Alfredo chegou logo a casa. Ao invés de procurar a segurança da fortaleza no morro, dirigiu-se à zona sul, para o luxuoso apartamento, onde guardara o famigerado envelope. Iria saciar de vez a sede da curiosidade.
Lá chegando, arremessou os livros presenteados sobre o sofá e abriu as folhas que recebera de Catarina. Que teria sua mãe (sua mãe?) para contar-lhe?
"Você se lembra do dia em que fez seis anos? Pois eu deixei passar a data em branco. Fiz com que tudo se preparasse pelas empregadas e fui até o centro. Seu pai ficou furioso, pois encontrou você chorando, dizendo que os presentes não valiam nada.; o que você queria era sua mãe... Na minha incompreensão dos sentimentos infantis, achava que o mais importante era retirar das trevas pobres e infelizes criaturas que pecaram durante a vida. Era dia de desobsessão e o pessoal — achava eu — trabalhava pior sem mim. Louca pretensão! Fiz você esperar mais de uma hora no carro e ainda assim não o tratei com o devido respeito e carinho, pois Nepomuceno me fez graves censuras. Agora vejo que estava errada, pois nós dois sabemos o quanto minha falta representou para você. Peço-lhe, meu filho, humildemente, que perdoe sua mãezinha."
Nesse ponto da missiva, Alfredo parou para respirar. Queria saber como é que Catarina poderia ter tido conhecimento desse episódio. Por mais, no entanto, que imaginasse situações de encontros fortuitos de circunstâncias, jamais alguém poderia saber o que se lhe passara no íntimo, desde aquela época. Nada disse a respeito de seus sentimentos a ninguém. O pai, tinha a certeza, jamais iria pôr reparo em dado tão insignificante do passado, mesmo porque fizera com que Josineida fosse para a festa de aniversário, que se atrasara mas que, enfim, se realizara. Que mais poderia ter a mãe escrito? Começava a acreditar que fosse ela mesma.
Realmente, seguia-se a descrição de vários outros acontecimentos relativos ao relacionamento de ambos. Relatos de dias em que saíram só os dois para compras, com minúcias inteiramente fiéis, como no dia em que deixara cair o sorvete no chão, de propósito, porque desejava que a mãe lhe comprasse outro. Sabia que havia limitações quanto a sorvetes e, daquele jeito, obteve outro copo cheio. O estranho da descrição é que a mãe demonstrava conhecer intimamente a malícia que empregara.
Outro acontecimento escoteiro em suas lembranças foi o do dia em que se negara a deixar-se examinar pelo médico, quando a mãe solicitou ficar a sós com a criança. Vinha a transcrição fiel da conversa, em forma de diálogo. Ele bem se recordava do fato, pois o resultado da consulta foram duas taças de sorvete, sem que fosse preciso derrubar nada.
Nesse ponto da leitura, Alfredo pediu à mãe, se estivesse presente, que batesse duas vezes na mesa ou que demonstrasse sua presença por qualquer outro meio. Silêncio. Solidão. No entanto, parecia que a progenitora escrevera com muito amor. Descartava a hipótese de ter a cunhada conhecimento próprio dos fatos ali descritos. No máximo, admitia a possibilidade de que se pudesse ler-lhe no inconsciente. Mas como, se ele sequer se lembrou na ocasião de nada do que se registrou?...
Do meio até o final, fazia-se longa exposição dos benefícios para a alma humana de vida padronizada pelas normas e preceitos cristãos, especialmente quanto à necessidade de se afastar dos males e dos vícios.
Para encerrar, dava-se ciência de que os espíritos acompanham os encarnados e lhes conhecem os desideratos e atitudes, até mesmo quando procuram ocultar da vista do mundo. Se não tomavam providências, é por que o tempo é senhor do homem e decidiria quando é que seria mais oportuno para reconduzi-lo à trilha do amor que leva ao Pai. Comprovava-se com a assertiva de que o envelope se achava guardado em tal gaveta de determinado móvel, cuja chave tinha certas características.
Não só a mãe lhe narrava casos envolvendo ambos, como lhe indicava fatos de que só ele tinha conhecimento. Um suor frio começava a escorrer-lhe pela fronte.
Ao final, recomendava Josineida que abrisse e lesse o que se guardava ali.
Alfredo apanhou o envelope e pôs sobre a mesa. Hesitava ainda uma vez. As perguntas que fizera na outra noite repercutiam-lhe na consciência.
No plano etéreo, programavam-se as conseqüências que adviriam. Os guardiães que dele se aproveitavam para os atos deletérios, vendetas e perseguições, reconheciam que Alfredo fora envolvido por forças invisíveis para alteração do rumo da vida. Ficaram pasmos quando perderam o contacto com o obsidiado, no momento em que adentrara a casa do irmão. Por mais que intentassem abrir brecha nas barreiras que lá se colocaram, viram-se repelidos. Agora mesmo, sentiam bloqueados os impulsos, pois o próprio Alfredo demonstrava-se decidido a ir até o fim no plano de conhecer o teor dos dizeres ocultos. Sabiam do que se tratava e temiam que algo pudesse vir a prejudicar a parceria na peregrinação criminosa que empreendiam. Se fossem derrotados, certamente iriam padecer sob o impacto energético dos superiores da caterva das trevas. Precisariam agir rápido, mas se viam obstaculizados, por isso punham a imaginação para funcionar, para dar seqüência às suas ações, assim que Alfredo se enchesse de ira.
Num impulso de medo e de desafogo, sensações contraditórias capazes de serem a alavanca para a superação dos traumas psíquicos que o vinham perseguindo, o filho de Nepomuceno abriu o envelope e se deparou com a carta de Ângela.
"Querido tio Carlos...", iniciava. Assinava "Ângela" e datava de alguns meses antes: "Assunção, 15 de..."
Rapidamente Alfredo formulou o conteúdo no cérebro: era a revelação de seu desatino em relação à família de Marcos. Então, todos com quem estivera naquela noite lhe conheciam a vida oculta...
Leu de um jato toda a missiva, apoiando-se fortemente na cadeira para não sucumbir à revelação.
Não sabia o que pensar. Se o irmão conhecia o que fizera com a sobrinha, se os tiros repercutiam ainda sobre a foto da família, por que Carlos o recebera tão bem? Não era ele vil facínora, que merecia ser julgado, condenado e preso? Que misteriosos caminhos estavam trilhando aquelas criaturas?
As questões se cruzavam no cérebro arguto do frio criminoso. Finalmente, decidiu que não se daria a joguete da malícia do irmão. Iria desdizer tópico a tópico, incentivando o aspecto positivo de ter-lhe o irmão mostrado a carta, antes de fazer qualquer acusação. Isto lhe parecia demonstrar que talvez não tivesse realmente acreditado no que lera. Afinal de contas, Ângela não estava mais viva para contradizê-lo...
Foi pensar nessa possibilidade e dar com as folhas escritas pela cunhada. Lá estavam as provas evidentes de que o plano espiritual poderia desmenti-lo a qualquer momento: os meios para isso estavam nas mãos do irmão.
Começava a sentir forte pressão na cabeça. Teria que se livrar da família de Carlos como fizera com a de Marcos? E se providenciasse acidente igual ao que vitimara Criseide e os filhos? Ao se lembrar desse recurso, percebeu que era bem provável que se suspeitasse de que tivesse arquitetado a queda do avião. Não, desse crime estava livre. É verdade que soubera das providências para o embarque definitivo para o Brasil. Tinha tido, inclusive, conhecimento de que seus cheques constituíam fundo particular, que permanecera intocado e que, como se dizia na carta, fora utilizado para benemerência. Aliás, se não tivesse tido essa notícia, como poderia ter deixado que a mudança se realizasse? Não conhecia o desejo de Ângela de vir trazer-lhe a palavra do perdão — meiga criatura —, mas sabia que maior mal não lhe poderiam causar, pelo menos sem a chance de se antecipar a qualquer agitação pela publicidade dos fatos. Os informantes no Paraguai tinham agido de modo eficacíssimo. O acidente não tivera participação alguma de sua organização.
Começava a divagar, incerto sobre que decisão tomar. Com que cara voltaria para a reunião marcada com o irmão? Como poderia sustentar-se diante dos sobrinhos e esposas, sem que suspeitassem que pudesse estar tramando algo contra eles? Se eram espíritas convictos e se praticavam o bem como Josineida lhe sugeria na mensagem, certamente não iriam persegui-lo, se desaparecesse de sua vista. Como deviam sentir-se mal com sua presença...
Aí Alfredo pôs-se a analisar a situação em que Carlos se viu colocado pela sobrinha. Teria sido ela quem o conduzira à doutrina espírita? Com que meios? As dúvidas se perdiam em interrogações. Nem tudo conseguia imaginar com propriedade. Lembrou-se de que os advogados tinham sido rechaçados em suas propostas. Cotejou com a data da carta e avaliou que, naquela época, Carlos já conhecia a sua participação nos eventos que conduziram a família de Marcos ao Paraguai.
Por que nenhuma palavra em recriminação? Por que o interesse em cativá-lo para o espiritismo? Que fanatismo era aquele que justificava o esquecimento de males tão grandes?
Lembrou-se de ter invectivado os pais. Como resposta, Josineida lhe pedia perdão. Será que Carlos poderia ter o mesmo comportamento?
Seus inimigos da espiritualidade se viam tolhidos nos desejos de atuação. Achavam impossível que o enredamento do pupilo se tivesse feito de modo tão perfeito, a impedir que se manifestasse com ímpetos de sangue. Quando lhe introduziram a idéia de eliminar o irmão e família, julgaram que iria partir para o revide espiritual, por se sentir colocado em condição de tanta inferioridade. No entanto, o fato de se perceber alvo de consideração e respeito obstou que a intuição pudesse ser acatada. Alfredo não se sentia ameaçado. Suas reações eram brandas no que se referia aos outros. Se havia alguém a acusá-lo, esse alguém era ele mesmo, que reconhecia não ter agido corretamente com os parentes, os quais não lhe davam motivo algum para qualquer ação furibunda.
Naquela noite, Alfredo não conseguiu conciliar o sono. Nem deitar foi. Esqueceu-se dos calmantes, das bebidas alcoólicas, da agenda das próximas horas. Pensava na existência.