Ia alta a madrugada quando Prisco resolveu que era hora de deitar-se. Dedilhara temas do cancioneiro espanhol, nada em que se empenhasse artisticamente, mas, dado o aparato técnico, tornara as canções perfeitas do ponto de vista da execução. Fora um verdadeiro exercício que lhe manteve a mente ocupada para não refletir sobre os eventos do dia.
Estava, porém, sem sono, de sorte que a lucidez dos pensamentos lhe impôs o fruto da meditação que outorgara ao inconsciente:
“Caso eu me dedicasse a escrever a história de minhas atitudes, os leitores iriam estranhar sobremaneira o fato de eu ter iniciado cantando a infelicidade de haver perdido Eulália, terminando por me interessar por Janete. Eu precisaria explicar que o organismo sente o jejum a que o tenho forçado, de forma que a presença de outra mulher o estimulou para reações meramente físicas.”
Não gostou da linha que impregnou às idéias, censurando-se quanto ao fato de imaginar-se perante um tribunal:
“Eu não cantei a minha infelicidade. Estava realmente infeliz. Eulália, por favor, se você se acha entre a multidão de espíritos que me cerca neste momento, perdoe-me a desculpa esfarrapada pelo desejo que senti de permanecer conversando com Janete.”
Atinou com outra terrível contradição:
“Como é que, sem conhecer absolutamente nada da doutrina espírita, eu me atrevo a suspeitar a existência de um mundo extracorpóreo, imaterial, colocando nele entidades que viveram outrora encarnadas como eu? A moça do centro — como é mesmo o seu nome? — Mirtes, pareceu-me bastante segura de minha capacidade de entendimento, tanto que me deu os livros para ler. Por que eu não me levanto e apanho um deles e não me ponho a folheá-lo, adquirindo as noções mais fundamentais que me estão fazendo falta?”
Perguntou mas a única reação que teve foi de revirar-se na cama, buscando a posição que lhe favorecia o sono. Foi quando surgiu-lhe no campo da visão a figura do velho, exatamente como o vira ao voltar-se na cama do ambulatório. Precisou esfregar os olhos para desfazer a nitidez da imagem, apesar da semi-obscuridade em que estava imerso.
“Eu pedi para que surgisse Eulália e vejo este pobre andrajo, inexpressivo em sua máscara de moribundo, retrato da desgraça humana, fazendo crer em que perecer na flor da idade, como Eulália, seja perpetuar a juventude.”
Confundiram-se em sua memória a filhinha recém-nascida, que morrera em seu colo, e a mortalha branca que envolvia o volume do pequeno corpo da “santinha”. A figura cadavérica do velho parecia rir tetricamente da confusão em que ia a mente do violonista, agora com o sono a oferecer-lhe, definitivamente, seu regaço de iniquidade.
Ainda lhe perpassou pelo cérebro a sensação escaldante da areia sob os pés e a queda no vazio de um despenhadeiro, que lhe eliminou a compreensão do encadear de causas e efeitos, como se a inteligência abrangesse num ápice de tempo todo o passado transformado num presente que ele era incapaz de dominar.
Em pleno sonho, pensava estar desperto e prosseguia a refletir desassisado:
“Minha querida Janete, esta criatura sem nome é a filha que Deus me levou juntamente com Eulália. Se você puder transformar-se nela, como vejo que está ocorrendo, fale comigo e me acalente o amor que se esvaiu com o fogo que abrasou meus dedos sobre as cordas, fazendo vibrar o ar e enchendo-me o coração de ternura. Se eu puder ficar neste plano etéreo para sempre, não vou cuidar de mim nem de minha existência, mas vou agradecer o estado de letargia em que permaneci desacordado até despertar para a brancura de uma tenda hospitalar.”
Mecanicamente, a recordação da vigília fez que se voltasse na cama, mudando o centro de interesse das longínquas composições mentais:
“Quem há de ser tão poderoso a ponto de espatifar os corações, matando os seres amados como a sonoridade cava de um violão que se despedaça contra a parede, emitindo seu derradeiro grito de lamentação e extrema agonia?”
A partir desse ponto a rapidez das imagens fez desaparecer a concatenação das frases, de sorte que se via a correr sem destino, sob um sol a pino, observando que todo o povo avançava mais veloz que ele, cada uma das pessoas virando-se para espreitar-lhe a fisionomia, sem denotar emoção. Era com naturalidade que encarava o povo, muitos misteriosamente passando rápidos, sentados à mesa, comendo e bebendo, rindo e conversando, sem qualquer alteração do ríctus facial.
A partir desse ponto, o sonho se tornou pesadelo, com túmulos abertos e defuntos carregando cruzes, em interminável procissão que adentrava um prédio imenso todo iluminado, recebidos por um casal de anfitriões, um casal de jovens sorridentes em que reconheceu os pais.
Era a última cena de que teria lembrança de manhã ao acordar. Sabia que continuara a se debater com visões que o forçavam a rogar pela clemência do Criador, mas estranhava a impressão de que, se não entoasse as cantigas de sua arte, a voz não ecoaria no espaço ao derredor.
Acordou cansado, ouvindo ao longe o apelo estridente do telefone. Fugindo ao hábito, deixou-se ficar na cama até extinguir-se o chamado eletrônico. Mais tarde, ouviria o recado gravado do frustrado interlocutor.