Quando Raimunda estava aguardando notícias médicas, no salão de espera apinhado de gente em péssimas condições, em meio ao burburinho lamentoso de quem sofre, respeitando, contudo, o sagrado ambiente, onde irão obter recursos de saúde, foi indicada pelo segurança, que embolsara uns reais da jornalista.
— Você é a mãe do menino baleado?
A repórter perguntou de maneira incisiva, como se soubesse a resposta.
— Não, sou... — engasgou. Diria tutora se conhecesse a extensão da palavra. Tia não era, definitivamente. — É. Pode-se dizer...
— Como assim?
— É que Orivaldo não é meu filho. Eu sou solteira, sabe?! Achei o menino na porta de casa. O pobrezinho...
— O que eu quero saber é se ele faz parte da quadrilha, da gangue de traficantes.
— Ele só tem seis anos...
— E como foi levar o tiro?
— Foram tantos que quase derrubaram a casa.
— Quantos marginais estavam lá dentro?
— Nenhum, não senhora...
— Foi a polícia que acertou o garoto?
— Eu não vi nada. Só sei que o barulho...
— Se a senhora não viu nada, como pode ter a certeza de que foram os traficantes que atiraram nele?
— Eu não tenho certeza de nada...
— Então, não sabe quem foi que atirou?
— Não sei, não.
— Onde estava o menino?
— Na caminha dele.
— Por que não se escondeu?
— Ele está muito doente. Com febre, cheio de feridas pelo corpo todo...
A repórter não estava contente. Queria algo concreto. Precisava redigir a matéria.
— Viu algum bandido?
— Vi, quando voltei para casa.
— Reconheceu quem era?
— Não. Ele estava caído, sujo de sangue. Parecia morto.
— Onde ele estava?
— Em frente da porta.
— O que a senhora estava fazendo fora?
— Fui comprar açúcar.
— Não ouviu os tiros?
— Só depois de ter descido uma boa caminhada.
— E aí?...
— Aí, voltei sem nada. Não queria levar uma bala perdida.
— E o cara estava caído na tua porta?...
— Tinha uma espécie de espingarda ou escopeta na mão.
— A senhora sabe que a polícia diz que não matou ninguém?
— Não sei, não, senhora.
— Aquele sujeito ferido, não foi ele quem deu os tiros no menino?
— Aquele lá não foi, não. Acho que estava muito machucado. Não dava sinal de vida.
— Então, não foi ele...
— Não foi mesmo.
— A senhora viu algum soldado atirar?
— Não vi ninguém atirando.
— Mas ouviu os tiros?
— E ouvi quando gritaram de fora para que os bandidos saíssem.
— Eles saíram?...
— Saíram nada, pois não tinha ninguém.
— Tem certeza de que não tinha ninguém em casa? Só a senhora e a criança? Olhe que é muito importante para a reportagem.
— Claro que tenho.
A repórter desligou o gravador e saiu sem se despedir ou agradecer. Quis saber o nome completo da criança e foi em busca da ficha, na portaria do hospital. Nada encontrou de positivo. Orivaldo — sem sobrenome. Pais desconhecidos. Responsável: Raimunda de Oliveira Gonçalves. Solteira. Setenta e dois anos. Negra. Rua sem nome e sem número, em Andaraí de Cima.
Não havia que ver, a matéria iria trazer a informação de que o menino tinha sido baleado na cama, pela polícia. Erro de interpretação. Bala perdida. O Departamento de Balística não recebera o projétil. O médico, no hospital, tinha o recibo de um sargento, o qual afirmava que não recebera nada. Mas estava assinado. O Delegado, à vista do interesse da repórter, telefonou para o Chefe de Redação. Este desconversou. Não iria esconder a verdade. Abrisse inquérito interno, sairia o seu nome no jornal, para resguardo da autoridade. Desse tempo ao tempo que os acontecimentos seguintes iriam fazer esquecer o incidente. O menino nem sobrenome tem...
Orivaldo, sem saber de nada, iria ficar internado no hospital por mais de dois anos. O Doutor Mário, o da extração da bala, condoeu-se do coitadinho:
— Blastomicose. Vai dar trabalho. O pulmão está um caco. O abdômen está proeminente, cheio de vermes. Vamos aguardar os resultados da hematologia. Só falta descobrir que o coitado carrega a AIDS. Se sobreviver...
Sobreviveu, infelizmente para a instituição jurídica do Estado e para o sistema de Saúde, que tiveram de desembolsar muito dinheiro, pela campanha que se fez em favor do orfãozinho. Orfãozinho? Era o que se pensava.
Nem bem saíra a repórter, um grupo de pessoas saudáveis e bem vestidas queria saber quem era Dona Raimunda de Oliveira Gonçalves.
— Somos do Departamento de Direitos Humanos da Divisão Regional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil. Queremos saber o que aconteceu em sua casa. É verdade que o Orivaldo foi baleado no próprio leito pela polícia?