— Querida, estou desconfiado de que essa mulher não vai voltar pro marido.
— Com certeza. Tudo indica que a gravidez não é dele.
Antunes julgava o tema delicado, à vista da pregação moral que ouvia no Espiritismo. Mas não sabia como se furtar a comentar os eventos tristes que envolviam aquela desgraçada família. Tentou amenizar:
— Vamos dizer que ela tenha encontrado, finalmente, alguém que lhe dê segurança e que esteja aguardando o melhor momento pra ir buscar as crianças.
— Quem é que vai querer ficar com mais cinco filhos, um deles aleijado e revoltado e outro lerdo?! Vamos lá saber se as meninas também têm seus defeitos.
— Pelo menos elas estavam acostumadas a ajudar a mãe na arrumação da casa. Pode ser que venha a sentir falta...
— Se você pensa assim é porque está desejando que as coisas vão pela cartilha de Deus. É assim que o Padre Possidônio coloca os assuntos do púlpito.
— Como é que é?
Odete gostava de fazer um pouco de suspense. Se tivesse dito diretamente o que pensava, não conseguiria o efeito do interesse sobre as coisas sagradas da religião. Não que estivesse desejosa em levar o marido para a mesma fé, mas sempre haveria de demonstrar que algo de bom havia em freqüentar as missas aos domingos e dias de santos de guarda, porque a mais que isso não se atrevia, como muitas das beatas, amigas suas, as quais se punham, dia e noite, à disposição do clero.
— O Padre sempre diz pro povo que deve ser realista, que a vida, como faz questão de frisar, “flui” (e a boa mulher intensificava a palavra, sublinhando a estranheza do vocábulo em sua boca, para impressionar o marido, que vivia de livro na mão) naturalmente de todos os atos e ações dos homens. Deveria dizer que das mulheres também, mas eu acho que os padres...
Parou para meditar sobre o que acabava de fazer. Tinha colocado ponderável dúvida sobre as atitudes do clero.
“Em suma, que se danem! Eles não se casam!”
— Não entendi. Será que você está dizendo que as pessoas é que são responsáveis por tudo o que acontece na vida?
— Isso mesmo. Se cometem erros ou enganos, o castigo vem a cavalo.
— Vamos pensar no Gaspar. Que fez ele de errado, em que se enganou, pra estar com tão graves dificuldades mentais?
Odete poderia até supor que Cléber agira muito mal ao abandonar o lar paterno e, por isso, fora vítima do assalto e, posteriormente, dos maus-tratos que redundaram na perda das pernas. Mas não sabia como explicar o que ocorria com o outro. Tentou uma saída:
— Foi Deus quem quis que as pessoas fossem criadas com mais ou menos energia, com mais ou menos capacidade.
— Concordo plenamente. — Antunes sabia as respostas de cor, que havia debatido com os colegas, durante o curso de médiuns. — Só não sei por que Deus iria dar mais recursos pra uns e menos pra outros, se é verdadeiramente infinitamente justo, bom e misericordioso. Como é que Deus, sendo absolutamente perfeito, pode gerar seres tão imperfeitos, a ponto de não conseguirem sequer sobreviver? E olhe que há criaturas que chegam a nascer sem cérebro, sem pernas ou sem braços.
Odete queria dar uma resposta catolicamente plausível, mas não atinava com nada que fosse rigorosamente lógico:
— O que sei é que Deus tem o dom da criação e pode fazer o que bem entender.
— ... desde que não fira os princípios de sua natureza divina, entre os quais se contam a misericórdia, a bondade, o amor...
Odete teve uma inspiração:
— Aqui essas pessoas podem sofrer muito. Mas, depois que morrem, vão pro Céu, em completa felicidade.
— E as pessoas sadias, que cometem alguns enganos, dado que ninguém é perfeito, acabam ardendo nas chamas infernais ou fazem um estágio no Purgatório. Uns sofrem aqui, outros sofrem mais adiante e todos sofrem. Quem é que vai gozar todas as delícias do Paraíso? Os padres? As freiras?
Odete não gostou do desafio. Incomodava-a o assunto. Quis pôr um ponto final:
— A verdade é que nós não podemos julgar os desígnios de Deus.
— Mas podemos imaginar que não cometeria nenhuma injustiça.
— E como é que você explica que haja seres que nascem mortos?
— Aí é que está a Justiça Divina. Essas pessoas cometeram crimes e atrocidades em outras encarnações. Voltam agora ao mundo pra expiarem a dor que provocaram nas outras criaturas. Quando não chegam a nascer, isso significa que seus crimes determinaram estágio muito curto no sofrimento da carne. Também pode ocorrer de seus pais serem pessoas em débito e essas crianças vêm para, além de tudo, serem motivo de sofrimento cármico, pra que os pais possam refletir sobre a transitoriedade da vida e sobre a eternidade das virtudes.
Odete considerou que o marido consubstanciava as razões de maneira mais chã, mais terra-a-terra, mais racional. Obtemperou:
— Isso você e os teus amigos espíritas podem imaginar, mas não podem provar.
— Aí é que você se engana. Existem inúmeros testemunhos de espíritos que vêm contar o que fizeram e o que passaram de ruim na vida. Outros vêm explicar que há seres evoluídos, os chamados espíritos de luz, que fizeram o bem e que agora estão a serviço diretamente de Deus. São os anjos e os arcanjos.
— Não é o que a Bíblia diz...
— A Bíblia diz tanta coisa esquisita. Você sabia que Jesus não foi o único a ressuscitar os mortos?
— Claro que foi!
— Não pelo que está escrito no Velho Testamento...
Odete achou que a conversa estava indo longe demais, abrangendo tópicos em que era muito fraca:
— Se você é tão bom pra citar as passagens, por que é que não enfrenta os testemunhas de Jeová que vêm vender revistinhas na porta? Está sempre ocupado, fazendo isso e aquilo. Deveria discutir com eles. Aposto que teriam resposta pro que a Bíblia diz ou não diz.
Sentiu o policial que a esposa estava pendendo para a agressividade. Imaginou que, nesse diapasão, não iriam afinar os instrumentos. Resolveu voltar à vaca-fria:
— Quem sabe as meninas estejam bem, com famílias responsáveis. Gaspar é que desejou ganhar o mundo e foi colhido pela vagabundagem. De qualquer modo, estou temendo que o pai não vai querer ficar com todos os filhos. Aliás, nem os meninos também vão aceitar as bordoadas com que ele mimoseia os dois, principalmente o mais velho.
— Por falar no mais velho, não vai inventar de trazer ele pra cá também. Com o menor, eu sou até capaz de ficar. Por um certo tempo, até que você volte a trabalhar. O mais velho, eu não quero. Pensa que não me lembro do que você me contou sobre o sacrifício das professoras? E agora, sem as pernas, como é que vai ser? Nós não temos recursos...
— Vamos fazer a nossa parte, querida. Deus irá providenciar...
— Eu não falei que você está querendo seguir a cartilha de Deus?...
— Então, vou colocar de outra maneira, mas sei que você não vai gostar. Vamos fazer a nossa parte, porque esse é o quinhão de sofrimentos que merecemos, por termos falhado em outras encarnações, e agora precisamos ajudar os outros pra compensar.
— Que compensar, que nada! Eu não me lembro de ter prejudicado ninguém no mundo. Se eu tive outra vida, pelo que eu sou hoje, devo concluir que fiz tudo direitinho. Se fiz tudo certo, não mereço ser punida. Não é assim que vocês raciocinam lá no Centro?
Odete se rejubilava por ter inferido algumas conclusões de certas premissas. Antunes gostou de ver a mulher utilizar o cérebro e lhe disse sem delongas:
— Querida, eu não sei o que seria de mim sem você.
— Não seja irônico.
— Eu nunca pus o coração na mão como agora. Falo de peito aberto, com a vontade mais verdadeira do mundo. São estas conversas que mantêm o bom relacionamento entre os casais. Hoje em dia, o marido nem fica em casa e, quando fica, só pode falar nos intervalos das novelas...
— Ih! Estou perdendo o capítulo de hoje. Fique aí você com teus problemas e filosofias, porque eu vou ver televisão.
Antunes se entristeceu por ter facultado a fuga da mulher. Mas ficou livre para meditar sobre como iria cumprir a promessa que fizera a Cléber. Afinal de contas, precisava quebrar a resistência dela, caso contrário, o rapaz iria acabar na dependência das falidas instituições oficiais.
Naquela noite, não foi ao Centro, para ficar com o menino. Precisava, urgentemente, ir conversar com a diretora da escola pública mais próxima, para a devida transferência.
“Quem sabe uma professora diferente possa ser instruída sobre os problemas do menino e venha a incentivá-lo pro estudo?...”
Devaneava, mas que mais poderia fazer àquela hora, ainda mais amarrado em casa pelos ferimentos das balas?