Estava Rosalinda trancada no escritório, no fundo da loja, quando lhe anunciaram que Dona Rute viera visitá-la.
— Vamos entrando, por favor. Acomode-se na poltrona.
— Rosalinda, querida, vim tratar de um assunto que faz tempo está me deixando preocupada.
— A senhora não tem que ficar preocupada com nada. Eu entendi tudo perfeitamente. Seu filho exerceu o direito dele de escolha. Eu fui deixada de lado. Tudo bem. Ele preferiu outra. Que seja feliz, é o que eu posso desejar-lhe.
— O Laerte sentiu-se muito mal, quando você se retirou sem ouvir mais nada.
— E eu não tinha razão? Que ele não me amasse, vá lá. Eu até posso entender. Mas que saísse comigo, enquanto paquerava outra, não está certo. Ainda mais sabendo-se quem era essa outra.
— Eu acho que você tem razão em ficar decepcionada. Afinal de contas, você só demonstrou ter muito carinho por meu filho. E ele gostava muito da Beatriz.
— Parece que gostava muito mais do filho da outra.
— Quer saber a verdade? Ele detesta o rapazinho, que não o aceita e que já brigou com ele várias vezes.
— Em matéria de brigar, a Beatriz também não é flor que se cheire. Mas a senhora não precisava se incomodar em vir prestar estes esclarecimentos.
— Precisava, sim. Estou sentindo muita falta de você lá no centro. Afinal de contas, foi por sua causa que comecei a freqüentar, desde que você me explicou como é que se dão as comunicações entre vivos e mortos.
— Eu não a levei lá para a senhora ter notícia de seu marido. Eu queria que entendesse por que as pessoas sofrem acidentes e ficam aleijadas. A senhora estava muito magoada por ver seu filho na cadeira de rodas.
— Eu entendi, tanto que sempre digo que ele reagiu muito bem, porque não se deixou desanimar, começando vida nova, tanto que a loja que abriu, graças a você, está indo de vento em popa.
— Abriu graças a mim, mas está indo de vento em popa por causa da Lavínia, minha melhor funcionária.
— Eu queria agradecer o presente que você, apesar de tudo, deu a eles...
— A idéia de fazer um acordo pra ela retirar o Fundo de Garantia foi aceita por meu pai, a quem ela tinha vinculada a carteira. Não se iluda: se dependesse de mim, provavelmente ela teria de assinar uma carta de demissão.
— Não acredito. Você está falando da boca pra fora. Se pensar um pouquinho só, vai ver que sua bondade e seu reconhecimento por tantos anos de serviço prestado com tanta lealdade...
— Não use o termo lealdade, por favor. Ela me traiu, isto sim. Se tivesse um pouco de consideração para comigo, pelo menos, teria avisado que estava de olho no seu filho. Além do mais, a tonta aqui vivia dizendo a ela que gostava muito dele e que pretendia formar uma família...
— Este é o ponto principal que está mexendo com a minha consciência.
— Não sei por quê.
— Acontece que o Laerte me consultou a respeito da escolha que deveria fazer. Eu não conhecia a Lavínia. Conhecia você. E achei que, se ele se casasse com você, corria o risco de ficar sozinho a maior parte do tempo. Com Lavínia tocando a loja e comigo cozinhando, lavando e passando a roupa e limpando a casa, eles ficam o tempo todo juntos.
— Eu já pensei que ela é muito mais conveniente para ele, até no aspecto sexual, porque seu filho está com graves dificuldades, quanto ao desempenho da virilidade.
— Eu considerei também esse ponto, sabendo de seu passado e o quanto você é fogosa.
— Se a senhora não tiver mais nada a dizer, eu estou muito ocupada...
— Eu gostaria que você me perdoasse, não quanto ao fato de ter aconselhado que ele se casasse com a sua funcionária, mas quanto a ter afastado você do centro espírita. Desde que eles se casaram, você não foi mais lá, com certeza para não nos encontrar.
— Realmente, achei que não seria conveniente continuar uma convivência, como se nada tivesse acontecido. Eles me passaram pra trás e eu não vou, aos vinte e oito anos de idade, aceitar pacificamente fazer sala para pessoas a quem sinto profunda aversão. É um defeito de minha personalidade. O Espiritismo, ou melhor, Jesus sempre pregou que as pessoas devem reconciliar-se em vida porque, depois da morte, é muito mais complicado. Mas meus sentimentos são estes. Perdoei-os, é verdade, do fundo do coração, e, cada dia que passa, mais eu compreendo que não poderiam agir de outro modo, dada a formação de ambos. Mas não vou esquecer tão cedo, principalmente porque seu filho causou uma decepção para todos os meus familiares, que contavam com o nosso enlace.
— Eu vim avisá-la de que eles estão indo a outro centro. Se você voltar lá, vai encontrar-se só comigo.
— E com todo o povo que deve estar condoendo-se hipocritamente do meu insucesso amoroso.
— Você tem a mente tão aberta mas é incapaz de perceber que as pessoas a admiram e lhe querem bem. Na verdade, estou aqui em nome de várias amigas. Elas temem que você vá contribuir com sua inteligência e seu trabalho em outro lugar, desfalcando consideravelmente o nosso grupo. Por favor, reconsidere e volte, que ninguém está a fim de devorar-lhe o fígado.
Rute fez menção de levantar-se para abraçar a moça, mas um gesto dela fez que se mantivesse sentada na ponta da poltrona:
— A senhora deve ter ouvido tantas vezes que nada no mundo acontece por acaso. A sua vinda aqui é prova disso. No entanto, eu discordo desse preconceito espírita, sabendo que os tijolos que caem nas cabeças das pessoas não escolhem seus alvos. No meu caso, aceito que levei uma pancada imerecida, porque tudo fiz para comprovar meu afeto por seu filho, como também ele não merecia estar paralítico. Então, posso dizer à senhora, desde que me prometa não passar adiante a minha confissão, que ainda amo o Laerte, sem paixão, confiando em que, vem dia, vai dia, ainda nos encontraremos para realizarmos um objetivo existencial comum, sem oportunistas por perto.
— Quer dizer que você vai voltar ao centro?
— Quer dizer que já curti a minha dor de cotovelo. Quero que fique claro, porém, que não vou atrapalhar a felicidade de ninguém. Ao contrário, tenho orado bastante para que eles encontrem um motivo para viverem uma longa vida de realizações.
— Eu bem que sabia que você possui um coração maravilhoso!
— Não acredite muito nisso. O que tem conduzido os meus sentimentos é a consciência de que cada um deve fazer o melhor possível para progredir espiritualmente. Sentir ódio, raiva ou mesmo um simples desejo de contemplar a desgraça alheia é afastar-se cada vez mais dos preceitos do Espiritismo. Em todo o caso, é natural que ainda mantenha certa repugnância por uma atitude que reputo desleal. Sei que as pessoas compreendem de maneiras bem diferentes as coisas que acontecem, umas rapidamente, outras com lentidão. Mas todas acabam compenetrando-se da verdade, ou Deus não teria formulado leis justas. Ainda bem que existe o tempo para pôr uma pedra sobre todas as coisas ruins.
— Por que você não vai dizer essas coisas lá no centro? Aposto como as pessoas iriam agradar-se muito dessas palavras honestas e profundamente sóbrias e verdadeiras.
— Quando eu lhe disse que estava atarefada, não menti. Para encerrar, portanto, quero agradecer-lhe a manifestação de amizade que me demonstrou.
— Quem agradece sou eu, por ter uma pessoa de sua qualidade como amiga. Posso contar consigo pra próxima reunião?
— Vou pensar no assunto.
— Posso ligar amanhã pra confirmar?
— Deixe que eu ligue pra senhora.
A despedida não foi efusiva, embora Rute saísse enxugando lágrimas que teimavam em escorrer e Rosalinda se deixasse abater em profunda meditação, esquecida do que estava fazendo.