Do alto, viam-se extensos territórios, com diversos pontos assinalados para a observação dos estudantes.
Felícia desejou logo estabelecer a polêmica resultante do fracasso da civilização comunista fundamentada nos valores do materialismo dialético:
— A separação das populações pela implosão da União Soviética como catalizadora política e econômica não está a demonstrar o quanto faz falta a liberdade? Querido Epaminondas, não veja na questão nada que possa conter frontal ataque aos que mantêm a fé nos princípios socialistas, mas observo, no conjunto da população russa, incoercível tendência para o menosprezo às leis, agora que o poder militar arrefeceu. Eis que o ideal tão intensamente combatido, ou seja, o capitalismo, se insinua nas mentes de um povo cuja produção agrícola foi tantas vezes alardeada de maneira falsa, pura ilusão criada pela propaganda governamental, e que agora luta por manter-se, insistindo na exploração das nações satélites. Enquanto a disputa espacial rendia para a preservação dos direitos das forças militares, havia o medo a coagir os cidadãos comuns. Agora, em matéria de desenvolvimento nuclear para efeitos pacíficos, após o desastre de Chernobyll, já se sabe que o poderio bélico não poderá ser empregado sem arrasar a mundo inteiro. Sei que há bandidos organizando-se ao estilo da máfia italiana ou dos cartéis colombianos da cocaína, com finalidades tão graves quanto a venda dos projetos das bombas nucleares bem como do urânio enriquecido aos países árabes interessados em impor-se sobre os demais, principalmente com a desculpa da invasão do Oriente Próximo pelo povo israelita. Desculpe-me as informações históricas imprecisas, mas me diga se estou errada em imaginar o quanto perderam os irmãos russos trabalhando exclusivamente no interesse da construção de uma grande sociedade independente do pensamento religioso.
Epaminondas, contudo, não respondeu, limitando-se a devolver a questão em forma de perquirição evangélica:
— Temos tido a oportunidade de avaliar o descaso dos homens em relação aos valores cristãos. Desse ponto de vista, a prática religiosa não difere da orientação do materialismo ateu. Mas não está chegando a hora de conhecermos o seu pensamento, Felícia, de como agir para superarmos os problemas que impedem o crescimento espiritual de todos os povos?
— Percebo que o mestre está exercendo o mesmo direito sobre que tenho baseado a instigação dos pronunciamentos para registro em nosso livro. Aceito o desafio e comprometo-me a responder-lhe, assim que me inteirar dos recursos com que vamos contar junto a cada conglomerado humano. Tenho orado muito pela luz dos protetores siderais, para que possa organizar-me quanto a descobrir as soluções. O que mais me tem afetado, no sentido de me ver impossibilitada de perceber os meios de atingir os corações humanos, é a falta de cultura. Se me deixarem conversar pessoalmente com cada habitante da terra, talvez consiga convencê-lo a reagir dignamente contra os maus hábitos, os vícios e demais procedimentos contrários ao ensino de Jesus. Mas pensar de forma tão abrangente me deixa inferiorizada. Mesmo o rascunhão, que tenho buscado corrigir a cada nova percepção da fragilidade de meus conhecimentos, vai passando aos mortais o quão pouco somos capazes de ajudar, perante a incrível variedade de situações e de caracteres. Como simples peça de uma engrenagem mundial, talvez venha a desempenhar a contento um modesto papel. Mas fornecer um plano para a recuperação do que se perdeu e do que se está arruinando na biosfera terrestre, somente após alguns milênios de constante progresso intelectual.; e já estou referindo-me à relatividade do transcorrer do tempo em nosso plano, com a contenção absoluta dos disparates emocionais. Nenhum representante das forças espirituais superiores que se encarnaram obtiveram universal aceitação. Jesus foi crucificado. Os seus seguidores, entre outras coisas terríveis, massacraram os indígenas nas Américas e na África, e, em nome da Religião Cristã, criaram o Santo Ofício, o tremendo Tribunal da Inquisição, cuja carnificina deploram até hoje muitos dos carrascos, nas profundezas das Trevas. O que penso é que urgem as atividades para a salvação, correndo muito mais céleres os índices da tragédia global. Não gostaria de passar aos encarnados, simplesmente, a minha preocupação. Mas que outra coisa poderei fazer de imediato, senão sacudi-los da marasmática posição das regalias inconseqüentes?! Talvez, no substrato doutrinário espírita, sobre o qual depositamos as nossas aspirações, possam encontrar a esperança, reavivando a fé em que, agindo caritativamente, irão superar as dificuldades, mesmo se não se interessarem pela leitura de divulgação filosófica e religiosa pelos padrões kardequianos. Mas nos cabe, neste momento histórico, intervir onde nos for possível, para o esclarecimento a que estamos habilitados. Se conseguirmos passar a idéia de que agimos com absoluta seriedade e inarredável convicção de que o melhor para todos é enxergar em cada semelhante um irmão em Deus e que a felicidade eternal somente advirá da prática do amor humanitário, talvez estejamos diante do início dos trabalhos evangélicos de nível superior. Eis que me concentrarei, a partir de agora, no aprendizado científico a que me recusara primitivamente e que aceitara, depois, como diletantismo para tarefa de cunho quase acadêmico. Esta peregrinação me valeu para reconhecer no sangue que percorre as veias dos encarnados aquele mesmo que por meu corpo corria e me fazia uma criatura viva, capaz de progresso pelo trabalho em prol dos meus e do próximo, nas atividades a que me dediquei. Já não vejo o aspecto sacrificial de nova imersão na densa região material do planeta como oportunidade de crescimento pessoal. Sinto, isto sim, que há muita gente que necessita de esclarecimentos, de apoio, de consolação, de otimismo, de ideais para além da curta visão material. Se tiver de viver mais mil vidas, mil vidas devotarei à prática do bem, pelo amor ao Pai.
Sufocaram-na lágrimas em puro agradecimento ao Senhor pelo ensejo da manifestação e pela profunda honestidade de propósito. Os colegas, os monitores e os professores se contagiaram pela vibração da companheira, que se traduzia em emanações de poderosa luminosidade. Todo o ambiente recebeu o impacto da simpatia do círculo imediatamente acima da esfera terráquea, em clima de felicidade transcendente pela assimilação de mais um elemento para a formação superior daquela entidade.
Atenuados os efeitos do deslumbramento moral, voltando a pressão ambiente a se exercer sobre os perispíritos, Leopoldo encerrou as observações do dia, enfatizando a necessidade de se evitarem os deslizes críticos que se vinham acentuando pela constatação das falhas das personalidades humanas:
— Não quero acrescentar nenhum ensinamento à manifestação de Felícia, mas vou revelar que, pelos padrões da terra, não se passaram mais que trinta segundos desde que iniciamos a reunião. Se continuarmos concentrando-nos tão eficazmente nos tópicos de interesse para a nossa formação de socorristas, talvez nem necessitemos visitar as demais regiões do roteiro.
Contudo, a resolução do grupo de pronto se revelou favorável ao prosseguimento da viagem.
Leopoldo concluiu:
— O Oriente espera por nós.
Nem terminou de falar e já se divisava a capital libanesa, de onde se erguiam fortes jatos de negras formas-pensamento. Beirute era a primeira cidade que encontravam em franca hostilidade.