Recolhido a seu modesto quarto de um cômodo com banheiro, mais o indefectível terminal eletrônico ligado aos computadores centrais e daí em relação com todas as colônias próximas, Adonias passou em revista todas as questões a que havia respondido, encafifado com o fato de que as suas organizações didática e programática, em comparação com a conferência de Maciel, estavam absurdamente primitivas.
Havia juntado as perguntas parecidas em blocos, para facilitar suas respostas, mas percebeu que cada qual oferecia nuanças interrogativas que deixara de levar em conta e que poderiam fazer enorme diferença quanto ao ponto de vista dado à resposta. Assim, entre: “Por que o ex-sacerdote não preconiza um estudo das causas de nossos interesses por Jesus?” e “Por que o ex-sacerdote não se interessou por que nós mesmos levantássemos os motivos que nos trouxeram à sua classe?”, acabou por constatar que o primeiro tinha uma nítida linha religiosa cristã, eivada, à primeira vista, de certas dúvidas ou das suspeitas delas, enquanto a segunda, com certeza, estava centrada, não no interesse temático, mas na descoberta da motivação do conferencista.
“Como responderei a cada uma delas?”, foi seu primeiro pensamento. Depois mudou a formulação da pergunta: “Como Maciel se haveria diante de cada questão?”
Chegou à conclusão de que o seu mestre talvez não se interessasse nem em responder ele mesmo, nem pelas resposta em si, mas se concentrasse no estímulo a que cada qual respondesse às próprias indagações, talvez levando a solução provisória à discussão pelo grupo, antes de apresentá-la definitivamente como equação espiritual a que se aplicaria esta ou aquela fórmula algébrico-psicológica.
Pensa que pensa, resolveu dar uma resposta a cada pergunta, sem ser taxativo, mas eqüidistante, como a fomentar novas interrogações. Mas não foi muito longe, havendo embatucado na primeira:
“Por que o mestre atribuiu à classe a decisão a respeito de como escolher a pessoa que iria realizar a prece e não determinou previamente que fulano ou sicrano tivesse tal incumbência?”
Maciel havia realizado ele mesmo a prece, certo de que sua capacidade religiosa preponderava sobre a de todos os estudantes matriculados. Não seria o caso — Adonias coçava o couro cabeludo quase raspado — de adotar uma linha de procedimento diferente, buscando entrevistar todos os inscritos, com cuidado, para definir-lhes a extensão dos conhecimentos e a ênfase que davam aos temas de sua programação? Mas, se Maciel não chamara ninguém...
O nosso herói achava que era o bastante para caracterizar que a categoria do seu professor eclipsara completamente o seu entusiasmo em ministrar conhecimentos evangélicos. Mas assumira um compromisso e, como jamais, fugira de suas responsabilidades...
Nesse ponto, punha em dúvida essa certeza. Desde que lhe voltara a consciência da realidade circunstante, a todo momento, via-se diante de pequenas crises de procedimento, porque lhe fugiam os nexos entre causas e efeitos de cada atitude tomada em vida. Quanto às reminiscências de que dedicara uma existência corpórea ao monastério, onde exercera as funções de copista, isso na Idade Média, e outra vida como usuário da língua francesa, provavelmente na própria França, não passavam disso mesmo, e ainda assim por informação de passagem de seu protetor e amigo, o Doutor Adão, facultativo que tinha à porta do consultório a informação de que se tratava de um especialista em “correção cirúrgica facial”.
Passava longas horas na companhia de Alice, cuja meiga recordação da derradeira vida, ambos com votos respeitados de castidade, ele sacerdote, ela freira, quando se olhavam olhos nos olhos, numa atitude perfeitamente platônica, toda a estrutura eclesiástica católica a lhes pesar sobre os sentimentos, fazia que suspeitasse de encontros anteriores bem menos inocentes, Kardec a lhe assoprar na consciência de que era uma provação ou uma expiação mutuamente escolhida e aceita, para ser vencida exatamente como o foi. Mas a lembrança do fato em si não se despertava, restando o receio de que a “namoradinha” tivesse conhecimento de tudo e que o perdoava por algum desconhecido desconcerto ou malfeito sentimental, tanto que fora ela a dedicadíssima enfermeira que lhe prestou socorro por tantos anos de internação no hospital da Igreja Cristã da Misericórdia Divina.
Repassou os momentos vividos com os pais e a irmã.; reviu Dona Genoveva, a contrair segundas núpcias após o falecimento do marido, “Seu” Fernando.; perpassou os poucos momentos de convivência com a irmã Clarice.; mas ficou imerso em grandes problemas relativamente à pessoa do pai, que fizera tanto gosto quando ingressou no seminário e que se injuriara quando Adonias se rebelou e sofreu a punição preventiva da reclusão no convento, enquanto corria o processo de dispensa dos votos e exclusão da ordem, até o acidente em que o pai lhe causou a morte, para culminar na terrível situação de tê-lo como suicida por causa da tragédia do filho-padre.
Mas nenhuma emoção foi maior do que a lembrança de que se iludira por alguns anos, errando pelo mundo denso, crendo-se vivo, a pregar a palavra de Jesus, para pessoas absolutamente indiferentes e cuja influência social jamais alcançaria sanar os graves problemas que preocupavam o seu espírito, quanto à miséria do povo e à ganância dos ricos. Investira contra os consumidores de drogas e os traficantes, responsabilizando o governo em particular e a sociedade em geral, sem, contudo, oferecer uma única solução de caráter científico, tendendo para uma visão meramente romântico-sentimental das condições humanas, como se fosse possível ao próprio Messias arrastar as multidões para efetuarem as transformações morais que redundariam numa sociedade mais justa e mais digna.
Achou que não concluiu a pesquisa íntima solicitada por Maciel, porque não chegou a caracterizar o porquê de seu desejo em tornar-se socorrista, mas definiu sua vontade de trabalhar pelos semelhantes, mesmo porque não se sentia muito bem a vasculhar os meandros de sua personalidade espiritual. Considerou que tinha mais tempo para as reflexões e se entreteve com a idéia que lhe borboleteava em torno de seu amor-próprio, qual seja, a idéia de não haver sido selecionado para se filiar a nenhuma equipe de trabalho.
Desde logo percebeu que não se encontrara com nenhum ex-religioso, padre ou pastor, o que o fazia, de certa forma, um pouco incompatível com os demais, ao menos quanto aos ideais sustentados em vida. Isso também poderia ser um empecilho, porque lhe dava alguma preeminência cultural, muito embora esta idéia lhe causasse muito desconforto.
“Por que não atino logo com uma grave acusação da consciência, eu que vivi tanto tempo a ruminar as diretrizes cristãs para descobrir em mim os descompassos dos defeitos e dos pecados? Terei feito crescer o orgulho, eu que, a todo momento, estou considerando que sei isto e aquilo melhor que ninguém, por força de ter tanta coisa de cor e à disposição? Será que o próprio tempo dedicado ao recolhimento e à descoberta dos fundamentos morais de minha psique terminou por encobrir, e mesmo a fermentar, exatamente o que tanto buscava eliminar através das preces e dos sacrifícios?”
Ajustou, então, os pensamentos no sentido de buscar entender as reações alheias, não mais pelo temor de enfrentar uma inteligência melhor dotada, mas pelo medo de conviver com uma pessoa cheia de defeitos, intransigente e impertinente.
“Se for isso, como é que teriam tido conhecimento de minha íntima composição de caráter, quando eu mesmo me considero totalmente incapaz de perceber como pensam e sentem os meus alunos, quanto menos os meus colegas? Que indícios de inferioridade lhes terei passado?...”
Suspendeu o pensamento na metade, imaginando se sua história não estaria consignada nos arquivos da instituição, à qual, sendo assim, teriam todos acesso através dos processos computadorizados. Imediatamente, acionou o aparelho e consignou o seu nome. De fato, registrava-se a sua biografia, mas unicamente o que ele mesmo havia ditado, sem nada que pudesse desaboná-lo.
Foi aí que lhe veio a idéia de chamar para a tela a figura de seu professor Maciel. A primeira informação era de que se tratava de um professor emérito, cuja atuação na tal “Escolinha de Evangelização”, de que era diretor, datava de sua fundação. No alto da página, o dado surpreendente de que haveria duzentas e setenta e duas páginas a serem lidas, consignando-se uma biografia múltipla das últimas doze encarnações, a partir da última até a primeira, em ordem decrescente, portanto, como a caracterizar primeiro as qualidades como efeitos provenientes de causas que se descobririam depois.
Adonias achou estranha essa disposição, pensando que fosse para resguardar a boa memória das condições atuais, e tentou invadir o passado do professor, adiantando-se para o fim da descrição psicológica, mas o programa não respondeu, fixando-se na página de rosto que deveria ser assinalada através de algumas perguntas e respostas que indicariam que a leitura fora completamente realizada.
Essa dificuldade fez que Adonias se desinteressasse pela história do mestre, a qual lhe pareceu situar-se exatamente no ponto em que estava a sua, já que não conseguia retroceder sequer para a sua penúltima peregrinação carnal. Chegou, inclusive, a pensar em desistir de dar seu curso e de freqüentar o outro, achando que deveria candidatar-se a alguma tarefa humilde, conforme se acostumara no convento, onde prestava inúmeros serviços braçais, benigno suor que lhe dava o direito de pensar em que estava sendo útil à comunidade e, por tabela, ao conjunto dos seres humanos.
Foi com essa intuição que adormeceu, ainda lhe perpassando pela mente a perquirição sobre a razão de necessitar desses momentos de restauração física, quando seu corpo era fluido e suas energias tão facilmente recarregadas, tanto que sua alimentação era frugalíssima e até esporádica.