Assim que me matriculei no setor educacional da colônia, fui convocado pelo diretor responsável pela recepção dos alunos.
— Senhor Roberto, temos conhecimento de suas habilidades no campo da escrita criativa, jornalista que foi na derradeira encarnação.
— Modesto...
— Quanto a ser mais ou menos conhecedor da arte de escrever, haveremos de testar na prática. Mas a modéstia é das virtudes mais apreciadas pelos mentores mais categorizados, de modo que deve colocar todos os atributos à disposição do trabalho que desejo passar-lhe.
— Encanta-me...
— Não insista nessa linha de reações. Ouça calado e, depois de algum tempo, se não se considerar apto para prosseguir, satisfatoriamente, ensinando noções de linguagem jornalística, volte a conversar sinceramente comigo, que estudaremos outras atribuições. A parte técnica das funções, o protetor lhe transmitirá.
— Permita-me agradecer-lhe...
— Vá com Deus!
Saí meio desenxabido, pois não lograra dizer coisa com coisa. Pelo menos, se minhas vibrações tivessem sido traduzidas como de extraordinária felicidade, já me sentiria recompensado.
Honorato esperava-me com todas as instruções:
— Como se saiu?
— Infeliz. Não disse mais do que quatro ou cinco palavras e dei a impressão de ser o maior bajulador.
— Ninguém consegue falar perante o comissário educacional Petrarca. Cumpre as obrigações com rigor draconiano.
— Disse-me que fui jornalista na derradeira encarnação. Não me recordo dessa profissão. Pelo que me consta, fui mero professor de escola primária.
— Ensinava para que séries?
— Terceira e quarta.
— Ensinava redação?
— Fazia o possível.
— Alguma vez promoveu concurso ou imaginou elaborar publicação de jornal escolar?
— Duas ou três vezes. Mas desisti por improfícuo para o ensino das matérias do programa. Os alunos se tornavam dispersivos. Poucos desenvolviam as aptidões e os demais caíam no ramerrão das opiniões copiadas. Os melhores se enfatuavam. Julguei melhor deixá-los na obscuridade das correções pessoais.
— Para Petrarca deve ter parecido suficiente.
— Suponho que os alunos...
— Companheiros.
— ...que os companheiros devam ser muito fracos.
— Certamente. Os reais jornalistas estão ocupados com tarefas muito superiores. Com tempo, você poderá crescer em conhecimentos e, quem sabe, irá escrever para os encarnados, a chamada psicografia.
Santíssima previsão. Mas para chegar até aqui, quanto sacrifício, quanto sofrimento, quanta dor! Quantas páginas queimadas!
No início, não recuperado das operações, dedicava duas horinhas pela manhã a ensinar os rudimentos da escrita a trinta parceiros, um de cada vez, internos como eu. Eram broncos onde eu me achava mais sabido, mas davam-me muitas lições em todos os setores do conhecimento.
Exemplo típico era o de José, mecânico que se deixara envenenar pela toxicidade emanada da combustão da gasolina. Enquanto lhe demonstrava como é que as palavras se classificam, enfatizando os substantivos, verbos e adjetivos, exemplificava ele com pistões, bobinas e virabrequins, segundo o papel de cada qual. Cheguei à conclusão de que essa era a missão que recebera de Petrarca e lhe disse.
— Pois é isso mesmo. Não só devo ensinar a você como a todos os outros.
Depois, Honorato me esclareceu:
— A reunião dos seres no etéreo se dá por faixas de freqüência das ondas impulsionadas pelos indivíduos. No Universo, a grosso modo, tudo é energia. Os semelhantes atraem os semelhantes. Não foi outro o critério que reuniu a sua turma. Todos se suicidaram, mais ou menos recentemente. Entretanto, cada qual traz, no bojo das experiências, habilidades próprias, que deverão ser permutadas, até que haja equiparação intelectual, para a administração dos conceitos evangélicos mais avançados. Todos passaram pelo catecismo da cartilha eletrônica e conhecem os pontos básicos da “religião” ou “filosofia”, que se constituirão na tábula rasa sobre que se irão registrar os conhecimentos evangélicos. Agora, é ter paciência uns para com os outros, até que se ajustem, segundo o padrão estabelecido pelo nível de realizações pregressas do grupo. Saiba que terá surpresas agradáveis, pois há companheiros que irão surpreendê-lo com conhecimentos específicos importantes.
— E como é que se entrosarão, se estão muito acima?
— Apenas quanto ao volume de informações, não quanto à qualidade moral. Um celeiro poderá estar abarrotado de espigas de milho...
— ...mas se estiverem bichadas...
Rimos ambos com a perspicácia interpretativa que aprendera, tantos exemplos me dera com tamanha simplicidade.
Três anos levamos nesse “curso” de preparação. Imperceptivelmente, a duração das sessões diárias foi recebendo acréscimos. O número de participantes das reuniões também foi aumentando. No final, passávamos mais de dez horas reunidos, organizadamente, com currículo de matérias estabelecido, horário distribuído, com a presença de todos os instrutores individuais. Voltávamos ao hospital para descanso nas acomodações imantadas.
Um dia, em meio à reunião, surgiu entidade de quem emanavam reflexos azulados, visíveis por nós, seres insignificantes e endividados. Silenciamos como se fora dar-se solenidade de muita importância.
Dirigiu-se o recém-chegado à mesa, que transformei logo em tribuna, e solicitou, redundantemente, a atenção dos presentes.
— Senhoras e Senhores, sou o representante do comissário Petrarca, com a missão de declará-los habilitados ao curso dos ingressantes da “Escolinha de Evangelização”. Meu nome é Mário e este é meu primeiro mandato como instrutor de equipes. Devo dizer-lhes que o título de Mestre não me cabe. Se quiserem me deixar satisfeito, chamem-me de Professor, como fazem com o colega Roberto. Ou me designem pelo nome. Nada de honrarias, porque não mereço.
Ato contínuo, sacudiu as vestes e a luminosidade azul desapareceu. Era o efeito de alguma substância quimicamente balanceada.
O riso foi geral e o Professor foi aceito simpaticamente de imediato.
— Eis a primeira lição. Não se iludam com o que a vista esteja conduzindo ao cérebro. Aprendam a ver com maior discernimento espiritual. Daqui para frente, tudo o que se disser em aula merecerá ser analisado em minúcias. A regra essencial será o respeito a todas as opiniões, contudo, enquanto houver conflito de idéias, o tema perdurará e só se dará como concluído quando a equipe manifestar a respeito um só pensamento e um só sentimento.
— Haverá possibilidade de se interromper a exposição do Mestre? — inquiriu um dos colegas.
— Por favor...
— Desculpe, Professor.
— Se não houvesse, você teria sido obstado de se manifestar, mesmo que desejasse muito. Para isso, estarão presentes os protetores, que estabelecerão vínculos particulares, até que todos estejam aptos a se controlar. No dia em que se despedirem os acompanhantes, estará vencida a primeira etapa do curso. Alguma pergunta?
Misteriosamente, durante mais de uma hora, quedamos silenciosos, embora todos estivéssemos tinindo para o interrogatório. Era a comprovação de que os benfeitores individuais estavam, de fato, exercendo as atribuições de controle. Ao mesmo tempo, todas as normas, horários e matérias do curso foram sendo passados de mente a mente, para demonstração de como deveríamos resolver os pequeninos problemas pessoais, inclusive quanto à transferência para as acomodações da “Escolinha”, para liberação dos leitos hospitalares.
Mário voltou a se manifestar:
— A maior preocupação do grupo, aliás lídima e louvável, está concentrada na continuidade das reuniões. Evidentemente, todos os exercícios e realizações, após terem sido executados individualmente e discutidos com os monitores... Arrependo-me de atribuir tal nomenclatura aos protetores. Monitores serão os que se destacarem e só serão reconhecidos como tais, dentro de muito tempo. Os exercícios pessoais prontos serão apreciados em pequenos grupos e os destes, em assembléia geral. Essa é a metodologia mais corrente entre os professores das turmas iniciantes. Vou apresentar-lhes, agora, o meu orientador, pois, tal como cada um de vocês, também estou amparado por benfeitor.
Voltamo-nos curiosos para a entrada. Lá estava a figura bondosa e sorridente de homem alto, vigoroso, a espraiar simpatia pelos modos como adentrou a sala, cumprimentando um a um, com palavras de incentivo, com carinhoso abraço. Ao receber-lhe o afago caritativo, senti-me profundamente impressionado. Todo o ser como que lhe vibrava em amor. E não senti vergonha por não poder retribuir. Pareceu-me natural que quem tivesse mais devesse espalhar pelos inferiores, sem constrangimentos, sem impingir condições, sem acusações veladas. Adquiri, naquele instante, integral confiança nas possibilidades de adiantamento.
Após haver estabelecido elo de verdadeira confraternização evangélica, o mentor assumiu posição ao lado de Mário. E se deu a conhecer:
— Meu nome é Maciel. Cabe-me a responsabilidade pelos êxitos e fracassos da “Escolinha de Evangelização”, pela qual respondo perante as autoridades máximas do sistema educacional da colônia. Peço-lhes que me ajudem a manter elevada a estatística dos êxitos. Para começarmos, conforme foi combinado, Honorato virá fazer a preleção de abertura, o saboroso “cavaco” dos educandários da Terra.
Acho que ninguém sabia o que era o cavaco e foi por aí que Honorato principiou:
— “Cavaco” é a aula inaugural, ministrada para orientação geral dos trabalhos curriculares, em forma de bate-papo.
Falou só por meia hora, no sentido de incentivar os estudos e as responsabilidades. Elogiou-nos muito pelo desempenho até então, mas preveniu-nos de que os assuntos iriam ganhar em extensão e profundidade. Ao final, devolveu a palavra a Maciel.
— Vocês não me irão ver mais até a formatura. Portanto, fiquem com Jesus no coração e amem ao Pai sobre todas as coisas.
Este reles noticiarista pede desculpas por não ter podido reproduzir com brilho o extraordinário efeito psíquico que a presença do superior da instituição nos causou. A verdade é que até hoje repercutem suas palavras e seus estímulos no ânimo de cada um de nós.