A viagem para o extremo sul do País foi serena. Tumultos íntimos, só quando se apreciavam as lavouras extrativas, onde a mata natural está quase totalmente desaparecida. Mas essa paisagem tornava-se a mais constante, não oferecendo razões para surpresas. O que podia favorecer os encarnados eram longas extensões de plantio de espécies não nativas, para aproveitamento industrial, sem, entretanto, o contrabalançar da restauração da fauna. Em todo caso, imaginavam que esse poderia vir a ser um dos mais poderosos meios de convencimento das populações para pensarem em termos ecológicos, equilibrando as zonas de exploração comercial com as de manutenção da vida.
As comunidades iam fixando aspectos novos quanto aos tipos humanos, de forma que os estudantes pareciam peregrinar por outros países. O mesmo podiam observar quanto à mentalidade, agora bem mais afeita aos padrões bucólicos da paisagem.
Os mais sensíveis choravam, na presciência de que muitos inocentes iriam pagar por crimes que não cometeram. Tanto se lamuriaram que Epaminondas decidiu discutir o assunto com a classe reunida.
— Vocês estão achando que estes irmãos ligados à terra e à criação de gado são inocentes? Quem fala em nome dos mais “sentidos”?
A interpelação parecia revelar enorme crítica. Ninguém quis atrever-se a falar por si mesmo. Felícia, que não partilhava daqueles sentimentos de comiseração específica, solicitou, através da freqüência das intuições, que se constituísse representante dos temerosos.
Epaminondas lhe passou a palavra.
— Tenho para comigo, prezados mestres, que estamos diante de fraqueza estrutural da psique dos que se julgam igualmente necessitados de amparo. Projetamos nos seres que serão banidos da face do planeta a própria imagem, compreensivelmente frágeis perante a grandeza do desastre. Vemos nos agricultores e pecuaristas pessoas interessadas em beneficiar a coletividade, apesar de incultos, porque enxergam pequeno, provincianamente. Analisamos a presença dos agrônomos e veterinários e fazemos o desconto do tanto de prejuízo que a ignorância causou ao meio ambiente. Imaginamos que muitos filhos da região serão enviados para as universidades, em busca de socorro científico e técnico, para a reversão dos males ecológicos. Reconhecemos que existem muitos sem terra e sem amparo de qualquer natureza, mas responsabilizamos a conjugação dos fatores históricos para o efeito da pobreza e da miséria. Estarei sendo injusta ou afoita na apreciação de seus sentimentos?
Onda de aprovação se fez claramente sentir em favor das expressões da porta-voz, que prosseguiu:
— É evidente que amplas reformas serão bem-vindas, se tomadas com discernimento, para a distribuição eqüitativa das riquezas entre todos os cidadãos. Urge, porém, que as pessoas se compenetrem de que nenhuma atitude tão abrangente surtirá efeito, quanto à melhoria das condições planetárias, se não se dedicarem aos estudos dos recursos ao seu alcance para a manutenção das condições de sobrevivência. A guerra entre latifundiários e o povo desprotegido e despreparado não redundará, automaticamente, em benefício da humanidade, qualquer seja o resultado. Sabem os que se deixaram sensibilizar pela perspectiva do sofrimento global dos seres que trabalham honestamente, segundo os padrões legais ou consuetudinários, que muitos obterão meios de progredir espiritualmente, qualquer venha a ser a repercussão do desastre no âmbito etéreo em que imergirão. Contudo, a maioria está necessitada de novas encarnações para a fixação das diretrizes evangélicas conforme estamos atualmente considerando a programação cármica, quais sejam, aquelas dirigidas para o amor universal.
Epaminondas aproveitou para questionar a postura da palestrante:
— Quer dizer, em termos bem realistas, que a discórdia declarada ou latente entre as camadas da sociedade campesina não se coaduna com os princípios cristãos, ainda que considerados sob o ponto de vista da própria religião que vem instigando os conflitos, em nome do favorecimento dos pobres?
— Percebo que Epaminondas quer destruir a argumentação segundo a qual existem muitos inocentes. Pois, nesse caso, não devo mais representar os que confiaram em mim, porque, desde há muito, nutro a esperança de ser compreendida, quando me manifesto contra as querelas que se instalam nos corações, porque muitos se aferram na letra das leis que lhes dão direitos sobre muitas propriedades, enquanto outros se apegam em quiméricos direitos de cidadania, pelo princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei. Sendo assim, é justo que sofram a desdita de verem tudo aquilo em que acreditam se esboroar contra a inexorabilidade das leis cósmicas, as quais, de um jeito ou de outro, sempre alcançam prevalecer sobre a vontade humana. Estou apenas relembrando a sacratíssima prece de Jesus, no ponto em que dá a cada irmão a possibilidade de entender a grandiosidade da misericórdia do Pai, ao oferecerem a própria vontade em sacrifício pelo exercício da vontade do Criador: “... seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu...”
— Entretanto, interferiu Epaminondas, é sempre oportuno deixar-se sensibilizar pelo sofrimento alheio, mesmo que retrato do nosso, na perspectiva de encarnações trabalhosas, sem garantias de sucesso e sem necessidades cármicas. Não transfiramos, porém, a nossa ingenuidade, crendo simples e humildes os povos ignorantes. É de nossa ignorância que devemos ter medo, tanto que estamos averiguando “in loco” o que não fomos capazes de compreender na teoria. Felícia deseja concluir?
A interpelada ia imersa em reflexões, mas recompôs-se, para acrescentar:
— Temo que estejamos capacitando-nos para o exame dos desvios das personalidades humanas, em função dos valores evangélicos, sem considerar que muitos conhecimentos da superior moralidade cristã estejam arraigando-se nos corações dos mais sensíveis, ainda que impotentes para realizar algo de muita importância, no sentido da luta que vimos propugnando contra os que destroem a natureza. A transmissão mediúnica deste tipo de ponderações, eivada de conceitos que se pretendem úteis para a formação dos socorristas em processo de regresso à carne, poderá repercutir negativamente entre os que se encontram em vias de litígio por algo que preconizam como justo, inclusive perante as normas divinas do distribuir e do seguir com Jesus, porque, se existem os que doam, existem os que recebem. Se lhes passarmos a idéia de que devem ir com o Nazareno até o derradeiro sacrifício, irão profligar a necessidade da luta para recuperação física do planeta, dada a responsabilidade atribuída n’Os Evangelhos aos magnatas, aos poderosos, aos donos do poder e da religião: — “Ai dos que coonestarem a maldade e chafurdarem no egoísmo, no orgulho, na vaidade, no materialismo do venha-a-nós-o-vosso-reino!” — compreendendo nesse “nós” apenas os que usurparam os bens para uso pessoal, desprezando os que não tiveram força para se impor sobre os demais. Será falsa tal interpretação, evidentemente, porque estamos, na verdade, pretendendo formar um exército para batalhar a favor da vida, contra, portanto, os que esfacelam as riquezas que a todos pertencem: o ar, a água e o solo.
Epaminondas, que não esperava outra conclusão de Felícia, encerrou a reunião, determinando:
— Que se elabore a minuta da ata desta sessão, para transcrição oportuna junto às demais mensagens a serem encaminhadas aos irmãos encarnados. Que Deus nos ampare nas deliberações que tomarmos sob o efeito das emoções, para que sejamos equilibrados e justos!