Enquanto Alfredo se punha muito jururu com a introdução de Isabel na casa de Marlene, Dráusio agradecia ao Pai a misericórdia de aproximá-la de um lar equilibrado pelo respeito conjugal e pelo amor familiar. Eram coisas que a jovem jamais encontrara na vida.
— Você não teme que seja descoberta quanto ao fato de ser prostituta e vir a ser repelida pelo médico, que a deixará sem o filho?
— Não vou pensar em probabilidades. Não lhe dizia que o meretrício poderia prejudicar o nosso trabalho? Pois, agora, se conduzirmos direito os pensamentos de todos, poderemos incentivá-la a desistir da profissão.
— Eu não vejo futuro nesse emprego de doméstica.
— Nem eu. A nossa pombinha não se acostumará à gaiola, mesmo de ouro, mas dará um tempo para podermos providenciar.
— Que tem você em mente?
— Que acha de provocarmos Joana a que busque a verdade?
— Iremos jogar uma contra a outra...
— Não, necessariamente. Basta que façamos que Isabel perceba que tudo nesta casa se faz com boa vontade, em prol dos semelhantes. Não é verdade que Mário, de certa forma, sacrifica a família, dando atenção à pobreza?
— E daí?
— Vamos fazer que Joana elogie os patrões, o que não será difícil, à vista de tanta ajuda que vem recebendo. Conforme as respostas de Isabel, poderá comovê-la. Além disso, as crianças são amoráveis, educadas. Se se afeiçoarem à juventude de Isabel, poderemos estabelecer liames de benquerença que se fortalecerão mais tarde em relação ao filho.
— O que temo na moça é a facilidade com que tem inventado situações. Como responderá ao fato de não ter carteira de trabalho, se estava bem empregada? Vai dizer que foi roubada? Que perdeu? Aí, terá de buscar um número hipotético, em registros oficiais. Obter carteira nova é fácil, mas ir até a suposta patroa para dar baixa, será muito difícil. Se fosse com Leandro, tudo se faria num passe de mágica, que a marginália...
— Não vamos construir castelos quiméricos. Pensemos positivamente. A verdade é o que interessa. Se bolarmos um plano para que venha à tona, tudo se arranjará. É uma questão de termos confiança em quem a agasalhou, sabendo, embora, do risco de enfrentar o pai contraventor.
— Isso é verdade.
— Então, vamos passar a noite...
— Ou parte da noite...
— Certo. Vamos passar umas horinhas imaginando qual será o melhor meio de levantarmos o véu da existência da pobre mãe, para a família de Mário.
Isabel não se agradou muito do quartinho minúsculo, mas avaliou que havia um bom banheiro para as duas e percebeu que tudo era muito limpo. Joana a recebeu com reservas. Negra também, tinha pelas jovens preconceitos sérios. Avaliou o corpinho da ninfa e pensou que, no mercado de carne humana, deveria ter valor superior ao das tarefas domésticas. O fato de ter aparecido no meio da noite, obrigando-a a levantar-se, não era indício de que se tratava de algo muito normal.
Marlene advertira:
— Amanhã, vamos esclarecer todos os fatos, já que precisamos fixar os limites das atribuições. Boa noite às duas. Vejam se se entendem sobre as acomodações. Como temos dois quartos disponíveis, está garantida a privacidade de cada uma. Quanto aos móveis, se for preciso, mobiliaremos a contento. Durmam bem!
Caprichava no vernáculo, que era como exercia poder sobre os subalternos. Caberia a Isabel admirar tanta facilidade mental. Entretanto, voava com asas não aparadas, de modo que manobrava em sentido oposto. Não foram poucos os homens que se utilizaram dos mesmos recursos, sempre para a mesma conclusão. Passou-lhe pela mente que, se Marlene insistisse nessa atitude, estaria na sua mão, pela frieza do raciocínio e pelo tirocínio dos relacionamentos. Não pensou nesses termos, mas Dráusio e Alfredo interpretaram assim.
Assim que a patroa se retirou, Joana estabeleceu os seus domínios:
— Eu fico com o quarto maior, onde estão as coisas do finado. No teu aposento, ainda estão coisas minhas, mas amanhã eu guardo tudo. Quando vais trazer o resto da bagagem?
— Se me dispensarem amanhã à tarde, vou buscar as roupas e uns poucos objetos. Não pretendo trazer muita coisa.
— Não te preocupes, que tudo vai dar certo. O Doutor Mário é muito bom e Dona Marlene quer as coisas todas no lugar, de modo que quanto menos badulaques no quarto melhor. Amanhã eu te chamo às seis. Será que vais agüentar levantar cedo?
Jogava verde. Colhia verde:
— Estou acostumada a levantar às cinco. Não precisas me chamar. Acordo sozinha. Boa noite.
A cama, dizem, é boa conselheira. Isabel, Joana e Marlene, sob o mesmo teto, receberam influenciações bem distintas.
De manhã, às seis, Joana batia na porta de Isabel:
— Seis horas. Vamos levantar? — De si para si: “Essa daí, parece que vai dar trabalho!... Queira Deus que não!...”
Mas Isabel estava acordada e pronta para atender ao chamado. Deixara a velha prevalecer, que assim lhe dissera o travesseiro.
— Já estou indo...
A manhã passou na azáfama das crianças. Os dois mais velhos iam a escolinha infantil. O mais novo, com seus três aninhos, ficava reinando pela casa, arrastando os brinquedos e puxando a saia de Joana na cozinha. A presença de Isabel o desconcertou de início, até que percebeu que não iria tirar farinha com ela, que não aceitou o pontapé que lhe deu. Foi carregado até a sala, com muito cuidado, mas algumas palavras duras lhe fizeram ver que não deveria tentar novamente. As mãos eram delicadas mas firmes. E o vinco na testa muito expressivo.
Dráusio se entusiasmava pelas cenas em família. Alfredo olhava com desconfiança.
Mário voltou às dez e foi deitar. Pediu para não deixarem que a criança o acordasse. Estava extenuado. De passagem, dirigiu-se a Isabel:
— O menino está reagindo bem aos medicamentos.
Lembrou-se de que a mãe não lhe perguntara nada sobre o estado de saúde do filho. Talvez esperasse que ele lhe dissesse tudo. Não adiantaria nada mais, porque queria sentir o interesse dela. Mas Joana estava rondando a sala, de modo que resolveu deixar a conversa para depois. Avisou que levantaria às quatro mas, se chamassem do hospital, era para avisá-lo. Explicassem para Marlene, quando voltasse com os mais velhos.
Isabel reconheceu a delicadeza do Doutor em não chamar a atenção diante de Joana para a existência da criança. Voltou para a cozinha, onde foi instruída pela outra para cuidar do Joãozinho. Ela daria conta do almoço. Quando a patroa chegasse, iria aprender a arrumar a mesa.
No outro plano, Alfredo constatou que se formava, em torno da casa, área de proteção estabelecida por seres desqualificados. Estava o médico e se impedia que surgissem criaturas que pudessem desequilibrar a vida de quem estava cuidando de Orivaldo. Mas a vibração era por demais tênue, nada que pudesse assegurar aos vigilantes que espíritos da condição dos socorristas estivessem a serviço naquele ambiente. Como a casa se situava dentro dos limites estabelecidos pela segurança do morro, os malfeitores de Isabel tinham perdido a ascendência sobre ela. Sem querer, a dupla atividade das forças obsessoras dos traficantes punha de resguardo aquela que seria alvo da vindita de Leandro. Isabel respirava desafogada, como nunca antes.
Depois do almoço, hora da sesta das crianças, Marlene quis estabelecer o “modus vivendi” das serviçais. Chamou as duas e relacionou as atividades, dando a Isabel o encargo de ficar com os petizes a maior parte do tempo. Mas não deixou de fixar-lhe as obrigações da limpeza dos quartos, da sala e dos banheiros. Disse qual seria o salário e lhe pediu a carteira de trabalho, para registro.
— Está com a antiga patroa. Precisa dar baixa. Na primeira folga, vou buscar.
— Muito bem. Sei que estás precisando pegar as roupas. Dá para voltares antes das cinco?
— Acho que sim. Se tiver sorte com a condução.
— Nesta hora é mais fácil. Mas tens de sair já!
Dráusio se preocupou com a viagem. Deveria cercar a moça de cuidados. Iria passar pela barreira externa. Precisaria agir rápido. Com o auxílio de Alfredo, envolveu-a de fluidos benéficos, para o disfarce da inocuidade das vibrações contra o médico. Nem precisava, que a moça principiava a admirá-lo. Mais ainda, a estimá-lo. Não foi reconhecida como mãe de Orivaldo, que Joana se encarregara, inconscientemente, de informar que se tratava da companheira por quem tanto rogara.