Tinha o médico fixado na mente que deveria resolver o problema do emprego do dinheiro arrecadado na venda de livros. Avisara Antônio de sua intenção, ao marcar a entrevista. Não queria demonstrar desconfiança mas adquirir a certeza de que as coisas transcorriam bem para a entidade, segundo os padrões morais, mais ainda, evangélicos que embasavam as obras de Kardec. Aliás, precisava saber como é que o Codificador vivera e quais os proventos que obtivera da venda dos livros.
— Como vais, Doutor? Sê bem-vindo!
— E tu, como estás? Preparaste as contas, conforme te pedi?
— Nem é preciso. No decorrer da conversa, o teu interesse irá ditando as minhas respostas. Como nada temos a esconder, basta ofertar as notas de compras, o levantamento do estoque, o lucro obtido e os balancetes da aplicação do dinheiro. A entidade é missionária, mas presta contas regulares aos associados, que é dever da Diretoria sempre demonstrar que está precisando cada vez mais da colaboração de todos, que a caridade se amplia, a pobreza aumenta e os assistidos se multiplicam.
— Não era bem isso que eu tinha em mente. Conversava, outro dia, com uma pessoa que me dizia que os Centros Espíritas eram ricos...
— Manda essa pessoa vir comprovar para nós, porque, quem sabe, os rendimentos estejam escorrendo pelo ladrão.
— Quanto a Kardec?...
— Não é preciso quebrar a cabeça a respeito. Como eu não tinha os elementos para te responder, solicitei ajuda a um dos palestrantes. Eis aqui um artigo publicado na “Revista Espírita”, pelo próprio Kardec, em que responde às acusações que sofrera de que estava milionário e que vivia às expensas do Espiritismo. Vasculhei os diversos números e encontrei inúmeras prestações de contas. Na verdade, o Mestre Lionês, porque Kardec nasceu na cidade de Lião, na França, trabalhava muito e ganhava pouco. Chegou mesmo a cuidar da escrituração contábil de uma casa de espetáculos, pelo que foi censurado de imoralidade.
— Não pensei que tais pensamentos pudessem passar pela cabeça de quem tinha tantas preocupações filosóficas, doutrinais e existenciais.
— A maldade humana se exerce sobre o que não entende ou não domina. A maledicência investe contra quem parece ser privilegiado. Até o bondoso Chico Xavier foi visitado por essa “Madame” a serviço das forças malignas, digo mal, dos espíritos infelizes que moram nas Trevas. Se nosso médium maior recebesse para si os direitos autorais das obras que publicou, não teria vivido da caridade dos amigos por tanto tempo.
— E com quem ficou o rendimento que deveria ser dele?
— Muitíssimas instituições de caridade receberam os dividendos das vendas, aplicando-os de forma judiciosa ou não.
— Não prestavam contas?
— Não estou afirmando que houve desvios de verbas ou que algum malandro tenha embolsado o que não lhe pertencia. Mas quem está isento de ser ludibriado pelas pessoas? Quem me diz que muitos dos irmãos carentes não estariam aproveitando-se da inexperiência dos dirigentes das entidades aquinhoadas?
— Quer dizer que toda a riqueza que poderia ser acumulada pelo médium ficou diluída na sociedade, sem que proporcionasse a criação de uma fundação de benemerência, que se regesse de forma a produzir...
— Nenhuma fundação desse tipo.
— E as editoras? Essas devem nadar em dinheiro...
— As casas espíritas que publicam e distribuem as obras buscam manter instituições de caridade diversas, como orfanatos, creches, hospitais, escolas etc. Mas a prudência manda que eu não ponha a mão no fogo por todas. Os homens crescem neste ambiente horrível em que o valor do dinheiro paira acima de qualquer outra coisa. Não é impossível que tenhamos exceções à regra da morigeração dos emolumentos cobrados pelo trabalho editorial. Mas vamos à demonstração...
— A mim me bastou a tua preocupação em ser fiel aos teus pensamentos. Não quiseste fazer-me crer na santidade do povo espírita. Entretanto, ficarei muito feliz em conhecer os diversos setores de trabalho dos que exercitam o bem nesta casa.
Antônio ficou muito feliz em poder explanar a respeito dos serviços comunitários do grupo de que fazia parte. E ressaltou:
— Como arrecadamos dinheiro, precisamos fazer o bem. Atualmente, a distribuição de cestas básicas está um pouco desorganizada. São tantas as famílias carentes, que não podemos exigir de ninguém que corresponda aos nossos anseios evangélicos, vindo ouvir as palestras ou receber os passes. As grávidas são assistidas de modo especial, porque têm interesse em receber o enxoval e o leite. Essas são instruídas em pequenos quefazeres domésticos, são orientadas para cuidarem dos bebês, são levadas a perceber a importância da vacinação e da amamentação no peito até os seis meses, no mínimo, etc. Estou fazendo referência a este tipo de assistência para interessar o Doutor no campo da saúde.
— Penso que não poderia vir auxiliar...
— Não tenho a pretensão de convencer-te a tanto. Talvez, mais tarde, conhecendo de perto o pessoal da Diretoria e avaliando os nossos conferencistas, vendo que há advogados, dentistas, professores, pequenos empresários e comerciantes engolfados no trabalho, aí poderá acontecer de te dar vontade de aplicar teus conhecimentos para benefício dos que labutam diretamente com as pessoas carentes.
Mário não pretendia enveredar pelo setor da assistência social. Levantara o problema do dinheiro porque desejava responder, para satisfação própria, às rudes ponderações do traficante. Ansiava, naquele instante, por conhecer os procedimentos relativos à espiritualidade. Queria confrontar o que se fazia ali com o que presenciara no terreiro e lera em Kardec. Por isso, fugiu do tema:
— Como estás dizendo, mais tarde irei pensar sobre isso. O que eu gostaria era de saber a respeito das invocações dos espíritos.
— Vejo que a leitura foi bem feita. Atualmente, as casas espíritas filiadas ao movimento, que se regem, mais ou menos, pelas normas emanadas das federações estaduais, não praticam a invocação. Realizam sessões de doutrinação, para as quais são trazidos irmãozinhos necessitados de esclarecimento quanto à sua condição moral ou existencial. A escolha ou seleção deles é feita pelos benfeitores espirituais, ou seja, pelos mentores e guias que amparam a instituição ou os médiuns. Há quem realize sessões de cura, ou seja, atendimento de pessoas doentes. Mas os perigos de envolvimentos obsessivos são tantos que, se não houver acompanhamento médico profissional paralelo, os dirigentes inibem a voluntariedade dos mais afoitos, impedindo que o centro se torne simples tenda de milagres. Se estiveres mesmo interessado, vem numa quinta-feira, quando realizamos sessões abertas ao público.
— Quer dizer que existem sessões particulares ou secretas?
— Claro que sim. São reservadas para tratamento de afecções espirituais graves, como os casos de possessão ou obsessão descritos largamente por Kardec. Aliás, ele mesmo, como li na “Revista”, passou a restringir o ingresso de pessoas às sessões que presidia, depois que percebeu que havia muita gente que, voluntária ou involuntariamente, perturbava o andamento dos trabalhos.
— Compreendo. Não vou prometer, mas se der, estarei aqui na próxima quinta.
— Às quinze para as oito da noite, porque, depois que iniciamos, ninguém mais entra.
— Combinado. Agora eu queria ler algo novo ou que consideres muito importante para o entendimento da Doutrina em sua evolução, conforme previra Kardec. Não te esqueças de que eu li “A Gênese”.
Antônio tinha as suas preferências mas não queria induzir o neófito a trilhar o seu caminho:
— Eu gosto muito dos livros de André Luís, psicografados pelo Chico e por Waldo Vieira. Como o autor espiritual foi médico, talvez venhas a gostar de ler.
— É uma boa idéia.
— Apenas quero ressaltar que as obras começaram a ser ditadas ao plano material na década de quarenta, o que poderá significar, para um espírito moderno, sério problema, quanto aos conhecimentos técnico-científicos.
— Estás querendo dizer que devo atrelar-me às condições históricas...
— Isso mesmo. Mas há inúmeras informações adiantadíssimas para a época. Quem sabe isso possa representar certa motivação a mais.
— Não tenhas tantos cuidados. Se eu não gostar, te digo e pronto!
— Então recomendo que leves a coleção completa e que leias em ordem. Existem muitas pessoas que se tornam espíritas após a leitura do primeiro livro, “Nosso Lar”, mas devo confessar que escutei de pessoas cultas que existem muitos atrevimentos nas descrições, que as coisas no plano espiritual não podem acontecer conforme estão lá...
— Continuas com cuidados desmedidos. Devo dizer-te que tinha a intuição de que não chegaria a ler um livro sequer de Kardec. Aliás, minto. Tinha o fugidio desejo de que isso acontecesse, para não me envolver com a temática espiritual. Eram reminiscências do tempo acadêmico e impressões adquiridas do catolicismo. Minha mulher é católica e eu tenho ido com ela à missa. Agora estou impaciente para assistir a uma sessão de incorporação. Sabes por quê? Porque, no fundo, desejo desmistificar o que se passa aí, dado que as sessões da Umbanda não me convenceram plenamente. Se me decepcionar, poderei dar esse sentimento como desculpa para não aparecer mais. Podes ver que vou diretamente ao ponto.
— Descreveste exatamente o que eu também sentia no começo. Contudo, o que aconteceu comigo foi que me deixei captar pelo magnetismo suavíssimo provindo dos beneméritos da casa, desenvolvendo a mediunidade, o que me deu a exata concepção de como se dá o relacionamento com o meu protetor, promovendo-me oportunidade de partilhar da honra de oferecer aos irmãos sofredores o lenitivo de amor que nos ensinou Jesus.
Mário não queria crer em que Antônio estivesse a doutriná-lo:
— Ouvindo tu falares dessa forma, pareço estar num culto protestante.
— Mas lá não encontrarás referência aos irmãos da espiritualidade.
— Com certeza!
— Desculpe-me o arroubo...
— Desculpo, nada! Quero ver-te em plena ação mediúnica, na quinta.
— Vais ver.
Mário saiu sobraçando os livros da coleção, que adquirira por preço que considerou irrisório. E foi pensando no caminho como é que podiam ganhar muito dinheiro, se o tanto arrecadado em cada volume era tão pequeno. Fez as contas e chegou à conclusão de que somente a venda de cerca de quinhentos mil exemplares poderia oferecer lucro suficiente para enriquecer alguém. Ficou-lhe claro que o movimento da pequena livraria não representaria a principal fonte de rendas da instituição. Como se sustentariam? Com doações e arrecadações obtidas em festas, como as quermesses dos padres? Permanecia o mistério.