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Erotico-->34. PENSAMENTOS RELIGIOSOS -- 05/10/2002 - 07:00 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Durante toda a viagem, na volta de São Paulo, Marlene vinha imaginando um jeito de esclarecer os arroubos religiosos do marido. Católica praticante, estava recebendo orientação do confessor, quanto ao que podia fazer para conduzir o cônjuge para a Igreja Católica. Ficara muito contente quando Mário passou a acompanhá-la regularmente à missa. Sabia que era por causa dos bandidos, mas desconfiou também de que havia interesse em Isabel. Calou-se, a ver até onde as coisas poderiam ir, mas a macumba, em São Paulo, foi a gota d’água.

Esperou que as crianças estivessem dormindo, deixou Joana vendo televisão e solicitou que o marido a acompanhasse ao consultório.

— Vamos ter uma conversa bem séria a respeito de religião. Enquanto você ia levando a vida, dizendo que era materialista, tudo bem. Eu sabia que, um dia ou outro, despertaria para a verdade de Deus e da Santa Madre Igreja. Mas não estou gostando nada de teu interesse pela religião dos negros.

— Posso assegurar...

— Deixa terminar, depois você fala. Eu acho que foi o seqüestro que nos fez pensar mais seriamente na vida e na morte. Eu me apeguei com meus santos e com Nossa Senhora. Pus toda minha fé em que intercederiam por nós e que salvariam as crianças. Foi o que — graças a Deus! — aconteceu. Aí nós fomos para o Nordeste e você quis acompanhar a gente à missa. Você me deixou muito contente. Isabel ia junto. Parecíamos uma família do século passado, com mucama e tudo. Quando voltamos ao Rio, você fez questão de nos levar. Ia Isabel. Ia Joana. Nem precisava que você fosse.

— Mas havia o risco...

— Só mais um pouco de paciência. Eu sei que sempre existe o perigo de as crianças serem levadas de novo. Deus nos livre e guarde e a Santíssima Virgem nos ampare! Mas eu quero dizer que esse motivo até ofende a minha fé. Se eu acredito na proteção celeste, você não precisa nos acompanhar, para ficar aborrecido. Pensa que não reparo em que a solenidade está se tornando muito tediosa, muito cansativa para você? Agora Isabel não vai mais. Só a Joana. Será que é a mocinha que está fazendo falta?

— Ciúmes, agora? Tu estás ficando louca!

— Não se trata de ciúmes, que já passei da idade. É que foi ela quem nos trouxe todas as perturbações. As ameaças, o seqüestro, esta mudança corrida, todo o medo que passamos, tudo aconteceu depois que ela entrou na nossa vida.

— Eu posso...

— Espera mais um pouco. Só mais uma coisinha. Foi por ela que foste ao terreiro. Foi pelo namorado dela que voltaste à macumba. Estou sendo bastante clara no que te estou dizendo. Enquanto estávamos só nós dois, eu não fui capaz de meter na tua cabeça que Deus existe e que nos criou à sua própria imagem e semelhança. Aí, apareceu a mocinha, cheia de experiência de vida, e logo foste tragado pelo inferno, que nesses locais só as forças do mal é que podem existir. Anjos é que não são.

— Peço que me desculpes se te dei essa impressão. Mas acho tremendamente injusto ser acusado por um crime que não cometi. Esqueceste de que li todos os livros que me deste, desde o tempo do noivado. A tua insistência encontrou correspondência em mim, que jamais desejei que te privasses de tua fé.

— Só faltava essa...

— Nem cuido de te levar a qualquer lugar em que não te sintas à vontade, porque eu mesmo não me senti nada bem. É um mundo totalmente estranho, materializado, sem qualquer envolvimento do povo com idéias de sacrifícios, como na Igreja Católica, onde nos dizem que o Cristo morreu na cruz para nos salvar. Quando levaram as crianças, pensei muito em Nossa Senhora e na dor da perda do filho querido, dependurado na cruz. A Igreja Católica nos orienta para entendermos que a vida é feita de muita dor e que cabe a Deus nos destinar para o Céu ou para o Inferno, segundo o nosso procedimento, conforme as nossas obras. Aí é que pensei muito em tudo o que sempre fiz na vida e não descobri nada que pudesse me acusar de me aproveitar dos outros. Ao contrário, sempre atendi ao sofrimento humano com muito apego à vida, tudo fazendo para minorar a dor. Até dos traficantes tenho cuidado de graça, em troca de suposta proteção de perigosos bandidos, que são eles mesmos.

Marlene ouvia intranqüila, pois era absolutamente verdadeiro. Esperava que dissesse algo que pudesse contrariar, mas tudo se encaixava na realidade de vida do marido. Até as espórtulas durante a coleta eram significativas, produto de diversas horas de trabalho. E jamais ouvira um murmúrio sequer, acusando os padres disto ou daquilo. E, depois, ajoelhava-se quando preciso, fazendo, inclusive o sinal-da-cruz, imitando os gestos dos fiéis. Mas o coração...

— Não quero fazer a apologia de mim mesmo. Não sou santo e tenho muitas horas de profunda alegria, quando brinco com as crianças. Acho que não é perda de tempo. Posso até dizer que estou sempre na pediatria, fazendo que os pequeninos se sintam melhor, levando-lhes brinquedos... Você sabe. O meu coração não tem reservas. Aprendi isso com as lágrimas e com o sangue dos que chegam ao pronto-socorro. Jesus disse para que deixassem que os pequeninos fossem até ele. Pois têm vindo a mim e eu os tenho recebido com muito amor e carinho. Desse modo, acho muito injusto dizer que Isabel pudesse me representar algo diferente do que o muito que tenho feito por todos. Por outro lado, como é que poderia ofender à pessoa que mais amo e prezo no mundo? As nossas lágrimas já se uniram muitas vezes e nossos corações bateram juntos em situações de tanto sofrimento... Por favor, querida, não me peça para desfazer o que não fiz. Não me peça para desamarrar o que não amarrei.

Marlene enlaçou o marido e lhe pediu desculpas, sussurrando em seu ouvido. Comovera-se com a exposição surpreendente e emotiva. Sobretudo, via as coisas com mais clarividência, que as idéias religiosas transpareciam no longo desabafo. A bem da verdade, espantava-se com a facilidade verborrágica do marido, sempre muito loquaz mas nunca com tamanha ênfase oratória. Se soubesse do velho hábito de incentivar as enfermeiras, utilizando expressões religiosas, talvez desconfiasse de que poderia estar falando só da boca para fora.

Mário desejava prosseguir:

— Você tem razão num ponto crucial. Estou, realmente, ficando cansado com a repetição enfadonha da missa. É sempre a mesma coisa. O sermão varia segundo o tópico do “Evangelho”. Mas o discurso visa sempre a mostrar que os velhos estão precisando renovar a visão do mundo, que a salvação está na “libertação”. No domingo seguinte, sobe um ancião ao púlpito e clama contra a irresponsabilidade dos jovens que atiçam o povo contra as instituições. Até que é divertido, mas é luta interna de poder e domínio. Um dia o povo atende o que dizem lá e, em lugar de invadir as terras desabitadas, vai é acampar na igreja mesmo. Aí é que quero ver se vão ou não chamar a polícia.

— Não sabia que tinhas essa visão preconceituosa...

— Preconceito nenhum, que até acho que as riquezas dos padres serviriam para a construção de hospitais e escolas.

— Os padres e as freiras mantêm muitos hospitais e dão emprego a muitos médicos. E as escolas são incontáveis.

— De acordo. Mas cobram muito bem, não só dos particulares como do próprio Governo.

— Vejo que o teu espírito religioso está perturbado pelas coisas materiais.

— Devias ver que estou preocupado com a vida dos que sofrem. O Leandrinho era cuidado por uma carola. Onde estavam os padres que não viram que o menino estava nas últimas? Aposto que nunca subiram o morro para levar...

— Não vá ofender quem não te fez nada!

— Ao contrário, vou elogiar muitos que enfrentam as autoridades e fazem acusações do púlpito contra as vigarices oficiais. Mas essas são posturas meramente materiais. Onde fica o espírito religioso? Na repetição enfadonha dos mesmos atos seculares...

Nem sabia por que estava voltando os pensamentos para essa linha de crítica, a qual abandonara desde que se casara e se dedicara à construção da vida familiar e profissional. Fazia ressuscitar idéias antigas sobre as quais cristalizara o repúdio à espiritualidade. Não percebia direito que estava pleiteando dos sacerdotes conduta mais coerente com a pregação, com a doutrina. Não atinava com a própria necessidade de deslindar os mistérios da existência pós-carnal.

Marlene não quis levar avante o discurso irreverente. Sabia que o marido não estava sendo inteiramente sincero. Via, no discurso, a transfiguração do medo, a personificação da impotência. Deixou, porém, de levantar esse aspecto, que a ela também terrificava.

— Vamos “tornar à vaca-fria”.

— Vamos.

— Eu quero saber se vais continuar indo à Igreja.

— Vou.

— Vais aceitar os Mandamentos das Leis de Deus e os da...

— Vou acompanhar vocês, com o máximo prazer de vossa companhia. Não me peças nenhuma profissão de fé. O que te prometo, solenemente, é estudar os temas da espiritualidade, lendo os livros que julgares apropriados. Não está bem assim? Não estou sendo sincero, honesto, leal e justo?

— Eu acho que pretendes ir de novo ao terreiro.

— Primeiro diz se não estás vendo em minha resposta a transparência da verdade.

— Se pensas realmente assim, eu ficarei muito contente.

— Por que essa condição? “Se pensas...” Eu não duvido que me tenhas revelado tudo o que sentes. Estranhei que sentisses ciúmes. Mas não vou criar um cavalo de batalha por causa disso. O que pretendo é não ir de novo ao terreiro, mas não vou esconder que desejo ler os livros espíritas, para me inteirar dessa filosofia. Essa liberdade eu desejo preservar, já que não te impeço de nada.

— E vais querer freqüentar um centro espírita...

— Não tenho nenhuma noção do que se passa nesses lugares. Se for como na Umbanda, meu navio há de passar ao largo.

— E se te convenceres de que os tais espíritos são importantes e que realmente exercem poder sobre os mortais? Vais em frente, deixando-me sozinha na igreja, com as crianças?

— Não queiras me envolver sentimentalmente. Eu te disse que sempre irei contigo aonde fores. Não basta a minha palavra? Há dez ou quinze anos atrás, se me dissesses isso, irias me deixar furioso. Veja como estou com a mente bem mais pacífica. Em todo o caso, vai faltar muito pouco para me ofenderes. E eu nem te disse que desconfio de que o teu confessor esteja por trás dessa tua atitude...

Marlene se cansara do longo desafio intelectual. Entendeu que Mário iria fazer o que lhe desse na telha, não importando muito o que lhe dissesse. A citação do confessor, por ser verdadeira, não a estimulou ao debate. Apenas refletiu nas palavras que lhe dissera: “Se o teu marido é bom como dizes, evita de brigar com ele. A oração à Virgem há de ser o recurso mais eficaz para mantê-lo amoroso e fiel. Deus saberá perdoá-lo, se não tiver espírito religioso. Eu creio, porém, que ainda o veremos na igreja, com o coração arrependido por não ter vindo antes. Não foi Jesus quem disse que os trabalhadores da última hora é que seriam os primeiros, no reino do Senhor?...”

Estranhou Mário que Marlene fizesse silêncio e se aconchegasse em seus braços. Decerto, havia tocado em algum ponto sensível, para fazê-la calar-se. Melhor assim, que começava a se impacientar com o descalabro da petição. Seriam os prenúncios da menopausa? Iria pôr tento no comportamento da mulher, para sentir-lhe as transformações psicológicas. Afinal de contas, era médico e, se precisasse, reabria os compêndios e tratados. Ou consultaria os colegas da especialidade. Pensou na conversa que tinham tido e não viu muito sentido. Era necessidade de mais afeto e carinho. E isso ele daria naquela noite mesmo, pois nunca questionara seu amor à esposa. Era das coisas estabelecidas na vida, como a necessidade de comer e de beber. Isabel era bonitinha, bem formada de corpo, trazia toda a experiência do meretrício, mas era negra... Esse pensamento racista o perturbou. Abraçou com mais força a mulher e a beijou com ternura. Selava seu amor e seu respeito pela criatura que, um dia, lhe entregara a virgindade. A outra...

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