A noite se passou mergulhada em dores. Teotônio teve visões incríveis de distantes eras, como se tivesse imergido no passado de diversas vidas e em existências além da matéria. Conviveu com monstros pré-históricos, pelejando para sobreviver. Lembrava-se vagamente de que sua forma não era humana.
— É a inconsciência larval da evolução que aflorou, com certeza.
Mas não ia além dessa suposição, no temor de ofender as crenças incrustadas na mente.
— A época em que me vi ateu sob o domínio da razão me pegou às voltas com a ferrenha oposição eclesiástica. O tormento das torturas e o crepitar das chamas me queimaram até a alma.
Nesse momento, achou que o pensamento flutuava para além dos domínios cerebrais, fora da vontade, sensação mediúnica que se acentuava, e se pôs a ouvir a voz interior, como se não fora ele o interlocutor oculto:
— E se não passei de algoz na Terra, tendo sofrido a justa penalidade no éter, pelas injustiças praticadas, não tanto contra as pessoas como entidades socialmente marginalizadas mas essencialmente como criaturas de Deus, o que me faz reconhecer que ofendi a obra do Senhor?...
Sacudiu a cabeça. Argumentou:
— Devo estar elaborando a tese à vista da condição de prisioneiro, atribuindo aos seqüestradores a culpa de me magoarem e de vilipendiarem a criação.
Falou em voz alta, sem perceber que o fazia espontaneamente. Entretanto, o som como que lhe sensibilizou a atenção para o fato de que a terminologia avançava no sentido filosófico, sem que se esforçasse para dar tal tonalidade ao discurso.
— Preciso saber quantas horas dormi, para novas doses de remédios.
Disse-o quase a gritar, provocativo da reação dos invisíveis malfeitores. Acendeu um fósforo e viu que dormira exatamente seis horas, como se tivesse sido despertado pelo relógio. Tomou os comprimidos, lembrando-se da recomendação de que só deveria acender a vela, para ver as horas.
Distendeu os músculos, encontrando-os enrijecidos, doloridos. A dor do lado amainara acentuadamente e a coceira da cabeça, tênue, estava apenas lembrando-lhe da existência dos microscópicos inimigos. Súbito, raciocinou:
— Se, em lugar dos bandidos, forem os inimigos invisíveis que me matarem, como é que deverei agir, inculpando-os? Terão responsabilidade perante as leis que argüi relativamente ao sonho ou à condição de recluso? Ou estarão, simplesmente, cumprindo o esquema biológico inscrito em sua natureza, favorecidos pela fragilidade das defesas fisiológicas? Não fui tão brilhante aluno no secundário para inventariar tais noções com precisão. No entanto, parecem-me necessárias as reflexões para o entendimento do que vier a fazer, após os acontecimentos que me estão oprimindo.
Sentiu a garganta seca, desacostumado a falar tanto. Contudo, não obteve resposta alguma. Meditou sobre as preocupações que o mantinham aceso intelectualmente e perguntou-se por que não voltava o pensamento para as realizações da profissão, imaginando como é que daria curso aos projetos em andamento.
— As coisas das fábricas e das lojas estão se distanciando, como se não fosse voltar mais a enfrentar o duro labor de cada dia.
Foi o estopim que acendeu para a lamentação da perda da identidade física da encarnação.
— E se tivessem seqüestrado minha mãe ou meu pai, qual teria sido minha reação? Daria os três milhões ou julgaria muito, dado que a perda do restante da vida deles não iria corresponder nem a um por cento de sua produtividade?
A loucura do pensamento negativo prostrou-o e Teo pôde revirar os bolsos da calça dobrada sobre a cadeira, para encontrar o lenço com o qual se assoaria.
— Meus primeiros lenços foi papai quem comprou e foi mamãe quem lavou e passou. E eu estou exercendo esta análise perversa de minha maneira de ser... Mas devo enfrentar francamente a denúncia do coração. Estando na situação de fornecedor do tributo da malandragem, mesmo para meus pais, acho que não teria coragem de me desfazer de tanto dinheiro.
— Por isso é que nós trouxemos você e não eles.
O inesperado da observação emudeceu o surpreso modista. “Se eu soubesse que o cara estava aí, não teria ido tão longe nas suposições em voz alta. Preciso tomar cuidado com o que digo.”
Perdida a iniciativa da prosa, Teotônio aguardou que a voz da escuridão lhe provocasse o raciocínio. Nesse aguardo, o tempo passou, enquanto buscava justificar a si mesmo a denúncia do egoísmo, do pão-durismo, da falta de consideração pelas pessoas mais importantes de sua vida. Nesse caminhar pela valorização dos seres que lhe emprestaram as emoções existenciais, acabou recordando-se da irmã, do tenor e da... Hesitou em recordar algo que fizera questão de deixar no olvido. Resolveu interrogar o negrume:
— Não estará na hora de me matar a fome? Estou...
— Ponha de volta a touca.
— Pronto!
— A comida está servida. Ao ouvir a porta, pode acender a vela.
O prato de feijão, arroz, carne e verdura se repetia. Mas havia a novidade de uma colher de plástico.