Depois que escrevi meu primeiro texto, anotado num caderno de brochura, fiquei com muita vontade de rasgar a folha e jogar no lixo. Mas consegui refrear o impulso, jurando para mim mesmo que iria descobrir o que realmente havia registrado que não me deixou satisfeito.
Foi assim que reli a página uma dezena de vezes e me enchi de idéias para refazer quase tudo. Mas também me determinei a não mexer no conteúdo, embora não tenha firmado na mente que deveria manter aquele formato. Houve, entretanto, algo que, se não corrigir logo, ou, ao menos comentar, vai entristecer-me.
Trata-se do trecho em que fiz constar que meu nome havia sido maculado pela primeira vez. Em seguida, citei o fato de minha mulher, a mãe do morto, me haver abandonado, o que, evidentemente estaria a sugerir algum ato de traição, de desentendimento, de orgulho ou egoísmo de um ou de outro.
Em tempo, outra falha absurda reside no fato de não haver dito o nome dos seres envolvidos na trama, falha que corrijo agora, dizendo que meu filho portava o nome de Augusto, aquela mulher é Ana e eu sou Murilo.
Não pretendo estender-me na análise psicológica de Ana, mas a verdade é que é mulher de decisões definitivas, não demorando para levar a cabo os seus intentos.
Nosso casamento se deu após alguns meses de namoro (namoro mesmo), ela engravidou, deu à luz e um ano depois partia, deixando-me a cuidar do nenê, que nem havia completado dois meses.
Nós éramos jovens? Nem tanto: vinte e cinco, eu.; vinte e dois, ela. Ambos sem gosto um pelo outro, que a nossa língua batia nos dentes com excessiva força e constância.
Por mim, enfrentaria a “barra”, conforme sempre pensei, atribuindo a Ana o insucesso do relacionamento. Mas talvez mude de opinião, com a perspectiva de mais de trinta anos de vida separada, recordando-me dos nossos diálogos, que teimo em não reproduzir, embora saiba da necessidade deles para que os escritos narrativos obtenham sucesso junto ao público.
Não é que não me lembre de como expressava as minhas idéias.; é que a transposição crua das discussões para o papel me põe de sobreaviso quanto a fomentar a criação de formas-pensamentos pelo espírito dos leitores, induzindo-os a mentalizar cenas que podem repercutir no etéreo, chamariz certo para irmãos menos felizes.
No entanto, tenho de assinalar que, sempre que Ana se abespinhava, lá ia eu fazer certas contas e não perdoava a sua incontinência em dias de tensão pré-menstrual. Acendia-lhe a justa necessidade de revide, porque era de sua personalidade não levar desaforo para fora de casa.
Ao contrário, um dia deixou-os todos lá e partiu, o nenê muito pequeno.
Por incrível que pareça, ao levar Augusto ao pediatra e ao pô-lo a par de a mãe tê-lo abandonado comigo, ainda tive de ouvir que, provavelmente, era um problema de tensão pós-parto, e lá ia eu contabilizando as reações femininas na coluna dos fenômenos psicossomáticos, sem saber naqueles dias que era essa a nomenclatura mais adequada para a contaminação da mente ou do comportamento através dos desequilíbrios orgânicos mais naturais.
Deixo o texto neste ponto, quanto às memórias que registrei no primeiro capítulo, para aventar a hipótese espírita que hoje conheço de que, na verdade, não tínhamos sido feitos um para o outro, a não ser para a geração de um filho que, estou quase certo, concordamos durante o sono, que deveria ser de minha inteira responsabilidade.
Imaginem o que sofri quando alcancei elaborar essa teoria, após dois anos de idas e vindas às conferências, palestras e aulas evangélicas que se ministravam no centro espírita que ainda agora freqüento.
Escrevo e já desconfio de que os conceitos vão acumulando-se sem explicações definidas, como se eu os respeitasse na qualidade de dogmas, de verdades inflexíveis, de postulados definitivos. Se ocorrer o mesmo de novo, ou seja, se me vir em palpos de aranha, por sentir que o que escrevo vai continuar pesando-me na consciência, ou melhor, se inferir que não terei como dar continuidade à narrativa de minhas reminiscências com um pouquinho de lógica, acho que perderei o pejo de arrancar as folhas, para escrever tudo de novo.
Olho no relógio e constato que faz menos de meia hora que estou passando para o papel o que vou chamar de meus sentimentos, uma vez que, pelas leituras que possuo, não posso considerar este texto de alto gabarito. Valho-me dessa experiência para manter o caderno intacto, porque sei que as explosões emocionais podem significar que não desejo aplicar-me um pouco mais neste desforço de revelar-me a mim mesmo.
Rasgar e incinerar haveria de ser o mesmo que pagar a conta do psicanalista sem se deitar no divã. Penso assim: se não der certo, pelo menos a tentativa terá valido para demonstrar as causas do fracasso, aliviando-me as angústias das futuras frustrações.
Com certeza, se eu mostrar estes dizeres aos meus amigos médiuns, irão dizer que existe algum “encosto” a me desorientar o ato de pensar e de escrever.
Hoje não quero ir mais além, que os gorgomilos de certas idéias começam a me fazer coçar as pontas das orelhas.
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