Assim que Marcos se recobrou das emoções do reencontro, partiu para a assistência ao menor. Havemos, no entanto, de considerar os aspectos meramente carnais das objurgatórias lançadas pelo Júnior contra a sorte, de modo a considerá-lo atrasado tão-só no domínio da matéria. Tão logo foi internado, reacendeu-lhe a antiga percepção da natureza e da existência, de maneira que bem pouco precisou do auxílio paterno para revigorar-se. A bem da verdade, tinha alguma luz e se sentia bem seguro de seus conhecimentos. A hora do desenlace é que fora prematura para sua formação espirítica no orbe.
Marcos pôde, por conseguinte, requisitá-lo para reintegração na família e não demorou dois meses para que todos se vissem em condições de prosseguirem trabalhando para o bem.
Nepomuceno, tendo solicitado o parecer de Virgílio, recebeu a notícia de que estava na hora de se expor minuciosamente o objetivo imediato do socorro à entidade familiar em rota de colisão com a malignidade, a dor e o desespero.
Em bela tarde outonal, todos foram chamados para participarem da séria elaboração dos planos para o auxílio.
Nepomuceno tomou a palavra, invocou a Deus e as forças da espiritualidade superior, agradeceu a oportunidade de estarem todos juntos e bem, e requisitou assistência especial, para que as deliberações a serem tomadas estivessem rigorosamente dentro dos limites de suas possibilidades socorristas. Não via no grupo grandes atributos para a grandiosa tarefa a que se propunham, mas contavam com a assistência dos protetores e dos amigos mais adiantados no amplo campo evolutivo.
Tão enérgicas foram as expressões e tão bem foi secundado pela emoção de todos, que inaudita chuva de pétalas róseas embelezou o ambiente, como se fosse a demonstração inequívoca de que estavam sendo abençoados por Deus.
Nepomuceno expôs com cuidado os temas que mais de perto lhe davam aquele ar de preocupação. Em primeiro lugar, julgava que haveria muita dificuldade em se achegar aos ofensores e obsessores de Alfredo. Sabia que estava o filho sob o poder de vampiros e de desafetos antigos. Conhecia-os bem, pois com eles estivera em íntimo relacionamento nos últimos séculos, tendo logrado afastar-se por intervenção de sua querida Josineida, pelo muito de amor que os unia.
Sendo assim, não via como levar Carlos a desafiar o irmão com sucesso garantido. Se o filho espírita não fosse feliz na colocação do ponto de vista do amor fraterno e da necessidade de alteração de hábitos, possivelmente iria fazer fermentar o ódio que Alfredo manifestara por todos os outros membros da família.
A custo, Nepomuceno colocou os presentes a par de certa intuição que tinha de que Alfredo nutria por ele e pelos demais intenso sentimento de repulsa. Se argüido a respeito das atividades criminosas, com certeza iria desferir contra os oponentes cerrado levantamento de fatos pregressos, a indicar que ninguém do grupo poderia apresentar-se como santo ou representante das forças do bem. Ele mesmo se reconhecia em falta com seus deveres diante da lei dos homens e das leis de Deus, pois, na última encarnação, havia realizado negociatas em prejuízo de terceiros e, na última passagem pela erraticidade, havia perseguido e obsidiado o próprio filho, tanto que seu arrependimento é que lhe dera oportunidade de tê-lo na família.
Que cada qual se analisasse em função de sua alocução e que “atirasse a primeira pedra aquele que se considerasse sem falta”. Citou Jesus para demonstrar que não seria ele quem iria realizar qualquer acusação. Antes, a lembrança do Mestre trazia à mente e ao coração de todos a justiça de Deus e a lei do perdão.
Josineida falou em seguida e se disse disposta a comparecer diante dos perseguidores do filho para conhecer-lhes a força e o poder exercido sobre a sua pessoa. Não temia ser atacada por eles, pois se supunha com cabedal suficiente de conhecimentos para enfrentar quem quer que se predispusesse pelo ódio ao domínio de alguém que lhe era caro ao coração.
Virgílio interferiu e lhe pediu cautela e moderação, pois nem sempre o amor prevalece sobre o ódio, especialmente se o ser amado não corresponde aos arroubos da ternura. Antes, era de todo conveniente que o estudo que propunha se fizesse pelo grupo todo, ainda com o apoio de diversos elementos de equipes socorristas acostumados ao trato com os sofredores impenitentes. Que Josineida se lembrasse dos espíritos obsessores com quem trabalhara no centro, máxime daqueles que disputavam com os guardiães a ascendência sobre os encarnados que se espojavam nos vícios, alheios à necessidade do sacrifício para a cura e o progresso.
Marcos propôs-se, então, a pesquisar a respeito dos antecedentes de Alfredo para levantamento das suas prováveis amizades.
— Querido filho — esclareceu-lhe Nepomuceno —, seu irmão vem de inúmeras situações de amargos reveses nas últimas encarnações. A custo vem pagando alguns débitos, mas o crescimento de seu passivo é muitas vezes mais considerável. Tenho-lhe acompanhado o trajeto desde há tempos e posso assegurar-lhe que hoje a sua vida apresenta roteiro até que bem menos manchado de sangue que os últimos dez. Fixo este número porque é daí que data o meu conhecimento de suas atividades. O pobre já passou pelas condições duríssimas de carrasco, de assassino assalariado, de soldado mercenário e outras mais de intenso envolvimento com o crime. Hoje está na retaguarda e não mais executa com as próprias mãos os inimigos ou aqueles que se interpõem no caminho da organização. Entretanto, acredite que, se for preciso, ele o fará. A simples revelação de que Carlos e família estão a par de seus negócios colocá-los-á em situação de extremo perigo. É preciso tomarmos cuidado!...
Ângela, que se mantivera calada, observando o temor do avô, a incompreensão da avó, a ânsia do pai e a prudência e o bom aviso de Virgílio, arriscou uma observação:
— Será que Alfredo não tem qualquer ponto fraco em que possamos apoiar o nosso argumento em favor dele mesmo? Será que o domínio dos adversários é tão absoluto que não esteja mais em condições de utilizar-se de seu livre-arbítrio? Exercerá sua vontade tão-só o que determinam os obsessores ou ainda consegue capacitar-se a manter, pelo menos, a lucidez em suas deliberações? O que quero levantar é se está robotizado ou se pode manifestar desejos para além dos limites estabelecidos pelos padrões vibratórios dos inimigos. Penso que podemos abordá-lo pelo orgulho de ter montado a organização criminosa e, a partir daí, demonstrar-lhe que, pouco a pouco, poderá diversificar as atividades, no sentido de ir purificando-as. Por exemplo. Sabemos que participa do comércio ilícito de produtos contrabandeados. Se lhe fizermos chegar à consciência algo como a necessidade de o governo aparelhar-se para a assistência à criança de rua, talvez venha a abandonar esse setor dos empreendimentos.
— Ingênua mocinha! — Era Virgílio a se admirar de que os auxiliares estivessem tão distantes da forte personalidade da entidade que pretendiam trazer para seu convívio. — Saiba que Alfredo conhece a fundo toda a perversidade dos que se locupletam com o contrabando. Conhece a fundo o relacionamento existente entre os funcionários do governo e os contrabandistas, aos quais dão cobertura e segurança. Sabe também qual é o interesse dos políticos em auxiliar as crianças abandonadas e a extensão dos projetos oficiais, que visam mais à promoção das pessoas do que ao soerguimento das criaturas desamparadas. Digo mais: é capaz até de discernir a dificuldade de integração psicossocial das crianças e dos adolescentes, desde cedo encaminhados para a marginalidade. É preciso não desconsiderar a inteligência e a argúcia de nosso irmão. Se, do ponto de vista espiritual, estamos a vê-lo joguete das forças do mal, saibamos categorizá-lo na Terra entre os que determinam as estruturas e as mantêm, com pleno domínio das condições em que se dão os relacionamentos entre os indivíduos e os grupos. Alfredo está no ápice de um segmento da criminalidade. Só não estabelece as leis porque são as mais antigas e as mais atrasadas da humanidade. São as leis da prepotência e do arbítrio, que se fundamentam na força do poderio econômico e na irreverência à criação de Deus. Para quem age como Alfredo, nada se constitui em obstáculo.
Criseide, que se mantivera em oração, conclamou os demais a que voltassem o pensamento à divina misericórdia, para revigorarem os ímpetos socorristas, que se arrefeceram diante da imponderabilidade das forças contrárias a serem vencidas pelo grupo. Sabia que Virgílio tinha razão, pois fora ela quem melhor avaliara a turbulência mental do cunhado, naquela noite dos balázios contra o retrato da família. Mais que os disparos, contudo, ficaram-lhe retidas na memória as palavras que lhe foram arremessadas e a frieza com que foram proferidas. Não se lhe dissipara de todo o temor da aproximação, agora não mais pelo medo dos malefícios que poderiam sofrer, mas pela inutilidade da tentativa. Por ela, não sairiam dali e permaneceriam em contrita oração, único meio que via de alcançar a figura que tanto poder detinha.
Após as preces, os sentimentos de Criseide tiveram o condão de despertar todo o grupo para a necessidade de ver em Alfredo não alguém a quem se conquistar, mas um ser em perigo. Que o poderio daquela criatura fosse grande, tanto melhor: a sua recondução ao caminho de Deus repercutiria com mais intensidade no coração das pessoas e talvez até arrastasse a muitos pelo exemplo que se conseguiria. Este era um estímulo a mais a revigorar o desejo de todos de alcançar o seu objetivo de amor. Empenhar-se-iam sem esmorecimento, pois estava ali concentrada a existência de cada um.
E a reunião findou tarde da noite, levando cada qual impressa no coração a forte vontade de partilhar dos ideais evangélicos dos apóstolos, que saíram um dia pelo mundo a enfrentar todos os empecilhos, tendo muitos sacrificado as próprias vidas, para doar aos semelhantes a perspectiva de trilharem as sendas do bem, na companhia de Jesus.
Aquela noite seria a última que passariam em preparativos íntimos. A reunião os levara a compreender que o mínimo que fizessem seria sempre preferível à hesitação e ao medo. Não se arriscariam sem precauções, mas partiriam firmes e decididos a obterem, no serviço do Senhor, a sua glória.