Alfredo, por velho hábito de garantia, à medida que cresciam os ganhos na fazenda, ia transformando as cifras em propriedades, em diversas cidades. Preferia casas antigas, com amplos terrenos, nos setores centrais, de modo que, com o desenvolvimento, pretendia ir construindo casas comerciais. Era objetivo seu crescer no comércio regulamentar, de modo que pouco retirava do patrimônio anterior. Aliás, se não fora o emprego do capital para deslanche dos investimentos, poderia até considerar-se honesto empresário no âmbito da agropecuária.
Com esses interesses renovados pelo bulício das aventuras no terreno das especulações, esqueceu-se de que na fazenda se instalara luxuosamente. De repente, via-se durante longos períodos a pernoitar na cidade, onde as acomodações nem de longe fariam supor o apartamento “triplex”. Mas havia tranqüilidade íntima, já que, com a sua “morte”, deixara para trás a vida de crimes.
Tinha vaga idéia de que poderia vir a tornar-se benfeitor da humanidade, sem desejar usufruir o retorno das considerações e dos reconhecimentos. Quando assistiu pela televisão à reportagem de seu “enterro”, encenado sob a fanfarronice do Hino Nacional, estremeceu e avaliou o quanto se pode ilaquear a boa-fé das pessoas. Sorriu desencantado com a vida e nunca mais desejou rever o videoteipe daquelas cenas.
No centro espírita, denominado de “Apóstolo do Amor” para homenagear certa figura importante do espiritismo local, que mediunicamente se manifestara contrário a que seu nome se registrasse no frontispício do prédio, conheceu certa senhora viúva, jovem ainda, com três filhos novos para criar.
Não querendo unir os destinos de todos ao seu, por meio de matrimônio protocolar, propôs e foi aceito como pai adotivo das crianças, braço forte em que se pudesse apoiar a sofrida criatura.
Como princípio da salutar união, desejara ela obter a aquiescência do ex-marido, para o que, em sessão mediúnica, o inquiriu mentalmente. Não conseguiu resposta direta, senão por intermédio do orientador espiritual da casa, segundo o qual o bem a se realizar estava nos atos, nos fatos e nas intenções. Que se juntassem os destinos de ambos, para glória do Senhor.
Os dizeres pareceram bem disparatados para a situação de mero aproximar de almas, no entanto, satisfizeram não só a feliz consulente, como representaram para a comunidade espírita a bênção necessária. Na falta das cerimônias religiosas, parecia-lhes que o prenúncio da felicidade estava assegurado.
Jesualdo emprestou ao “conjugo vobis” da vontade espiritual o seu entusiasmo pela possibilidade de dar amparo a uma família infeliz e não poupou esforços, no sentido de garantir a todos a sua intenção de fidelidade e benquerença.
Para a cidade, parecia a vitória do espírito comunitário do interior sobre as ilusões do brilho civilizatório da capital. Afinal de contas, o quarentão havia cedido aos encantos da simplicidade campestre.
Para Renata e filhos, tudo parecia florir em rosais de primavera.
No etéreo, Ângela enxugava lágrimas de felicidade, pois, finalmente, poderia atuar diretamente sobre a intuição de alguém que estava verdadeiramente reconhecida e apaixonada pelo benfeitor. Ao recordar-se do mal que Alfredo lhe proporcionou à família, comparado ao bem que fazia à gente da novel amiga, tudo lhe parecia provir diretamente de Deus.
Já não pensavam assim os demais integrantes do grupo socorrista, que temiam pela segurança das ingênuas criaturas, que se punham às mãos do antigo assassino. Sabiam que a vida pode proporcionar reviravoltas vigorosas e completas, mas desconfiavam de que era muito provável que Jesualdo pudesse regredir para Alfredo de um momento para outro, bastasse ver-se em condições adversas.
Que levava, contudo, Alfredo a estimular as esperanças de todos? Só o fato de ir saindo-se bem nos negócios não seria motivo suficiente. Teria recebido algum influxo especial provindo da espiritualidade superior, desconhecido dos que lhe davam amparo particular?
Na verdade, Jesualdo, naquele ano seguinte ao da instalação, passara a maior parte do tempo livre lendo. Havia-se compenetrado de que deveria freqüentar o centro espírita, mas as faltas eram constantes, sendo poucas as vezes que aparecia nas reuniões em que havia comunicações espirituais. Toda vez que lá ia, tinha medo de ver algum espírito malfeitor acusá-lo pelos pregressos crimes.
Certa vez, até desconfiou de que lhe faziam referência à pessoa, quando jovem recém-desencarnado, vítima dos tóxicos, ao defender-se das acusações conscienciais de que havia desperdiçado o encarne, apontou os traficantes como os responsáveis pelas desgraças dos dependentes, referindo-se a alguém presente como sendo conhecedor de todo o procedimento criminoso. Todos se lembraram do promotor de justiça, célebre pelas invectivas contra os negociantes de psicotrópicos, mas, para Jesualdo, a pessoa indicada era ele mesmo. Por isso, receava comparecer a esse tipo de reunião, preferindo as noites de palestras.
Em casa, ainda solteiro, leu mais de duzentos livros. Misturava os temas. Lia sem atenção, voltando a lembrança para os fatos que vira ocorrer com a gente do morro. Para cada possibilidade espiritual citada, era capaz de referir vários casos particulares. Não progredia na reflexão doutrinal, mas dedicava-se aos acontecimentos palpáveis. Fazia-o sob o influxo da consciência, para não ter de avaliar a extensão de sua participação no crescimento da marginalidade. Era pura ação de defesa.
No entanto, os princípios doutrinários iam criando bases cada vez mais sólidas, principalmente quando seu interesse foi despertado pelos artigos veiculados pela “Revista Espírita”. As observações de Kardec eram largadas de lado, mas os fatos narrados deixavam lastro. Via-se nas personagens dos criminosos, dos assassinos, dos malfeitores. Percebia que em todos os tempos houve quem se vangloriasse pela sanguinolência. Ao ler sobre a perquirição do destino espiritual dos maiorais da perversidade, lembrou-se de que, um dia, prometera enfrentar todas as forças infernais com o poder de sua malignidade. Sabia agora que o maior inimigo seria quanto mais invencível quanto maior fosse o seu próprio poderio: é que esse adversário intransponível iria ser a sua consciência. Quando percebeu que o inferno se situava dentro de si mesmo e que deveria clamar por socorro, se quisesse armar exército suficientemente forte para oferecer obstáculo à dor e ao sofrimento, principiou a admitir a hipótese de que todo o mal que praticara deveria reverter o quanto antes. Não se atrapalhou com o fato de muitos estarem já no plano da espiritualidade. Meios havia para o estabelecimento dos vínculos em amor e benquerença. Ele é quem estava desprovido de qualquer virtude, para encetar a longa viagem da reconciliação.
Na noite em que deliberou aceitar na intimidade a figura da médium que o entusiasmara, bem como a responsabilidade da criação de seus filhos, pela primeira vez ousou orar prece a Deus, pedindo-lhe amparo e proteção. Nessa hora sublime, em que o filho pródigo percebeu que o abrigo do Pai seria o refúgio de todos, as vibrações dos socorristas se intensificaram e hosanas se ouviram em agradecimento ao divino amor.
Era um pequenino passo, titubeante, dado a medo, inseguro, mas representava léguas para o andarilho do mal.