Janete regressou ao Brasil trazendo no ventre o germe de um novo ser, entretanto, não tinha consciência da gravidez.
Na Espanha, havia providenciado para que Prisco tivesse acesso imediato ao endereço de seu computador no Brasil, estabelecendo vínculo por “e-mail”. Ela mesma testou a moderna forma de conversação a distância, inteirando-se diariamente dos negócios e dos fatos familiares. Ao chegar, porém, não se empenhou em assinalar sua presença “on-line”, mantendo-se discreta na abertura da correspondência virtual, respondendo apressada e laconicamente às missivas candentes do amigo.
Para falar a verdade, passava os dias envolvida nos problemas da firma, sem jamais pensar no amante. Várias vezes, viu-se a consolar infelizes enlutados, quando se lembrava de que havia uma paixão a cultivar.
Prisco sentiu-lhe a frieza nas respostas, limitando-se ele mesmo a resumir os acontecimentos de sua intensa atividade artística, sem enfatizar as agradáveis reações das platéias. Escondeu também que já não se dedicava a compor pela manhã, entretendo-se com longos passeios a pé para distrair-se da preocupação de estar sendo esquecido. Acabou por não informá-la de que já não acrescentava novidades ao repertório, repetindo à exaustão as interpretações que aprimorara.
Ao cabo de dois meses, mediante o fato de não menstruar e de estar sofrendo enjôos, Janete terminou por realizar um exame ginecológico definitivo. Vinha ela desconfiando da gravidez, deixando-se assaltar por um temor muitíssimo plausível: o de que a notícia desse evento iria provocar reações penosíssimas no pai da criança. Agora, precisava refletir muito antes de tomar a decisão de comunicar aos familiares sua condição.
“Se Prisco relacionar o meu estado à tragédia da falecida esposa, haverá de acrescentar mais um sofrimento às terríveis lembranças. Talvez seja melhor visitá-lo de novo, voltar em menos de quinze dias, aproveitando que o feto ainda não se dá a revelar pelo volume da barriga. Depois de mais dois meses, aviso-o da gravidez, como se o rebento tivesse sido concebido na última viagem, e ele há de ficar menos preocupado na hora de eu dar à luz.”
Janete fez os cálculos de quando Prisco poderia vir ao Brasil, chegando à conclusão de que, se tudo decorresse normalmente, ele poderia imaginar chegar no sétimo ou oitavo mês, quando a criança já teria nascido.
“Tenho de fazer de tudo para minimizar os efeitos das impressões funestas que ressurgirão com certeza. Se for o caso, quando estiver com ele, conversaremos a respeito de uma hipotética gestação, quando poderei preveni-lo quanto a criar uma couraça evangélica ou doutrinária, confiando em que estamos sob a augusta proteção de espíritos de luz, entre os quais poderei situar Eulália e, quem sabe, a filhinha que ele perdeu. De qualquer modo, teremos de levantar a possibilidade de não ser o mesmo espírito que se reencarnará.”
Com tantos cuidados, visava a evitar o transtorno de uma presença incômoda ao seu lado. Se fosse possível deixar que a natureza cumprisse seu ciclo reprodutor, simplesmente, Janete iria preferir a trazer o amante para uma união legal perante o juiz de paz, porque imaginava que o pai iria responsabilizar-se pelo filho diante da sociedade.
Mas havia um problema a resolver: como explicar tão complexas razões à avó da criança? Dona Maria, se nada lhe fosse dito, iria perceber logo seu estado, ainda mais porque não havia como esconder os enjôos. Realizar uma viagem de negócios? Talvez. Contudo, não demoraria para que todos lhe notassem o ventre avolumado.
Criou coragem e decidiu que os pais de Prisco eram suficientemente espertos para concordarem com suas razões de preservá-lo das possíveis preocupações.
Na noite anterior à partida, esteve com eles para levar as encomendas de praxe. Foi quando, a sós com Joaquim, aproveitando-se de um momento em que a esposa foi requisitada por Bartira, lhe pediu a opinião a respeito de seu projeto.
— Pode falar às claras com a Dona Maria. Ela irá entender. Prisco teve sua hora de desespero, que foi tão grande que nos traumatizou a todos. Fale sem receio.
Confiando no ponderado senhor, quando Dona Maria voltou, Janete, fazendo muitos circunlóquios, revelou-lhe a gravidez antes de contar-lhe o projeto do engodo.
A reação de Dona Maria foi instantânea:
— Quer dizer que você está grávida há dois meses e não me disse nada, sabendo que o que eu mais quero no mundo é um neto? Parabéns, minha querida! Parabéns! O Prisco vai ficar muito feliz. Vou ligar já para ele.
Joaquim interveio:
— Acho melhor que ela mesma conte.
— Como? Ele ainda não sabe? E você, que sabe você?
Foi Janete quem precisou esclarecer todos os mal-entendidos. No final da noite, despedindo-se, agradeceu à sogra:
— Dona Maria, estou muito grata à senhora por tudo. Sei que foi a senhora quem se empenhou por me aproximar de seu filho. Esteja certa de que ele vai ficar aliviado quando receber o filho nos braços, sem o drama do nascimento.
— Querida, vá com Deus! Se depender de mim, Prisco vai poder ficar sossegado, trabalhando sem perturbações.
Dois dias depois, estando nos braços do amante, Janete percebeu que ele estava com o humor alterado, como se algo demorasse para ser esclarecido.
De fato, Prisco a recebeu, aguardando que se manifestasse a respeito de seu estado, uma vez que já lhe haviam dito que ela se encontrava grávida.
— Querido, que é que você tem?
— Estou bem. Por que não estaria?
— É que você não me mostrou nenhuma composição nova.
— Estou trabalhando no meu “show”, exclusivamente.
— Quer dizer que...
— Quero dizer...
Ambas as falas morreram nas reticências e um longo silêncio caiu sobre ambos. Janete considerava se deveria ou não prosseguir em seu plano. Prisco se aborrecia por não atinar com uma boa razão para ela calar, quando havia o maior motivo para que sua felicidade ficasse completa.
Janete insistiu:
— Você não parece ter ficado contente com minha chegada.
— Para dizer a verdade, esperava ansiosamente que você viesse.
— Mas, assim que me recebeu no aeroporto, foi como se lhe tivessem atirado um balde de água fria.
— Foi assim transparente a minha reação?
— Você ficou calado, com o cenho franzido, como se o mundo lhe pesasse às costas...
— Desculpe-me. Nada disso eu planejei. É que algo barrou minha alegria.
— Diga-me o que foi.
— Eu acho que você é quem deveria dizer.
— Santo Deus, o que foi que eu fiz?
— Você sabe melhor do que eu.
— Pois eu pensava que você ia me carregar no colo, me fazer carinho, me dar prazer. Ao contrário, preocupou-se com as malas, quis acomodar as roupas, procurou as coisas que sua mãe lhe mandou. Não fez uma única pergunta a meu respeito.
— Será que vamos ter o nosso primeiro atrito?
— Prisco, você acha que eu atravessei o Atlântico para procurar briga?
— Tem razão. Eu sou o culpado de tudo.
— O que você andou “aprontando” em minha ausência?
— Janete, essa pergunta me ofende.
— Não estou falando de mulheres. Estou falando que você só agora está revelando que não está apanhando mais as músicas do além. Esse era um assunto importante...
— Eu tenho todos os seus “e-mails” arquivados. São meras expressões lacônicas, sem nenhum entusiasmo pelo nosso relacionamento.
— Quem fala! Você jamais usou o viva-voz, preferindo ficar escrevendo.
— Cansei de verificar se você estava “on-line”. Nunca a achei do outro lado da linha.
— Eu lhe disse que estava trabalhando muito. Estava treinando meu irmão, tanto que hoje estou aqui em carne e osso, sem nenhuma preocupação com os negócios.
— Pois eu estou de saída para o ensaio.
Ato contínuo, o artista apanhou dois violões, colocou-os na viatura, recomendou a Janete que estivesse pronta à noitinha, que viria buscá-la.
Não havia ensaio nenhum marcado, mas Prisco fez questão de ir à casa de espetáculos, buscando o palco diante do salão vazio e, sem ligar a guitarra aos alto-falantes, debulhou sua raiva em acordes furiosos. Seus arcanos ibéricos revoluteavam no ar um desespero de paixão cigana.
Enquanto isso, Janete vasculhava no computador a correspondência vinda do Brasil. Queria examinar as conversas que ali se registravam. Foi quando topou com alguns recados de Mirtes, que se esmerava na prestação de contas dos depósitos que recebia. De repente, lá estava a explicação de tudo:
“Parabéns, papai.”
Era isso. O médico que lhe constatara a gravidez devia ter contado tudo à funcionária do hospital. Ou esta havia lido o prontuário. Como ficara ela sabendo, agora não importava. Era preciso, o quanto antes, desfazer a horrível situação.
Preparou-se para receber o amante, no entanto, quem compareceu foi um chofer de táxi enviado por Prisco.
“Será que ele está pensando que o filho não é dele?”
Finalmente Janete compreendia toda a extensão do problema. Tal foi sua comoção que se sentiu desfalecer. Felizmente, havia deixado a porta entreaberta, de sorte que o prestativo motorista, tendo passado vários minutos, resolveu chamá-la de novo. Sem obter resposta, abriu de vez a porta, dando com a moça caída. Tentou reanimá-la como pôde, mas não conseguiu. Imediatamente, chamou uma ambulância, descartando a hipótese de removê-la sozinho.
Reassumindo a consciência a caminho do hospital, foi obrigada a manter-se internada para observação.
Retornando, o taxista só encontrou o porteiro com o dinheiro da corrida, a quem passou o recado do que havia acontecido, insistindo para que se avisasse o gentil cavalheiro que havia telefonado.
Não ocorreu nenhum mal-entendido. O recado chegou até Alfredinho, que ligou para o ambulatório indicado, tendo conversado com o médico que atendeu Janete, o qual informou que ela estava repousando de um mal-estar provocado, ao que tudo indicava, por uma queda de pressão.
Imediatamente, o empresário comunicou a Prisco o que sucedia, dando-lhe nome e endereço do hospital, propondo-se a levá-lo até lá, se fosse do desejo dele.
— É melhor você ficar, para providenciar as alterações no programa até que eu volte. O que eu quero é que você me arranje um motorista, pois não vou perder tempo com estacionamento.
— Aqui estão as chaves de sua casa, deixadas pelo taxista.
Um empregado do estabelecimento prontificou-se a conduzir Prisco. Trinta segundos depois, estavam cortando as ruas, não demorando mais do que sete minutos para chegarem.
Correu Prisco ao balcão de atendimento, identificando-se, rogando para ver Janete. Antes, porém, teve de conversar com o médico, que lhe explicou que, à vista da gravidez, era bom que a paciente ficasse repousando ao menos uma noite no hospital, para se saber se haveria algum risco de abortar. Não se assustasse o pai, que nada levava a crer que isso fosse acontecer.
Afligiu-se Prisco ainda mais. À porta do quarto, já tremia, vendo-se diante de Eulália esvaindo-se em sangue.
Precisou apoiar-se no médico, que fez que se sentasse numa cadeira do corredor, abaixando-lhe a cabeça para o sangue afluir. Por pouco não desmaiou.
Ali permaneceu por alguns minutos, tempo suficiente para refletir que estava deixando vencer-se por uma fraqueza inconcebível para quem se sabia sob proteção de espíritos de escol. Caiu em si, imaginando que ferira uma criatura, só porque não fora ela suficientemente hábil em contar-lhe com naturalidade fato tão importante.
Criou coragem, ergueu-se, aprumou-se, respirou fundo, solicitou que os do plano espiritual o auxiliassem e passou o umbral que o entregava ao interior do quarto em que jazia Janete sob um lençol verde claro. Sobre o travesseiro, o rosto lívido, a maquiagem borrada, o cabelo desarrumado.
— Querida, querida, perdoe-me, por favor! — foi o máximo que conseguiu balbuciar.
Janete saiu do torpor em que mergulhara e mal ouviu o que o amante havia dito. Como ele encostara a cabeça na dela, abraçou-o com força, soluçando, pedindo-lhe entre lágrimas que a desculpasse:
— Prisco, não tenha medo: a criança é sua. Eu é que fui uma tola. Seus pais sabem que eu não pretendia causar-lhe nenhuma preocupação. E agora estou precisando contar-lhe que você vai ser pai num leito de hospital. Por que você veio ver-me? Não deveria estar tocando?
O violonista percebeu que Janete estava tensa. Por isso, contornou a situação:
— Ainda é cedo. Já vou voltar. Eu quis vir ver como é que você está. O médico quer que fique até de manhã. Então, assim que terminar o “show”, venho ficar com você. Fique sossegada. Eu entendi tudo. O mais importante é o nosso filho. Só quero que você saiba que jamais pensei que o filho não era meu. Mas agora não é hora de explicações. Vamos fazer uma corrente de vibrações, solicitando pela proteção de nossos guias.
Vinte minutos depois, Prisco chegava para dar início à sua participação no espetáculo da noite. Quando regressou ao hospital, encontrou Janete às voltas com ligeira hemorragia. Sentou-se ao lado dela, acariciando-lhe os cabelos, absolutamente confiante em que os três venceriam todas as dificuldades.
Não dormiu, vigiando o sono induzido da paciente, atento para os exames que, de hora em hora, eram realizados, aguardando o efeito dos medicamentos. Pela manhã, o médico declarou que o pior havia passado, mas que era preciso manter a enferma internada. Providenciasse o marido o registro de entrada, acertasse as contas, trouxesse tais e tais peças de roupa e voltasse com a mãe ou alguma irmã da paciente, que era preciso o apoio de pessoa da intimidade.
Tudo poderia ser feito, com exceção da presença feminina.
Não havia importância, desde que o pai da criança se dispusesse a permanecer ao lado da enferma.
Foi assim que Prisco se viu, de repente, com sérios problemas profissionais, uma vez que não arredou pé do leito de Janete nos próximos dias, não aceitando nenhuma sugestão de Alfredinho, até chegarem Bernardete e Dona Maria, convocadas expressamente.