Teo seguia cabisbaixo, intrigado com os versos que acabara de compor. Não sabia de onde lhe viera a inspiração, contudo, contou as sílabas e chegou à conclusão de que todos eram redondilhas, conforme antigo conhecimento, desde os tempos do primeiro grau. Agradeceu intimamente ao mui digno mestre de língua pátria, entretanto, encafifou a idéia de que tal habilidade não lhe era encontradiça na presente encarnação.
— Devo ter sido poeta em outras épocas, caso contrário não teria tido o ensejo de tão facilmente elaborar a poesia, se bem que não se trate de nenhuma obra-prima. O conforto que me traz é que importa.; e esse é muito grande.
Percorreu cada palavra do poema e sentiu-o a expressão do desejo maior de se ver ajudado por alguém que dominasse a realidade circunstante.
— O que valeu mais foi a solicitação explícita de que tenham piedade de mim as forças espirituais, para que me dêem amparo — ouviu-se dizendo em voz alta.
Na verdade, necessitava de simples informação: a de qual direção tomar para encontrar a cidade mais próxima. Julgou que, se estivesse morto, os amigos da espiritualidade o acudiriam de pronto, porque em terreno desconhecido e propenso a erros de interpretação. Mas não lhe apareceu nenhuma entidade, como em passe de mágica.
— O remédio vai ser continuar indo sempre na mesma direção, enquanto não passar nenhum veículo…
Nem terminou de pronunciar as palavras e lá despontou, bem à frente, clarão de forte luminosidade, a indicar a aproximação de automóvel ou caminhão. Bem perto, distinguiu o vulto de carro de passeio, mas os gestos desesperados de auxílio redundaram improfícuos, pois o motorista sequer deu mostras de ter notado o pedestre.
— Devo estar morto, mero fantasma invisível aos olhos humanos. Da próxima vez, ficarei bem no meio do caminho. Uma de duas: ou o motorista me vê e freia.; ou passa através de mim, provando-me…
A segunda hipótese não se revelou agradável.
— E se, vivo, for deveras atropelado, perecendo pela minha estupidez? Parece-me que o plano não é o mais exeqüível. Devo prosseguir intimorato, organizando outros versos para ocupar o tempo. “As alamedas que atravesso nesta hora…” Eis que estou encontrando facilidade com a métrica. São doze sílabas, acentuadas na quarta, oitava e décima segunda. Como é mesmo o nome desse tipo de verso?
Não lhe vinha à lembrança a denominação específica.
— De qualquer modo, doze sílabas correspondem ao alexandrino, tão ao gosto do pessoal romântico... Não é verdade. Os românticos preferiram os decassílabos e as redondilhas de sete e de cinco sílabas.
Custou para lembrar-se do nome da escola que se seguira. Estava enleado entre o Simbolismo e o Parnasianismo, quando avistou alguém que vinha no sentido contrário.
— Graças a Deus! Uma vivalma para me ajudar neste transe.
Antes que solicitasse a atenção do outro, foi cumprimentado:
— Vejo que o amigo vai ao léu, no meio da escuridão.
— Pelo amor de Deus! Preciso encontrar o caminho de casa. Fui solto agorinha mesmo de longo seqüestro.
— Não há dúvida, companheiro. Vamos levá-lo de volta pra casa. Mas aqui onde estamos não passa muita condução nesta hora da madrugada.
— O senhor deve ter caído do céu.
— Não caí de lugar algum. Levanto cedo e caminho quinze quilômetros até o povoado. Lá entro no mafuá às cinco.
— Que faz o amigo?
— Puxo o cabo da enxada e faço diversas plantações.
Notou Teotônio que o sujeito apresentava poucos traços do linguajar caboclo ou caipira. Desconfiou de que estava, novamente, sendo levado a acreditar nas aparências e não na essência. Reservou-se, porém, a ver aonde iam dar as coisas.
— Existe meio de me levarem até o Rio?
— Temos diversos carros de praça. Se a sua família tiver dinheiro…
— Graças a Deus!
— Quer dizer que você ficou muito tempo em poder dos bandidos?
— Eles me disseram que cinco anos. Em que ano estamos?
— Dois mil e um.
— É isso mesmo. Fui raptado em abril de noventa e seis.
— Cinco anos e dois meses.
Teo não se animou a investigar se conversava com qualquer entidade do outro mundo. Parecia-lhe claro que errara profundamente nos cálculos da forçada estadia nas mãos perversas dos facínoras. Sob a luz da Lua, ia observando os trajes do companheiro, de modo que lhe compunha a veracidade do estado de bóia-fria. Verificou que, de fato, carregava um saco, no qual poderia estar a marmita.
— O companheiro não está com fome?
— Não estou, não. Comi um pouco ontem à noite.
— Se quiser servir-se, tenho comida quentinha no farnel.
— Muito obrigado!
De si para consigo: “Será que esse aí lê os pensamentos dos outros? Se estiver lendo agora, por favor, mostre-me claramente.”
— Nesta hora da noite, a gente se levanta e toma café com pão amanhecido. Como é que o amigo foi trazido até aqui?
Nada a respeito do pedido íntimo.
— Fui colocado no porta-malas. Sabe que nem sei qual a direção que tomou o carro depois…
— Que é isso que você está carregando?
— É o capuz que me impedia de enxergar. Eis a chave e o cadeado.
— Cinco anos preso, sem notícia dos parentes… O amigo é casado?
— Solteiro.
— Tem pai, mãe, irmãos?…
— Tenho, sim.
— Vai ser uma alegria danada de grande receber de volta o filho pródigo…
— Involuntariamente pródigo — corrigiu o costureiro.
O outro não fez menção de ter percebido a correção. Prosseguiu:
— O amigo tem dado graças a Deus. Deve ter orado muito, porque está em condições perfeitas. Se eu ficasse cinco anos preso, acho que ficava louco.
— Eu tive o privilégio de ter alguém que me estimulou a permanecer com o pensamento ativo.
— Quer dizer que conversava com o ladrão?
— Apenas assuntos de interesse dele. Eu sou costureiro, sabe?
— Já tinha posto reparo na falação correta. O amigo deve ser gente fina.
— Desculpe-me. Mas falta muito para chegarmos?
Teo não queria denunciar que tinha grandes haveres.
— Mais meia hora.
De fato, meia hora depois de caminharem em silêncio, entraram numa pequena aldeia, de casas muito pobres. Teo se julgou no fundo do mundo, no ponto mais escuso da civilização. Nem postes havia, a indicar que a energia elétrica e o telégrafo não faziam parte do dia-a-dia dos moradores. Mas havia os carros de praça…