Ao regressar, Teotônio trazia o espírito curioso para resolver o problema do valor estipulado para o Doutor, tão menor do que o seu, embora as posses do outro fossem superiores. Acreditava em que os bandidos tivessem razão quanto ao inventário e que o montante fornecido pelo interessado era inferior à realidade.
— Eles não iriam acertar tão precisamente comigo e errar tanto com ele. Vou esclarecer esse tópico, assim que o meu carcereiro me permitir outra conversa franca.
De volta, sentia-se fortalecido, como se tivesse o exercício da caminhada o condão de robustecê-lo, tanto que, de imediato, se pôs debaixo do chuveiro, para harmonizar os fluidos energéticos com o gozo das disposições psíquicas. Estranhou, sobremodo, os dizeres que lhe pipocavam no cérebro, julgando-se de novo sob a influenciação espiritual.
— Se vocês do etéreo querem ajudar-me nesta passagem terrível de minha vida, falem bem claramente, de maneira que eu possa interpretar o sentido das informações.
Aguardou a repercussão do seu invocar mas não obteve nada de diferente daquilo que podia estar pensando por si mesmo. Veio-lhe à mente a recordação que afastara no outro dia.
— Será que deverei rememorar os fatos concernentes à menina que desencaminhei e a quem não dei a atenção afetiva que lhe devia? Mas esse é caso penosíssimo, que gostaria de olvidar para sempre.
Percebeu que os acontecimentos se alinhavam irresistíveis, desde o começo, quando conhecera a garotinha.
Tinham seis anos e estavam no mesmo curso pré-escolar. Viviam juntos, de mãos dadas, talvez porque as “tias” estimulassem a atitude, admirativas e encorajadoras.
As mães se conheceram e se afinaram em amizade que perduraria até a juventude de ambos. Aos oito anos, continuavam juntos na escola, quando se viram em brincadeiras de descobertas sexuais. Nos momentos isolados, escondidos dos adultos, as crianças, curiosas, queriam examinar a genitália do sexo oposto. Teotônio recordava-se de que Maria desejava um pouco mais. Queria manter relações incipientes. Eram encontros pejados de culpa, porque os padres, nos confessionários, instigavam o sentimento, acrescentando padres-nossos e ave-marias aos totais das semanas anteriores. Mas Teo desafiava os mandamentos, que repetira tantas vezes nas aulas de catecismo, e reincidia.
Nesse ponto das aflitivas recordações, viu-se enredado por garoto mais velho, que lhe pedia carícias mais pungentes, obrigando-o a atos de pura libidinagem, a ponto de se esquecer de que Maria estava...
— Não vou prosseguir. Tenho vergonha de mim mesmo. — Falava instintivamente em voz alta, desejando talvez ser ouvido. E foi.
— Acho que você está retratando a infância da maioria das pessoas. Por que é que você se sente oprimido pelas lembranças, quando tudo o que fazia não dá nem a pálida idéia dos atos sexuais de jovenzinho e de adulto?
— Você estava escutando atrás da porta. Para dizer a verdade, suspeitava disso e não me importava que ouvisse.
— Mas o que foi que o deixou tão magoado, em relação à garota?
— É que fomos surpreendidos juntos pelos pais dela e, merecidamente, nos fizeram ficar longe um do outro. Mamãe, com muito dó, me transferiu de colégio, necessitando pagar a condução, o que lhe onerou por demais as contas.
— E o caso com o menino? Também foi descoberto?
— Não foi e isso me deixou muito mais...
Teotônio se viu soluçante, incapaz de prosseguir.
— O seu caso é interessante. Devo concluir que houve outros meninos?
— O pior é que sim. Na escola, fui assediado e não resisti. Com o tempo, fui tomando gosto, me tornando homossexual ativo e passivo.
— Mas o caso com Maria não terminou naquilo.
— Ela e eu fomos crescendo em malícia. Um dia, depois de cinco anos, quando já ejaculava e ela menstruava, vimo-nos empenhados num relacionamento muito mais perigoso.
— Ela engravidou.
— Penso que sim. A verdade é que a família dela se mudou e nós nunca mais nos encontramos. Parece que, longe dos nossos olhos, houve um acerto de contas entre nossos pais. Bem depois, fiquei sabendo que eu não fora o único nessas transas de adolescentes.
— Na verdade, pelo que entendi, Maria “galinhava”...
— Não diga isso, por favor.
— Posso não dizer, mas não foi o que você sugeriu?! Quero saber por que razão você se sente tão deprimido com algo que ocorreu em momento de sua vida, quando não era responsável pelos próprios atos.
— Eu acho que foi por causa de termos sido tolos, envolvendo as famílias num rolo tão idiota. Tenho visto situações semelhantes, que se resolveram através da retirada do feto.
— Mas você não sabe se tem ou não um filho?...
— Esse é outro drama que me atenaza o pensamento. Qualquer dia, vai chegar uma dona bem diferente da mocinha que eu conheci, dizendo que sou pai de um jovem ou uma jovem de vinte, vinte e poucos anos.
— Com todo o seu dinheiro, vai ser fácil contornar qualquer situação desagradável. Quem sabe vocês se restituam o direito a uma vida saudável, conduzida pelas agradáveis lembranças...
— Que agradáveis, que nada! Se estou dizendo que esse fato é o que mais me penaliza.
— Mas nos momentos em que estavam juntos, tudo parecia muito bom.
— Isso é verdade.
— Então?! São esses momentos de felicidade a dois que vocês poderão reconstituir.
— Mas será que ela não terá perdido os anos mais importantes de sua juventude?
— Isso você está imaginando. Não pode ter certeza do que se passa no coração da senhora, que hoje deve ter passado dos trinta.
— Trinta e cinco, como eu.
— Gostei de que você me contasse o drama de sua vida. Eu tenho assistido a tragédias muito mais importantes. Coisas de enlouquecer. O que você está passando neste presídio não vai ser muito mais pungente em suas lembranças? Afinal de contas, aqui você não tem nada de bom pra recordar.
— Posso chamar você de Severino?
— Por que isso, agora?
— É que dar um nome à sua pessoa me parece bem melhor, para tonificar estas passagens que irei recordar com alegria. Pode crer.
— Só me faltava essa! — exclamou saindo o “Severino”.
Teotônio sentiu que comovera o algoz.
— Terei tido algum valor, se convencê-lo de que nem tudo na vida é só desgraça e exploração entre as pessoas. Quem sabe se regenere. Juro por Deus que, se me pedir, vou empregá-lo numa das minhas firmas. Estou disposto a esquecer-me de tudo o que venho passando. Não tem preço o que ele fez hoje por mim.
Na tentativa de compreender por que não revelara essa parte do passado ao analista, Teotônio mergulhou em profundo sono, sem pesadelos. Dormia serenamente, como se estivesse sob as suas cobertas, na segurança do apartamento.