dolorosa condição do rapazinho.

— Você sente dor nas pernas?

Cléber se sentiu magoado. Tinha ela de falar do motivo de sua inferioridade?

— Às vezes, quando faz mais frio.

— Me disseram que a pessoa sente coceiras, como se ainda tivesse os pés.

— É verdade. Às vezes, quando acordo, desejo movimentar os dedos, como se ainda estivessem aí. E até parece que estão.

— Você não se incomoda com as minhas perguntas?

— Só um pouco.

— Então, não falo mais nada.

— Não tem importância. Falando ou não falando, vou continuar sem as pernas.

— Por que você diz “sem as pernas”, se você tem um bom pedaço abaixo dos joelhos?

— É essa a impressão que eu tenho.

— Mas deve ser bem pior...

— Você não tem outra coisa pra dizer?

Rosângela, não querendo deixar morrer a conversa, emendou:

— Você vai voltar a estudar, o ano que vem?

— Eu pretendo. Por quê? Você também parou?

— Eu preciso trabalhar. Mas vou estudar à noite.

— Você não tem medo? A barra é muito pesada. Tem muito bandido.

— A polícia tem rondado a escola.

— Mas até lá são dois quilômetros, na escuridão.

— Tem muita gente que vai.

Teriam conversado a tarde toda, se não viessem chamar Cléber. Era Antunes:

— Vamos até o teu barraco. Parece que o Banguela aprontou uma. Pôs fogo em tudo e agora está querendo se matar.

— Eu falei pra ele que o “crack” era a pior viagem.

— Então, não vai adiantar levar você.

— Me leve assim mesmo. Quem sabe...

— Suba na viatura.

E lá saiu o carro com a sirene aberta.



O quadro era muito triste. O fogo fora apagado pelos moradores. As paredes estavam negras de fuligem e o chão encharcado de água. Dentro da poça estava sentado Banguela, com um pedaço de garrafa na mão, ameaçando quem intentasse se aproximar. Ao ver o amigo, pareceu não reconhecer:

— Que é que esse aleijado veio fazer aqui? Veio me ver morrer?

Havia mais três policiais, tentando dissuadir o alucinado. Sabiam que não oferecia perigo mas temiam que se ferisse antes que pudessem dominá-lo.

Cléber se retraiu. Não sabia como ajudar. Antunes pediu para que dissesse alguma coisa:

— Você precisa distrair ele.

— Ninguém vai atirar?...

— Por que atirar? Ele é só um garoto assustado. Se quisesse machucar os outros, já estava na mão. O que não queremos é que o povo faça idéia errada da Polícia. É preciso agir com cautela.

Enquanto isso, imbecilizado, o pobre gritava:

— Quem é que gosta de ver sangue? — E exibia o corte da orelha não cicatrizado, de onde escorria sangue, porque arrancara o curativo.

Cléber criou coragem e se destacou do grupo:

— Banguela, você sabe o que está fazendo?

— Ô cara, vê se fica na tua!

— Você ‘tá perdendo a oportunidade...

Nem conseguiu concluir. Os policiais avançaram por todos os lados e abafaram o desatinado, não lhe dando tempo para reagir. Estava salvo. Debateu-se inutilmente nas mãos dos milicianos, até que foi algemado, teve as pernas amarradas e foi colocado na viatura.

Quando Cléber voltou para casa, levado por Antunes, encontraram Deodato com os olhos injetados de sangue.

— Que foi, pai? Aconteceu alguma coisa?

— Tudo bem, filho. Tua mãe e a criança passam bem.

— Então...

Antunes não deixou o interrogatório prosseguir:

— Cléber, você fica em casa com tuas irmãs. Eu vou levar teu pai ao Centro.

Deodato se deixou conduzir sem resistência. No fundo da alma, confiava em que os protetores iriam iluminar-lhe a mente e desfazer os maus sentimentos contra Maria e o recém-nascido. Pensara que a cor fora a causa da revolução de ânimo. Mas começava a perceber que era mera desculpa. Desencadeava-se um misto de desânimo e de impotência, após longo período de contenção. Precisava desabafar e Antunes compreendeu que, perto dos filhos, era o pior lugar. “No Centro”, pensava o militar, “os protetores encontrarão ambiente melhor pra exercerem o socorrismo. Aqui, os espíritos obsessores vão ter sucesso em sua empreitada de maldade.” Quase insensivelmente, repetia o pai-nosso, como a exorcizar os infelizes.

Cléber foi capaz de deduzir por que o pai estava tão triste. E pediu por ele, pela mãe e pelo meio irmão aos espíritos dos antepassados, que viessem para proteger a todos, inclusive ao Banguela, que o deixara vivamente impressionado.



À noitinha, voltava o pai mais tranqüilo, pedindo desculpas aos filhos, abraçando-os e prometendo-lhes amor e compreensão. Chorava mas não assustava. As quatro crianças vieram agradá-lo. Enquanto carregava Lurdes, Beatriz e Isabel passavam-lhe as mãos pelas faces. Cléber alisava-lhe os ralos cabelos.

— Amanhã, vocês vão querer ver seu irmãozinho? — perguntou, com o coração pequenino, com medo de que os outros estranhassem a criatura. — Então, vamos ver o que Cléber aprontou pra gente comer.

— Não fui eu, pai. Foi Rosângela quem esquentou o que sobrou do almoço.

Se Deodato não estivesse tão preocupado com os próprios sentimentos, teria percebido certa emoção nas palavras do filho.

O dia seguinte reservara-se para as alegrias do passeio. Apenas Cléber se compenetrara dos prejuízos com o incêndio e se decidira em definitivo por continuar pedindo. Interpretava os acontecimentos como sinal de que deveria prosseguir até vencer. Desvaneciam-se os pruridos de honestidade moral incutidos pela Doutrina Espírita.

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