— O método já está impregnado na mentalidade da turma. Antes das assembléias, sempre se discutiu em pequenos grupos. Não é verdade? Os representantes estão demonstrando-se inseguros, enquanto outros, que cederam a vez para o tema preparado, querem participar da rodada ativamente.
Achei que havia lógica na ansiedade dos colegas. Não teriam os mentores previsto a reação?
— Veja como Mário atua e tire depois as conclusões.
Realmente, o Professor não chamou os representantes. Pediu que se abrisse a roda e que se postassem todos ao mesmo nível, diluindo as equipes pela classe. Ninguém no centro.
— Quem deseja manifestar-se deve inscrever-se. Chamarei pela intensidade do interesse.
Vários insistiram para participar desde logo. Eu me resguardei para as observações. Interessava-me pela postura intelectual, sentimental ou moral dos mais agitados e também pelo sentido reflexivo dos que falariam por último.
— Com a palavra, pela ordem, Onofre.
Onofre tinha sido agitador político. Custava, ainda, a admitir que se suicidara. Jogara-se de alto edifício, tendo anunciado que o faria, para protestar contra a ordem socioeconômica. Queria deixar, como herança política, longo manifesto à nação. O período era de ditadura militar. A polícia, no entanto, recolheu todas as cópias, inclusive as que o correio não entregara aos jornais. O noticiário policial limitou-se a constatar o tresloucado gesto, tendo os repórteres suspeitado de assassinato, sem declarar, contudo, abertamente, as especulações. Os companheiros de lutas ficaram com medo e se esconderam. Quando voltou a democracia ao país, Onofre quedou esquecido. Não serviu sequer para mártir.
— Companheiros, sinto que estamos mal orientados. Longe de mim acusar o Professor Mário, diligente e operoso. Mas as diretrizes de trabalhos deveriam fazer constar todos os tópicos, para não sermos surpreendidos pela novidade da interrupção do projeto em andamento. Compreendi, perfeitamente, o que o mentor João veio fazer, pois não é difícil de reconhecer quando as coisas não estão de acordo com o planejamento. Mas até mesmo as divergências deveriam consignar-se na tabela de normas que nos foi passada. A novidade, agora, é diversificarmos os procedimentos, como se isso fosse matéria de simples reunião. Garanto que a experiência acumulada das trinta e três turmas seria mais do que suficiente para que esta situação incômoda fosse evitada. Diz meu orientador, constantemente, para confiar na capacidade dos instrutores, dos professores e dos administradores. Sendo assim, não caberia a mim nem a nenhum dos companheiros supormos que algo pudesse não estar realizando-se a contento. Proponho, pois, que interrompamos esta fase dos trabalhos e nos dediquemos ao estudo das matérias concernentes ao aprimoramento das bases psicopedagógicas sobre que estabelecer os critérios para a fixação dos projetos de desenvolvimento programático.
Mário ouvia com profundo respeito, concentrando-se nas palavras candentes do aluno, que incendiava os ânimos para a revolução. À vista de o orador ter dado um tempo, inquiriu, delicadamente:
— Nosso caro Onofre já disse tudo ou pretende utilizar ainda a palavra, para acrescentar?
— Desejo prosseguir mais um pouco. Peço, porém, que o procedimento de condensação de tempo não se aplique, já que desejo que todos consigam assimilar a propositura, através de livre e exaustiva reflexão. Só assim poderão todos reconhecer que tenho carradas de razão para propor a iniciativa. O ponto seguinte a considerar é que as inflexões energéticas de cada membro não se coadunam com as observações referidas pelo ilustre mentor, a tal ponto que percebo que muitos sequer atinaram com as dificuldades curriculares, preferindo aceitar, pacificamente, a colocação, estando dispostos a reorganizar o roteiro de atividades, segundo o padrão sugerido de cima. Deveremos sempre objetar contra as injeções culturais que não nos permitem sedimentar os conhecimentos pela experiência de vida. Afinal de contas, não estamos aqui para outra coisa, senão para melhorarmos o desempenho espiritual, no sentido de podermos influenciar quem esteja degenerado e propenso a continuar na prática do mal. As pessoas, na Terra, esperam por seres melhor estruturados, mental e sentimentalmente, para o enfrentamento das reformas que levarão o povo a crescer material e espiritualmente. Vejo que alguns colegas se impacientam. Como não pretendo insubordinar-me nem açambarcar o tempo, passo a palavra, resguardando-me o direito a responder, caso me venham a ser contrariadas as teses. Presumo que Mário e os demais estejam de acordo com esta premissa, que elevará o nível de democracia.
A contragosto, o colega se acomodou na carteira. Talvez esperasse que a turma o aplaudisse. A verdade é que as reações fisionômicas apontavam para antipatia. Ouviram-se dois ou três “apoiado!” — e só.
Mário indicou o próximo orador:
— Vamos ouvir Mariana.
A coleguinha de grupo era muito positiva. Levou os raciocínios para outro campo, de modo a não afrontar o orador que a precedera:
— Queridos irmãos, concordo plenamente com a posição ideológica firmada por Onofre. Falou em tese e disse muito bem que a programação não estipulou todos os tópicos que se enfrentariam. Para os próximos cursos, esse aspecto deverá ser melhor estudado, para o que poderemos dar nossa contribuição, estabelecendo, desde já, os princípios da reforma, de maneira equilibrada e racional. Onde é que estamos pecando? Segundo João, na formulação da lei de causa e efeito. Desde as épocas de encarnada — falo por mim, mas acredito que muitos tenham tido as mesmas experiências —, acostumei-me a levar a vida de acordo com os fatos. Não fui pessoa que se dedicasse a meditar sobre os procedimentos como resultantes das ações anteriores. Fixava objetivos, formulava prazos e realizava todos os atos em função de cumprir o projeto. Dito desta forma, vai parecer que era inteiramente pragmática. Entretanto, não enxergava muito longe. Os planos que elaborava visavam a, no máximo, um ano de conseqüências. Se quiserem gritante exemplo, poderei dizer que nunca me interessei em ter aposentadoria. Sendo assim, gostaria de marcar, como primeiro passo para que cumpramos as determinações do corpo docente, a regra áurea de não nos satisfazermos jamais com as implicações emocionais das recordações. Vamos engolir os sapos da insatisfação pessoal e dar como ultrapassada a fase dos estremecimentos. Para que tal aconteça de maneira desenvolta e constante, que um dos membros de cada equipe, escolhido de comum acordo, se arvore em guardião dos raciocínios isentos de emotividade, sendo-lhe facultado inquirir de cada participante aonde deseja chegar. Vejam que busco ser o mais coerente possível com a tese de que as injunções sentimentais perturbam o andamento das sessões de reflexão, o que deságua, de imediato, nos resultados a que chegam os pequenos grupos. Sei que as idéias não estão suficientemente buriladas, conforme nos preveniu que ocorreria o companheiro Onofre, mas aceitem a iniciativa e sobre essa base concreta, acrescentem outras normas, sempre no sentido de atender aos preceitos de que devamos aperfeiçoar-nos para o socorrismo evangélico. Muito obrigado.
Mário, à vista das duas longas explanações, quis medir o interesse dos demais e chegou a nova lista de participantes. Muitos haviam desistido para não serem repetitivos.
— Com a palavra nosso tenor, Reginaldo.
Todos gostávamos de ouvir o amigo. Falava com voz impostada, suavizando as expressões delicadas ou acentuando as idéias mais fortes. Naquela tarde, foi sublime:
— Creio que não devamos estabelecer critérios universais, tendo em vista a especificação do tópico. É que depende de cada um esforçar-se para não comprometer as reuniões. A idéia de se eleger um vigilante é excelente e bastará para a advertência aos que fraquejarem. Contudo, se nos apoiarmos nos queridos orientadores, poderemos dar-lhes a incumbência de nos medirem a freqüência “cardíaca”, avisando-nos dos disparates sentimentais. O que tem ocorrido é que muitos não acatam a indicação de que estamos equivocando-nos quanto aos cânones didáticos, menoscabando as informações que os “bons velhinhos” nos passam. Concordo com Onofre e com Mariana. As teses podem ser melhoradas na confecção de diretrizes para futuros grupos de suicidas. E vou mais além, no que respeita a colaborarmos com normas e estatutos. Proponho que os anais das sessões registrem as alterações de procedimento mais significativas, tanto no acerto quanto no desacerto das medidas corretivas do rumo, e que a história evolutiva da turma sirva para ilustração de como agimos para superar as dificuldades. Além disso, caso o querido Professor Mário aceite, quero deixar mais uma contribuição, no sentido de, uma vez por semana, inicialmente, e, depois, mais espaçadamente, reservarmos um momento do plenário para considerações metodológicas, o que se constituirá em avaliações preciosíssimas, para nossa própria orientação. Talvez, assim, possamos evitar outras intervenções dos mestres, sem, com isso, passar-lhes a idéia de que sua presença não nos seja altamente estimulante. Aliás, ao tomarem conhecimento desta deliberação — caso discutida e aprovada — poderão externar parecer sobre a possibilidade de estarem presentes para nos ajudarem. Era o que tinha para dizer. Muito obrigado.
Esvaziou-se a lista dos oradores. Procederíamos, em seguida, à votação das propostas. Ao contrário das assembléias da Crosta, ninguém encaminhou os projetos. Limitou-se Mário a considerar os tópicos, resumidamente, pedindo que nos manifestássemos levantando a mão. Queria demonstrar a todos quais as reações de cada um, evitando a leitura das freqüências evidenciadas pelas auras, para o que pouquíssimos estavam preparados.
— Votos para que se lavre protesto contra as deficiências programáticas.
Nem Onofre levantou a mão. Era comum que os argumentos dos demais abafassem o entusiasmo pouco esclarecido dos afoitos.
— Votos para a eleição de membro com as funções de “super ego” emocional, nos pequenos grupos e na reunião geral.
Unanimidade.
— Votos para que os conselheiros individuais intensifiquem a vigilância quanto aos desajustes sentimentais.
Unanimidade.
— Votos para que reabramos a discussão sobre a metodologia, na próxima semana e nas demais, até que a classe delibere sobre o momento de se encerrarem tais debates.
Unanimidade.
— Votos para se convidarem os mestres para as reuniões supra-referidas.
Unanimidade.
— Votos para que o tema das influenciações sentimentais seja novamente apreciado, amanhã, a partir da sessão de meditações.
Unanimidade.
— Nada mais havendo a tratar, que se lavre a competente ata da reunião, para que conste dos anais da turma. Roberto, aceita a tarefa?
Como recusar quem ensinara os rudimentos da redação a muitos dos presentes?
— Perfeitamente.
— Alguém discorda da indicação?
Fiz menção de discordar. Todos riram a bom rir, como se estivessem aliviando-se da tensão do dia.
Restava-me enfrentar as lembranças que Alfredo designara como “perigosas”. Contava com Honorato, para me manter lúcido e ponderado. E com Jesus, em quem começava a confiar.