Depois de ter resolvido muitíssimo mal o problema da insubordinação de um dos chefes do setor de entorpecentes, permitindo ao ganancioso bandido que deliberasse a respeito da própria vida do modo que melhor lhe aprouvesse, para o que retirava toda possibilidade de assistência — coisa que, em outros tempos, não faria, eliminando desde logo o problema com a sujeição do insurrecto por meio de algum ato de força —, Alfredo voltou-se para o encontro que marcara com o irmão.
A longa questão relativa à defecção do ajudante tomou-lhe toda a semana, de modo que só foi lembrar-se de que veria o irmão na tarde daquele mesmo dia.
Era por demais claro que algo não corria exatamente como imaginara. Pensara que seu relacionamento iria deixar o irmão entusiasmado por poder pescar mais uma alma com sua rede. No entanto, ao confirmar o horário e o local, ouviu dele se não seria possível que viesse até sua casa, onde estaria reunida toda a família. Não era data especial, mas é que era o dia de se ler o Evangelho e bem poderia ocorrer de Alfredo se interessar pelos assuntos a serem debatidos.
Pareceu-lhe que Carlos estava simplesmente apresentando desculpa para não atendê-lo. Enganava-se, evidentemente, pois o desejo do irmão era possibilitar à família que lhe reforçasse os argumentos, no caso de Alfredo apresentar-se com idéias de prepotência, em virtude do reconhecimento de que suas atividades estivessem claras para os parentes. O que Alfredo interpretou como repulsa era só atitude de defesa e receio de confronto.
Como o horário e o local previstos impedissem a Alfredo de buscar o envelope, decidiu que compareceria sem ter lido a mensagem que lá se continha. Diria, como desculpa, que esquecera o envelope em algum lugar, precisando procurá-lo. De resto, se o irmão quisesse, poderia referir o assunto de viva voz.
Às oito horas, pontualmente, Alfredo chegou à residência do irmão, dirigindo o carro. Dispensou o chofer, mas não se desfez dos guarda-costas, que o acompanharam em outros três carros. Desde a tarde, logo que ficou determinado o local do encontro, vários seguranças se postaram em pontos estratégicos, para devassarem o ambiente em busca de tocaias possíveis das outras organizações, ávidas por se apoderarem do império do ex-vendedor de automóveis.
Não havia guerra declarada entre os marginais, mas a oportunidade de se desfazer de tão alta figura, para apropriação de seus pontos, não seria de desprezar-se.
Estranhou Carlos que Alfredo chegasse sozinho, pedindo-lhe para que guardasse o carro na ampla garagem, no que foi atendido, com a recomendação de que o veículo pudesse ficar voltado com a frente para a rua, para o que foi preciso manobrar os diversos carros até que tudo ficasse de acordo com o desejo de Alfredo. Era o indício de que não estava sossegado e Carlos notou.
Os cumprimentos se deram sorridentes, ficando a família tranqüila quanto a possíveis entreveros. Teria lido a carta de Ângela? Carlos foi diretamente ao assunto:
— Você tomou conhecimento do conteúdo do envelope?
— Sabe que não sei onde foi parar... Devo ter deixado entre os papéis do escritório. Amanhã mesmo procederei a séria busca. Mas você não pode adiantar o assunto?
Carlos não ficou sabendo qual era a mentira: se o extravio do documento ou se lera e fazia de conta que não.
— É melhor que você veja com seus próprios olhos. Vamos iniciar os estudos da noite. Tome lugar na cabeceira.
Alfredo sentia-se peixe fora da água, a debater-se intimamente. Queria e não queria ouvir o que ali se passasse. Seria aquela sessão em que os espíritos seriam evocados?
— Hoje nós vamos ler alguns tópicos do livro O Evangelho Segundo o Espiritismo. Você já conhece esse livro de Kardec?
— Não.
— Pois vamos oferecer-lhe um para você ler em casa. Que livros do codificador você possui?
— Codificador?...
— Sim, de Allan Kardec. Desculpe, pensei que você tivesse estudado alguma coisa a respeito do espiritismo. A mãe não lhe deu nenhum exemplar?
Alfredo não se recordava de ter tido jamais contacto com qualquer obra. Lembrava-se da estante da casa e do grande número de livros que lá havia. Mas nunca se interessara em percorrer os títulos.
— Eu sei que quando o pai morreu... desencarnou, como vocês dizem, nós repartimos o que havia no apartamento e eu me lembro de que os livros foram para o centro. Eu não fiquei com nenhum.
— Pois, para quem quer saber a respeito da vida após a morte, é preciso ler O Livro dos Espíritos.
Aí Alfredo recebeu de Carlos um exemplar, tendo feito questão de lhe apresentar a dedicatória:
Ao mano Alfredo, como lembrança das primícias de nossa vida em Jesus. Que nunca os nossos laços de amor venham a ser rompidos! Graças a Deus!
Alfredo agradeceu a lembrança, avaliou que o irmão se empenhara em atender-lhe à solicitação de enfronhá-lo nos temas espíritas e fez questão de abrir o livro de estudo ao acaso, para a lição da noite, assim que Catarina fez a prece de abertura. Queria demonstrar boa vontade e colocar todos com a mente aberta para os temas que iriam discutir-se. Desejava sentir o que se passava de real naquele ambiente, sem perturbações, em virtude de sua estranha figura ali inserida inopinadamente. Acendia-se-lhe a curiosidade.
Aberto o livro, leu-se o trecho e fizeram-se diversos comentários. Falou-se da confraternização entre os homens. Kardec era claro em comentar o trecho bíblico. Mas as idéias embaralhavam-se na cabeça de Alfredo. Parecia ter penetrado em outro mundo. Como é que um grupo de pessoas tão inteligentes poderia submeter-se a temas tão pueris? Falou-se de Jesus como de ser extraordinário, dotado de poderes acima dos normais. O que mais lhe espicaçou a morbidez foi a assertiva de que o Cristo se havia deixado pregar na cruz por amor à humanidade. Que espécie de confraternização era aquela baseada na dor, no sofrimento e na morte? Realmente, tudo lhe parecia muito além da realidade.
Findas as leituras, Catarina se propôs a receber algum recado do plano espiritual.
Aí a atenção de Alfredo se intensificou. Queria saber como é que tais coisas se davam.
As luzes foram atenuadas e a sala ficou em semi-obscuridade, em que mal se distinguiam as feições das pessoas. Feita a prece de invocação, imediatamente a cunhada se pôs a escrever celeremente, necessitando ser auxiliada pela nora que se postara ao seu lado, para a substituição das folhas que se preenchiam. Era incrível a rapidez da comunicação.
Alfredo reparou que todos se concentravam e não faziam qualquer menção de estarem surpresos ou tomados por entidades.
Ao cabo de dez minutos, seis laudas de papel estavam preenchidas com letra cursiva, bem proporcionada e segura. Não fora pela rapidez da escrita e se poderia dizer que fora a caligrafia burilada. Assinava-se, ao final, Josineida.
Carlos estremeceu de alegria. Eis que a mãe vinha resgatar o filho para as lides da benignidade.
Serenados os corações, por meio da prece de encerramento e agradecimento, acesas as luzes, era chegado o momento da leitura.
Alfredo pôs sob suspeição o que vira. Não acreditava em que realmente a mãe estivera ali presente para dar recado aos viventes. Se isso fosse verdade, era sinal de que os espíritos poderiam muito mais do que os mortais, pois teriam tudo sob domínio. O pobre homem punha tudo sob o tacão de quem manda e de quem pode.
Catarina pôs-se a ler a mensagem da sogra:
Queridos filhos e netos:
Eis que minha felicidade se completa com a presença neste santo lar da ovelha que se encontrava tresmalhada e que se achou.
Perdoem-me, meus caros filhos, se dedico a mensagem à saudação de meu amado Alfredo, filho que se apresenta hoje às lides do espiritismo.
Sei que seu coração teme que tudo o que aqui se passa seja fruto da imaginação das pessoas, iludidas pela fantasia e pelo desejo de se firmarem diante da vida e da morte.
Que poderei dizer para demonstrar que é sua mãe quem aqui está a recepcioná-lo, com o coração leve e a alma plena de alegria? Certamente, o meu bom filhinho saberá reconhecer que só nós dois sabemos que...
Nesse ponto, Catarina suspendeu a leitura e passou as folhas para que Alfredo lesse em particular ou guardasse para depois. Afirmou que a escrita fora mecânica e que não conhecia o teor do texto. Como as notações eram pessoais, seria preferível que só o destinatário tomasse conhecimento dos dizeres ali registrados.
Carlos exultava de alegria. Os filhos também agradeciam intimamente o resultado da sessão. Catarina simplesmente não sabia o que dizer. Alfredo sentiu certo tremor nas mãos, apanhou as folhas, dobrou, guardou-as e se propôs a divulgar o que ali se dizia se, brincou, fosse conveniente. Ainda não tinha a certeza do que concluir a respeito das sensações daquela noite.
Não haviam jantado e Alfredo fez questão de oferecer-lhes refeição em um dos restaurantes mais caros da cidade.
Entretanto, a família havia preparado alguns pratos, na expectativa de que aceitasse ficar para a ceia. Alfredo desacostumara-se da vida em família, mas acabou ficando, embora incomodado pelo muito de formalidade que todos demonstravam. O único que se deixou envolver pelo clima amistoso oferecido pela mensagem da mãe foi Carlos, que, durante toda a reunião, relembrou casos de suas infâncias, em que os irmãos se rejubilavam com a ventura do convívio da família.
Alfredo quedou emudecido e não partilhou da mesma felicidade expansiva do irmão. Queria ver naquela atitude algo além de pura manifestação de amor fraterno. Parecia-lhe que havia turbulências a serem vencidas naquele navegar que se iniciava tranqüilo.
Às dez horas, deixava a residência do irmão, prometendo pôr a limpo, naquela mesma noite, as informações da mensagem e o que se encerrava no misterioso envelope.