Conhecedor profundo da alma humana, Nepomuceno vivia desgostoso por ver que as pessoas que compareciam à sua presença para registro dos negócios demonstravam iniludível desejo de sobrepor-se ao semelhante, quer na venda escorchante das propriedades, quer no intuito de divisar lucros futuros com pequenas aplicações complementares de capital, para produzir, pelo menos, o dobro do que se conseguisse pagar. Era, pelo seu modo de ver, vergonhosa a atitude mais corriqueira de todos. Ele mesmo, homem rico mercê do muito que subtraía dos negócios amparados pela lei, tivera outrora momentos de ganância, quando efetuara os primeiros negócios da vida. Agora estava alquebrado física e moralmente.
Educou os filhos nesse ambiente de perversidades morais, tendo estes aprendido bem as lições. Diante da dor da perda da mãe, por exemplo, não tiveram outra atitude senão propiciar ao velho encontros clandestinos e outros tantos oficiais, para alívio da tensão psicológica e para ver se lhe davam companheira que os livrasse do transtorno de carregarem o viúvo às costas. Esse pensamento relutava em formular, pois não queria errar na conceituação dos entes mais chegados e queridos. Mas não havia como enganar-se: as provas sobejavam e as atitudes se repetiam.
Nesse meio tempo, viu a necessidade de afastar-se do cartório que administrava para não transferir ao ambiente a sua secura e hipocondria. Achava natural que os empregados vissem nas atividades meios de progredir e até lhes aplaudia os sucessos, quando percebia que, mais do que meros serventuários da instituição, buscavam tornar-se verdadeiros patrocinadores das compras e vendas dos negócios indecisos. Sabia que as propinas corriam soltas por baixo do pano, mas não considerava isso abuso do poder burocrático. Era natural que procurassem aproximar as pessoas em torno de seus interesses. A estes é que interpunha a feroz argumentação íntima de desagrado.
Mas Nepomuceno foi em busca do sonhado aproveitamento da vida. Inicialmente, considerou ótimo veranear em pequena cidade praieira, para desfrutar de alguns meses de sossego absoluto. Aboletou-se no carro, encheu-o de livros e partiu para as sonhadas férias de sua vida. Corria-lhe quente o sangue nas veias, de modo que curtia a idéia de poder retemperar as forças através de alguns contactos sentimentais fugidios. Por antigo vezo, floreava a imagem, mas o que desejava mesmo era poder ter momentos íntimos com algumas banhistas de idéias mais modernas. Para isso, retirou boa quantia do banco, para fazer frente às despesas com hotéis e restaurantes, afora possíveis pequenos mimos para dar aspectos românticos às aventuras sexuais. Esquecia-se, assim, facilmente, da avidez humana que vira desfilar diariamente à sua frente.
Nepomuceno instalou-se confortavelmente em rica vivenda, completamente mobiliada e com diversos empregados. Distribuiu as obras pelo compartimento e deixou ao lado da cabeceira certo volume de preces espíritas que a esposa lhe recomendara muito durante toda a vida, mas que não se atrevera sequer a abrir. Imaginou a possibilidade da leitura antes de pegar no sono, talvez porque sentisse alguma saudade da companheira de vinte e tantos anos de luta, talvez para rogar-lhe perdão pelo intuito que se lhe infiltrara na mente.
O primeiro dia deixou escorrer na contemplação da paisagem e na tomada de ares providenciais para refazimento das energias desgastadas pela viagem. À noite, cheirou as cobertas que recendiam a perfume novo de sol quente e adormeceu logo, sem ter aberto o livrinho sagrado. Respeitava-o como a missal que religioso abre e lê por obrigação eclesial. Sabia que estaria ali a salvação da alma. Por que hesitava, então? Jogou as cobertas de lado e levantou-se para receber da manhã o primeiro halo de luz. Foi à janela, abriu-a, sorveu o ar em grandes haustos e voltou-se para o criado-mudo, sobre o qual estava o opúsculo, mal divisando-o pela ofuscação causada pela luminosidade que enfrentara há pouco.
Desceu para o primeiro pavimento e solicitou o serviço da manhã. Na casa havia outros hóspedes, de sorte que o contacto rápido da noite poderia agora estabelecer vínculos mais duradouros. Primeiro à mesa, foi fartamente servido, enquanto as pessoas desciam sorridentes pela perspectiva do dia promissor. A temperatura, o ambiente, a calmaria do oceano, tudo se configurava de molde a propiciar aos banhistas a alegria de estadia proveitosa.
Nepomuceno reparou em duas moçoilas que estavam sós. Perguntou-se o que as levaria a hospedarem-se longe das famílias e não obteve resposta que não lhe repugnasse a sensibilidade. Perguntaria depois, em particular, ao garçom, para saber quem eram e o que faziam. Deu uma volta inteira pelo ambiente, mas os velhos senhores acompanhados das respectivas esposas não lhe chamaram a atenção. Voltou a olhar para as mocinhas e constatou que sua vista estava deveras afetada pelas longas e cansativas leituras dos textos administrativos. As jovenzinhas não eram tão novas assim. A mais velha aparentava até idade para ser mãe da outra. Internamente, envergonhou-se da má suposição anterior e pediu íntimas desculpas às duas. Aguardava que chegasse algum grave senhor, para completar o trio, mas desiludiu-se da espera, quando ambas se levantaram e desapareceram no florido parque que se divisava lateralmente ao prédio. Absorto na contemplação da jovialidade de ambas, não reparou que todo o seu interesse fora devidamente catalogado pelos argutos olhos do gerente da casa.
Foi assim que Nepomuceno teve o primeiro estremecimento diante de si mesmo. Tão raposa para avaliar a esperteza e más intenções dos outros, via-se aplicando os mesmos golpes, de forma particular e sutil. Transferira a maldade que via nos outros para si mesmo. Transferisse também o poder de observação e censura. Passou o restante do dia levando a sério a ponderação da manhã. Não pôs o calção do banho de mar, não acedeu ao convite de gentil casal para ocupar lugar disponível para excursão a ponto de atração turística, deixando-se estar por ali mesmo, deitado na rede do alpendre, sentado no banco de pedra do jardim, percorrendo a areia grossa da praia, olhando o verde profundo a encontrar-se com o azul do céu no longínquo horizonte. Procurava na paisagem natural esquecer os embates da luta entre os homens.
Recolheu-se cedo, decidido a dedicar alguns minutos à leitura da pequena obra. Abriu o livro e, surpresa das surpresas, caiu ao solo pequeno papel de carta dobrado em quatro. Na parte externa, leu:
“Ao amigo e fiel esposo, Nepomuceno.”
Que conteria aquela carta póstuma, surpreendentemente despercebida durante mais de dez anos de viuvez?