Deodato e Maria se surpreenderam. Não podiam imaginar-se um diante do outro tão cedo. No dia anterior, haviam, de modo tácito, concordado com que deveriam separar-se definitivamente, uma vez que não tinham amor pelos filhos nem capacidade para criá-los. Não choraram pela desgraça do mais velho, tantas vezes os havia magoado. Mas se sentiam sem forças para discussões inócuas, que a consciência os levara a pensar em que pudessem ter culpa pela situação em que todos se achavam.
A suspeita de que o encontro havia sido forjado foi o que os fez se manifestarem, desde logo:
— Eu acho que vocês podiam ter avisado que minha mulher estaria aqui...
Odete se apressou em explicar:
— Só ela sabia que vinha. Pergunte pra ela.
Maria não podia negar que fora sem convite. E esclareceu:
— Vim porque quis. Ninguém sabia. Mas você me podia dizer que ele estava no Centro.
Antunes percebeu que se julgava mal a atitude de Odete, uma vez que ele mesmo sabia tanto quanto Deodato sobre a presença de Maria. Mas defendeu a esposa:
— Não acho que tenha havido traição ou má intenção em deixar que os dois se encontrassem. Vocês acham que são tão perniciosos agora, tendo vivido tantos anos juntos?
Deodato não queria acusar a mulher, mas se referiu à existência de um outro homem:
— Essa criança não é minha. Por que deveria aturar ela agora?
Antunes lembrou a lição do Centro:
— Por dever de humanidade, porque somos todos filhos de Deus e porque, pela norma de Jesus, vocês têm de fazer as pazes antes de morrerem. Do outro lado, as coisas ficam muito mais complicadas.
— Eu já perdoei ela. Pode fazer o que bem entender. Se quiser voltar pra casa, pode ir. Mas não pode querer que eu fique. As coisas que estão lá são dos dois, apesar de só eu levar dinheiro...
— E como você queria que eu trabalhasse com cinco filhos? Não bastava o que eu fazia...
Odete interferiu:
— Vocês não vão discutir aqui. Eu acho que tudo o que tinham de falar um ao outro puderam dizer ontem.
Antunes complementou:
— Se não quiserem continuar juntos, é problema de vocês. O que é problema dos outros é saber o que vai acontecer com as crianças. Cléber está muito revoltado no hospital. Mais uma ou duas semanas, vai sair. Quem é que vai ficar com ele?
Fez-se longo silêncio. Maria enxugava ou fingia enxugar algumas lágrimas. Deodato encostou-se à janela e ficou olhando a rua mal iluminada. Odete ansiava por alguma boa idéia, porque desconfiava de que Antunes havia colocado o problema com muita oportunidade, para poder trazer o rapaz para casa.
Foi Deodato quem voltou a se manifestar:
— O que é que teu amante acha de vocês cuidarem de Cléber?
Maria se viu acuada. Não podia deixar de dizer que estava só, uma vez que Antunes e Odete deviam ter conhecimento do fato. Estranhou apenas que o marido não soubesse.
— Aquele canalha desapareceu e me deixou neste estado. Mas ninguém precisa se preocupar comigo. Eu sei o que vou fazer.
Odete correu em auxílio do feto:
— Você não pode abortar. Isso é crime, perante Deus e perante os homens. Não volte pra casa nem pro teu marido, mas deixa a criaturinha viver. Pelo amor de Deus!
Quem lhe lesse no fundo da consciência, talvez achasse esquisito o sentimento de pesar, por ter de enfrentar tal situação. Como é que deixara esse problema entrar em seu lar, em sua mente, em seu coração? De qualquer modo, quando Maria fosse embora, não seria ela quem iria atrás, para aconselhar, para dissuadir, para convencer. E isso a deixava muito aliviada. Enquanto, porém, a outra ameaçava, tinha de cumprir o dever religioso de rogar, para que não levasse a cabo o aborto. Era tarefa a que não estava acostumada e a insistência do tema estava aborrecendo.
Foi Antunes quem buscou a solução:
— Eu acho que a criança deve nascer. Não vai ter destino melhor que os outros, filhos legítimos, que estão ao deus-dará. Isso não dói na consciência de vocês? Agora que a mulher está ganhando um pouco, vocês podiam voltar a morar juntos, cada um levando a vida como quisesse. No entanto, deviam comprometer-se a cuidar das crianças. Da minha parte, eu me comprometo a continuar ajudando no que posso, inclusive levando muita coisa do Centro Espírita, como venho fazendo a outras famílias. Só que, em nenhuma, o casal está separado, nem os filhos são tão odiados.
Falava asperamente. Queria provocar alguma reação. Nada. Os dois ouviram de cabeça baixa e não se dignaram responder. Estavam resolvidos a se manterem como estavam. Faziam contas, por certo, para ver quanto dinheiro iriam gastar com comida e com roupa, porque tinham percebido que os ordenados não chegavam nem para eles mesmos. Não fosse a regalia do vale-transporte e do vale-refeição e Deodato passaria fome. Maria comia no emprego e não precisava tomar condução. Era tempo de Cléber arrumar o primeiro emprego, mas resolvera sair de casa, não apenas no sentido físico, mas, principalmente, no psicológico, porque tinha raiva do pai e não respeitava a mãe.
Essas idéias ou impressões vagavam pela cabeça do casal. Foi Maria quem ponderou:
— Cléber vai exigir muito mais do que podemos oferecer. Pra ele é muito melhor ser recolhido pelo Departamento do Menor. Lá existem médicos e instrutores que vão...
Antunes não se conteve:
— Isso é desumano. Não se fala assim do próprio filho.
— Eu sou realista.
— Pois deveria ser humana. Deveria amar o filho.
— Eu amo.
— Não me diga que é por amor que quer que ele sofra nas mãos dos funcionários dessa instituição pública. Acho que a idéia de que lá ele vai passar bem é mera desculpa pra se livrar dele.
Odete não estava gostando de ver o marido tão agitado. Não estava com os pulmões cem por cento. Era melhor não se exaltar.
— As coisas podem ser resolvidas de outra maneira. Cada um fica em sua casa. Cléber fica com o pai e as meninas com a mãe.
— Aí, eu não vou poder trabalhar. Quem vai cuidar da menorzinha?
— A gente arruma uma creche. As coisas não são tão difíceis. Basta ter boa vontade. Pensa que não sei que existem uns trocados pra quem aluga os filhos pra mendicância?
Foi a vez de Deodato se intrometer:
— Vamos pôr a coisa em pratos limpos. Quanto você está recebendo pelas meninas?
Ninguém sabia desse dinheiro, mas existia, de fato. Não era muito, mas havia dado para uns vestidos novos e uns cosméticos, à época da sedução do pai fugitivo. Maria atrapalhou-se mas buscou safar-se:
— Se vocês pensam que estou recebendo dinheiro, provem. Não recebi nada nem pretendo.
Deodato conhecia bem a mulher, para se deixar embair pela bravata:
— Não vai ser difícil descobrir.
— Pois descubra.
As coisas não se resolviam. Antes, ficavam cada vez mais complicadas. O que Antunes não entendia era a passividade do marido. Tinha visto o homem gritar com os filhos e recebera reclamações de muita violência. Como é que agora não ia em cima da mulher? “Será que ele não quer mais nada com ela, realmente?”
— Vamos parar com isso, pessoal! O que está feito, está feito. Se recebe ou se não recebe, dá na mesma. O problema continua aí. O que nós precisamos saber é se vocês vão agasalhar os filhos ou não.
Maria abriu uma brecha:
— Se vocês me garantem que arrumam a creche ou alguém que tome conta das meninas, eu fico com elas. Mas não vou morar com ele.
— Nem eu quero ver você mais lá em casa. Eu nunca pensei em outra mulher e você...
Antunes interveio:
— Já chega. Essa discussão não vai ter fim, enquanto um não perdoar o outro.
Deodato se atreveu:
— Ela não tem nada a me perdoar.
— Como não? Quem é que chega em casa bêbado, gritando e dando pancada em todo o mundo? Eu já perdi o medo. Era bobinha. Era criança. Agora não sou mais. Em mim, você não põe mais a mão.
Antunes voltou a interromper:
— Isso tudo vocês vão resolver um dia ou outro. Se não for aqui, vai ser aos pés de Jesus. Aqui todos são religiosos mas ninguém confia na sabedoria de Deus. Vocês acham que o Senhor vai permitir que essa guerra dure pela eternidade?
Queria prosseguir, porém, sentiu que a cabeça dava mostras de estar atrapalhada. O dia fora cansativo e a noite ia avançando. Além do mais, estava com fome. Resolveu pôr um ponto final:
— Eu e minha mulher vamos prometer achar a creche. Mais ainda, vamos cuidar de Gaspar por uns tempos. O menino precisa de atenção e vocês não vão ter tempo pra ele. Quando as coisas melhorarem, um dos dois vai receber ele de volta. Tudo vai depender de Deodato ficar com Cléber.
Este não hesitou. Talvez suspeitando de que o rapazelho não fosse querer ir para casa ou porque julgasse que acabaria ficando com Gaspar, na casa do soldado, concordou imediatamente:
— Eu fico com ele, desde que volte em condições de se locomover sozinho. Eu não acho que, com ele na cama, eu vou poder trabalhar. Pra quem não sabe, deixei a bebida. Em outros tempos, teria descido a mão em quem me ofendesse, como ela me fez. Agora acho que não vale a pena. E vou dizer mais uma coisa: vou passar a ir ao Centro Espírita, mesmo que não entenda nada do que lá se diz. Pelo menos, as pessoas tratam os outros como gente.
Não era de muito falar e Maria até que se admirou de tão longo discurso. Passou-lhe pela memória o jovem que a cativara e teve ligeiro estremecimento de saudade. Mas passou.
Odete quis encerrar a conversa:
— Vamos à cozinha que é tarde e todos vamos levantar cedo. Vou esquentar o café.
Maria se despediu do casal e foi embora, sem olhar para Deodato.
Uma hora depois, Antunes procurava conciliar o sono, agradecendo muito aos protetores por terem providenciado aquele encontro salutar. E orava, pedindo mais luz para poder compreender o sistema utilizado para a aproximação das pessoas. Com certeza, não fossem os seus amigos da espiritualidade e os obsessores teriam impedido conversa tão promissora. Enfim, advertia-lhe a consciência, as coisas poderiam não transcorrer exatamente como haviam arquitetado. “O homem põe”, pensava bocejante, “e Deus dispõe”.