De repente, apurou o ouvido e reconheceu que alguém entoava uma modinha popular, mistura de brejeirice e de pornografia, letra adulterada, não sem sugestão da original.
Teotônio se sentiu menos vulnerável. Algo havia familiar ao derredor, algo em que se apoiar, caso precisasse entabular conversação. Não era a “Tosca” que pretendera assistir, mas a voz lembrou-lhe o tenor do ano passado.
Buscou reconhecer se era homem ou mulher que cantava, mas foi incapaz de perceber, tão distante se encontrava o som, mesmo porque o grosso capacete de couro impedia-o de saber de onde vinha o canto.
Negou-se, contudo, a desistir e firmou o propósito de perguntar na primeira oportunidade, para que...
Seu pensamento se interrompia a propósito de nada, sempre que se estimulava em relação aos carcereiros. Seria de ódio ou de excessivo medo a reação contrária aos malfeitores?
— Quem será que deseja tanto ficar rico a ponto de se arriscar de maneira integral, não apenas no que respeita ao mundo físico, como ainda ao do espírito?
Punha-se diante da morte e do castigo eterno. Segundo a irmã, a vida era simples trânsito por dimensão restritiva, com regras e dispositivos próprios, cheia de leis específicas, irreconhecíveis se outros fossem os termos existenciais, como no caso de se alimentar e repousar, para que o organismo possa restabelecer-se energeticamente.
— Se eu tivesse lido os livros que ela me deu, talvez tivesse mais subsídios para a meditação. Em todo caso, a mãe iria simplificar as coisas, dizendo que, se os bandidos me matarem, eu serei levado ao Purgatório. E, se eles morrerem em combate com a polícia, cairão no Inferno, para eternal sofrimento. É bem verdade que o que me estão causando é suplício com que não contava, mas daí a queimarem em fogo sem fim, chuchados pelos demônios, vai distância incomensurável. Isto que estou passando pode até ser parecido com purgatório, conquanto, para se transformar em inferno, baste muito pouco: que os caras façam o que me obrigaram a gravar. Se eu estivesse com as pernas quebradas, estaria curtindo a atrocidade de perspectiva muito ruim.
Imaginou as masmorras e subterrâneos dos castelos medievais, onde os pobres condenados por magia ou feitiçaria eram torturados e viu-se em situação até confortável. É verdade que comia pouco, mas tinha a garrafa de refrigerante, o leite e o pão. E se não lhe dessem nada, nunca? Por certo, a cabeça iria ficar em pandarecos, como ocorreu nas primeiras horas. Agora, o pensamento estava mais claro, talvez por ter forrado o estômago.
— Por falar nisso, quando será que irão trazer um pouco mais de comida? Estou começando a sentir fome.
Passou a mão pelo abdômen. Estava murcho. Lembrou-se de que vivia fazendo regime para manter os setenta e dois quilos do equilíbrio necessário com os seus metro e oitenta e cinco de altura. Vestia de suas confecções e apresentava-se impecável em cada situação social. Com que cuidado preparara-se para a noitada operística! Devia estar ridículo com a roupa de gala amarfanhada, transformada em pijama.
— Ainda bem que me deixaram com o paletó. Sem nenhuma coberta, estaria fácil de me gripar, sem pensar em pneumonia ou...
Pensou que lhe disseram que fora vacinado contra todas as doenças, na época oportuna. Tomou BCG para a tuberculose. Nunca soube de ninguém com essa doença. Só através da literatura e pelo conhecimento dos poetas românticos, no curso colegial.
— E se eu compusesse alguma poesia, para narrar o meu estado emocional, nesta circunstância? E lá eu tenho os conhecimentos técnicos necessários?! Quando tentei alguns versos, estava lendo Drummond e sua poesia livre, coisa como a ridicularização da rima: “Mundo, mundo... Raimundo”. Não atinava com o restante. “A rima não seria a solução...” Será isso?
Pensou na educação moderna e na rejeição das tentativas dos professores para que decorasse textos. Julgava excessivamente tolo papagaiar a criatividade alheia. Tanto que buscava fazer os seus modelos bem longe da inspiração haurida dos concorrentes ou dos mágicos franceses e italianos.
Notou que a voz se apagara e que o silêncio pesava no ar úmido do cômodo.
— Será que me deixam escrever os meus pensamentos, para que possa manter-me vivaz e atento?
Antes que tivesse oportunidade de pedir papel e lápis, disseram-lhe:
— Você vai continuar de máscara. Não deixaram tirar. Tome um prato de comida. Não tenha medo: foi comprada num restaurante. Mas você vai ter de comer com as mãos.
Sentiu que lhe passavam um prato de plástico. O cheiro até que estava bom. Mas a comida estava fria. Era feijão com arroz.; tinha uma verdura cozida, que pensou ser espinafre. Havia um bife duro, com gosto de pimenta e de cebola refogada. Estava excessivamente salgado, para a sua dieta de pouco sódio. Desejou mostrar que aquele não era o melhor para ele, mas se desencorajou.
— E se me levarem embora tudo?
Suspeitou de que, se deixasse alguma coisa sobrando, poderiam diminuir a quantidade. Então, resolveu comer tudo.
Enquanto comia, voltou a ouvir aquela mesma longínqua cançoneta. Insopitáveis, lágrimas invisíveis correram-lhe pela face, sem que se envergonhasse delas.