O temor do depoimento se desvaneceu, quando o Delegado quis conversar a sós com o comerciante, deixando o advogado no corredor.
— Não se preocupe que o assunto é particular — advertiu o policial, para tranqüilizar o causídico.
Baltazar reconheceu a autoridade com a qual havia tratado anteriormente, de modo que não se sentiu ameaçado.
— Caro amigo, quer tomar um cafezinho, uma água?
— Não, obrigado. Não tenho tido vontade de nada. A morte de Isabel tem sido um peso difícil de carregar.
Estava presente o guia do moço, que não aprovou o exagero das declarações. Baltazar sentia, sim, a ausência da mulher, mas nada sofria além da vontade de tê-la ao seu lado, como estava acostumado. As vibrações dos benfeitores espirituais o vinham mantendo calmo e a primeira manifestação do guia no terreiro lhe dera a certeza de que a esposa estava recebendo amparo de espíritos muito adiantados.
— Você tem idéia de quem possa ter mandado executar a jovem?
— Não foi assalto?
— Para mim, em segredo, você pode dizer a verdade. Desta sala nada sairá que possa causar-lhe qualquer transtorno.
— Que garantia me dá o Doutor disso?
— Os seus amigos do Rio me contataram e me pediram para aliviar a sua barra. Você pode estar seguro de que não vai ser molestado. Aliás, eu mesmo bati o seu depoimento, no qual você declara que houve o furto de diversas jóias e de dinheiro. Providenciei até a relação e a descrição das peças. Você vai dar ao seu advogado. Se ele julgar conveniente alterar alguma coisa, acatarei. Então, quem foi que mandou assassinar a moça?
— Eu não posso ter certeza, não, Senhor, mas acho que foi a mando dos traficantes lá do Rio. Minha mulher era capaz de denunciar um dos chefões, com quem conviveu antes de me conhecer. Fugiu dele e a quadrilha deve ter-se sentido ameaçada. E o cara até que nos havia deixado quietos, favorecendo a vinda para São Paulo, com algum dinheiro.
— Foi com esse dinheiro que vocês se instalaram no comércio e adquiriram a casa?
— Isso mesmo.
— Então, eu vou lhe ajudar e não vou insistir nas investigações. O primeiro grupo que eliminarmos vai ser responsabilizado pelo latrocínio praticado em seu lar. Está bem assim?
— Se o Senhor fizer isso, só poderei agradecer.
— Pode contar comigo. Quais são os seus planos?
— Não vou tocar o negócio pra frente. Vou passar o ponto e vender a casa. Por sorte, as escrituras não foram lavradas e os contratos podem ser transferidos dos antigos donos para as pessoas que comprarem as propriedades.
— Não se esqueça de abrir diversas contas bancárias, para não ter de fazer declaração de renda vultosa.
— Pode deixar comigo. Sei como essas coisas se fazem.
O depoimento engendrado recebeu aprovação e Baltazar assinou com o coração sereno.
Algum tempo depois, Baltazar e família se instalavam no Rio de Janeiro, modestamente, tendo reservado cerca de cento e cinqüenta mil reais para o caso de terem de devolver aos credores.
No Centro Espírita “Irmão Barnabé de Rezende”, Baltazar foi recebido com muita alegria. Durante a primeira sessão, o Babalaô recomendou que o filho de santo não devolvesse o dinheiro, porque seria empregado no crime. Disse em voz alta:
— A carnificina está uma loucura nesta cidade. O favorecimento dos crimes compromete a maioria das pessoas. Muitos são cordeiros aí e chegam ovelhinhas aqui. Pensam que o dom mais precioso é a manutenção da vida, mesmo que o preço seja a morte de muitos. Não exercem a cidadania consciente, aceitando as leis da força, da metralha e do silêncio. Violência não se revida com violência. Mas é preciso não dar aos malandros a oportunidade de seqüestrarem as crianças para o vício, para o tráfico e para o roubo. Quem tiver coragem, que oponha resistência, incentivando os que não estão contaminados a protegerem os filhos. Muita gente se muda, desfazendo-se das vantagens de morar de graça. A aventura lhes sai muito cara, quase sempre, pois caem nas malhas de outras quadrilhas, para onde quer que vão. O país inteiro está nas mãos dos bandidos. A situação é muito difícil. É quase impossível atender ao que estou pedindo. Muitos não chegam mesmo a compreender o que seja viver em paz, sem a pressão do terror. Que fazer, então, para ser recebido pelos guias, depois da morte, em boas condições espirituais? Ajudar a cada irmãozinho. Falar do bem e da solidariedade. Não estimular os pequenos furtos, como muitos fazem, dizendo que, se todos roubam e prejudicam, eles também têm de roubar e prejudicar. E rezar muito, pedindo luz aos orixás para que os pensamentos de vingança ou de revolta não vos levem a praticar loucuras.
Baltazar sentiu que as palavras eram dirigidas principalmente a ele. Estava arquitetando devolver o dinheiro aos bandidos, para surpreendê-los e executá-los. Julgava que, assim agindo, estaria livrando a comunidade de alguns assassinos. Não tivera tempo para bater papo com Mário. Encontraram-se rapidamente depois da missa mandada rezar por Marlene, mas os temas mais importantes ficaram sem esclarecimento.
Julgava que a orientação do Babalaô não poderia ser assimilada pelas pessoas humildes.
“Esses coitados vivem nas mãos de quem tem poder. Se falarem um ai-jesus, morrem de tiro ou facada. Se os bandidos descobrem que estão pregando a resistência, mesmo que estejam até perdoando aqueles que os maltratam, vão acabar com eles. E sabem disso, não porque ouviram contar, mas porque vêem acontecer todo dia. Quero que me apontem uma só instituição de amigos de bairro ou mesmo religiosa, protestante ou católica, que não esteja sob o comando dos chefes do tráfico ou que não esteja cumprindo certos acordos para sua sobrevivência, cuidando apenas da saúde ou da parte espiritual, muitas vezes em nome dos que lhes dão o dinheiro arrecadado do tráfico, do meretrício, do seqüestro, do assalto aos carros blindados, do contrabando, que sei eu...”
Baltazar pensava como se estivesse conversando com os irmãos da espiritualidade. Mas não obtinha respostas. Apenas ouvia ressoar em seu ouvido a recomendação do guia: “Rezar muito para que os orixás enviem luz para acabar com a idéia de vingança, de desforra.”
Uma noite, quando descansava em casa, recebeu a visita de dois mascarados. Assustou-se mas não esboçou reação.
— Somos aqueles com quem Sandra mantém contato.
— O dinheiro que vocês deram à minha mulher está comigo.
— Não estamos atrás do dinheiro. Fica com ele. O que desejamos saber é se pretendes utilizar a certidão de nascimento do filho dela, para adotares a criança.
— Pensei muito nisso. Mas...
— Então esquece. Deves saber que o nosso trato com ela foi estabelecido sob a condição de ela não mexer com a Justiça. Pelo menos até que autorizemos.
— Foi o que ela me disse.
— Vamos estabelecer o mesmo princípio. Tu guardas a certidão e fecha a boca. Quando for a hora, daremos permissão para que requeiras a guarda da criança.
— Por que não pode ser agora?
— Porque temos razões próprias que não te importam. Foi por isso que pagamos regiamente. Mas não estamos querendo a criança, podes ficar sossegado.
Deram por encerrada a conversa, sem esperar a resposta, que não julgavam possível que fosse negativa.
No dia seguinte, Baltazar ligava para Mário. Precisavam conversar urgentemente sobre Leandrinho. Durante a noite, quase não dormira, meditando sobre a orientação dada pelo Babalaô. Se aceitasse a proposta dos desconhecidos, cairia justamente nas malhas de poder dos bandidos. Não estaria fazendo por merecer a ajuda dos orixás. Sentia forte o medo de provocar quem poderia exterminar-lhe a família. Se fosse só, enfrentaria os caras, que o trinta-e-oito estava ao alcance da mão. Não receava voltar ao plano do etéreo, se para lá fosse enviado mais cedo, como a maioria das pessoas. O que não queria era partir endividado, comprometido com o mal, sem ter efetuado todo o bem possível, pois só agora é que estava começando a entender as razões de estar vivo. Com certeza, o Doutor Mário teria informações a respeito do poderio das quadrilhas. Além do mais, precisava expor-lhe a novidade do encontro noturno.
“Se eu fosse médico, poderia partir a qualquer momento, tanto é o bem que teria feito, aliviando o sofrimento de tanta gente. Se Isabel estivesse aqui, me mostraria o caminho do progresso, tecendo a minha paz, com muito amor e carinho.”
Nesses momentos de recordação aflitiva é que chorava, ocultando as lágrimas dos familiares. Naquele dia, o coração não ficou opresso com o desejo de revidar o crime. Orou sentida prece pela companheira e pelo filho e chegou a pedir o perdão do Pai para os assassinos. Mas, nesse ponto, via os cinco homens destroçados em acidente na Via Dutra. Não matava com as próprias mãos. Fazia-o com o pensamento.