Não teve Teo noção de quanto tempo passou absorto, preso às idéias que lhe foram lançadas por Ari. Essa falta de apreensão do tempo acabou dominando-lhe a mente, a ponto de se interessar por resolver o problema da ausência de controle dos acontecimentos, pela alienação quase total da realidade. Assim que pôde, interrogou o amigo:
— Caríssimo, preciso saber como você é capaz de entender e de aplicar terminologia up-to-date, ou seja, modismos lingüísticos, quando tudo me leva a crer que esteja encerrado neste ambiente luminoso desde há muito tempo, sem possibilidade, portanto, de testemunhar as alterações por que passam as expressões no campo carnal. Veja que estou tentando tornar a manifestação solidária com o princípio enunciado.
Ari experimentou profunda satisfação por ser solicitado de maneira pessoal:
— Em primeiro lugar, devo dizer-lhe que, verdadeiramente, me encontro trabalhando junto a este povo há muitos anos. Se me dedicasse exclusivamente a este serviço, cuja responsabilidade honraria a qualquer ser, poderia estar afastado da humanidade encarnada, o que seria descurar o acompanhamento da evolução global das instituições terrenas. Contudo, é de obrigação que tenham os instrutores, como você gosta de dizer, acesso à mente dos assistidos, o que se alcançará somente se houver entendimento entre as partes. E esse entendimento será mais eficaz quanto mais prontamente se traduzirem, em meu campo mental, o seu pensar e o seu sentir. Deverei excursionar pela crosta, para obter a dimensão exata do universo dos encarnados que arribam para esta esfera, quase sempre envolvidos em específicas notações da existência? Não seria exeqüível. Então, estamos dotados de recurso puramente espiritual para a leitura direta das vibrações emitidas pelos seres, sem necessidade de transformá-las em sensações auditivas. Eu sei que há de parecer-lhe estranho que lhe confesse tal segredinho. Mas não demoraria você a descobrir o quanto é comum às pessoas o que no íntimo lhes ocorre, antes de expressarem-se por meio de códigos, em geral, lingüísticos. Você mesmo, encerrado na consciência, teve oportunidade de lançar no papel desenhos de roupas, modelando, antes de mais nada, o pensamento, segundo padrão de comunicação não habitual. Penso que acrescentar outros exemplos seja inútil.
— Isso quer dizer que a impressão desta conversa é a de realizar-se através das palavras, quando estamos relacionando-nos subjetivamente, telepaticamente?
— Não inteiramente. Da minha parte, consigo desempenho superior ao seu, tanto no sentido da emissão como na recepção. Entretanto, não prescindimos ainda dos dizeres, para que as idéias se fixem com certa precisão no contexto do pensamento e do sentimento gerais.
— Não sei se entendi direito.
— Não entendeu mesmo, porque a compreensão dos fenômenos, em qualquer dimensão existencial, só se concretiza plenamente quando formos capazes de dominar os procedimentos, da mesma forma que nos dispomos a usufruir as benesses dos prazeres, porque todos os atos apenas se completam quando elaboramos a teoria e aplicamos ao campo de atuação prática.
— Devo concluir que o conhecimento está constantemente realizando-se?
— É exatamente isso. Ninguém, por ser imperfeito, tem completo domínio de nada. Quando pensamos saber algo de modo absoluto, nós mesmos buscamos referenciais de outra estirpe, para o bloqueio da satisfação integral que teríamos, em função de passar adiante a experiência. Não somos capazes sequer de comprovar a nós mesmos que nada existe além dos muros que construímos na área do conhecimento, ainda que científico. Há bases axiomáticas, evidentemente, mas quem se contentar em estabelecer-se no limiar do edifício, não encontrará aquele prazer a que me referi acima. De acordo?
— As noções que estou aprendendo me levam a deduzir que o caro mestre…
— … instrutor…
— … que o preclaro instrutor sabe muito mais e que terá imensa satisfação quando perceber que o discípulo assimila e se interessa por aspectos mais avançados, para conhecer, pelo menos, o pórtico de entrada do palácio da sabedoria.
— Todos somos igualmente filhos de Deus!
— O que significa que temos sido por ele apaniguados por processo de incessante crescimento espiritual, à medida que oferecemos cada vez menos resistências quanto à abertura para o universo criado e ainda não desvendado.
— Quer realizar uma experiência corpórea que talvez lhe traga motivos para aprofundar sua meditação filosófica?
— Não me diga que já tenho condições de palmilhar as trilhas terrestres?!…
— Não digo, não! A nossa proposta, minha e de meus pares, a quem o seu desenvolvimento tem sido comunicado, visa a favorecer-lhe a compreensão dos vestígios deixados por sua presença no meio em que viveu. Você irá ter acesso ao coração dos pais e da irmã. Se houver mais alguém passível de contato, desde que promissor para o bom sucesso do trabalho de restauro moral, lhe propiciaremos tal imersão nos sentimentos.
— Noto que o campo emocional é que está em jogo. O que vocês estão almejando é me carregar de eventos sentimentais, para que preste atenção intelectual a eles, decifrando as causas para resgate das conseqüências.
— É essa sua capacidade de percepção dos objetivos que o faz credenciado a acréscimos cada vez mais significativos de informações.
— E se desandar, melindrando-me por me sentir injustiçado? Não pense que não me preocupam as opiniões de meus pais, principalmente, por lhes ter frustrado as expectativas no campo dos relacionamentos humanos na qualidade de macho, conforme estipula a sociedade para a quase totalidade das pessoas.
— Prepare-se para o pior. Não custa orar fervorosamente para obter recursos vibratórios dos mentores mais importantes da colônia, os quais lhe proporcionarão meios para discernir onde estão as falhas, se nas pessoas queridas, se em você mesmo, pela fragilidade da estrutura moral que lhe servia de base para a vida.
— Sinto-me curioso, mas também tenho muito medo de não merecer o tal amparo, porque debilitado neste catre, que só é precioso pela atenção do companheiro.
— Concentre-se na parede aí em frente. Não pretenda saber de imediato quais os mecanismos da projeção. Usufrua as imagens como se estivesse diante de tela de cinema ou de televisão. Nada que você pensar ou desejar irá modificar o que ali se passa. É como se fosse a reprodução de trechos filmados, embora lhe informe, desde já, que a ação é real e atual.
Teotônio fez o melhor que pôde para não se deixar estimular demasiado pela revelação de aspectos da verdade que lhe foram vedados antes pela insuficiência perceptiva das reações dos seres mais caros.
A cena trazia a mãe conversando com o pai. Falavam dele. Lágrimas escorriam pela face dos velhos. Lídia, chegando, interrompia mas se emocionava, igualmente. Poucas palavras. Apesar da rapidez dos sucessos da ação, parecia ao enfermo que o tempo se encontrava resumido, como se se configurassem os sentimentos permanentes das pessoas. Pensou no tenor. A tela se escureceu, demorando para reacender. A figura máscula do jovem cantor vinha caracterizada como se estivesse apresentando-se no palco. E foi só.