Adonias olhou em torno de si como a confirmar sua própria existência, tendo em vista, pensava ele, que emergia do nada, a partir do fato de que se ausentara de si mesmo e fora para um local de onde não trouxera recordação. No entanto, sabia que algum tempo decorrera, porque não mais se encontrava no salão dos reconhecimentos. Foi quando se emendaram as lembranças e a figura de seu pai Fernando lhe surgiu mais veneranda do que nunca.
Adonias se viu deitado num banco tosco, com a cabeça apoiada no colo da enfermeira Alice. Adão, de cócoras à sua frente, segurava uma seringa vazia, como se terminasse de lhe aplicar alguma substância revigorante. Foi quando tentou apanhar o braço do amigo que percebeu uma estranha sensação de impotência. Fez um esforço muito grande para se sentar mas não conseguiu mexer um único músculo.
De onde estava, seu campo de visão incluía o sorriso generosíssimo da bondosa freira, cujas feições, mais que nunca, recuperavam as da mocinha com quem praticara tantas vezes. Não tinha mais dúvida quanto a ser Alice, a enfermeira, a mesma pessoa.
Tentou acariciar os cabelos que pendiam até tocarem o seu rosto mas foi impedido pelo total impossibilidade de estender o braço na direção desejada. Volveu o olhar para o restante de seu corpo e não foi capaz de perceber nada além de um vulto que se estendia sobre o banco. Num esforço sobre-humano, olhou para o fundo dos olhos da amiga, transformando-os em espelhos, para identificar a imagem que ali se refletia. Notou apenas um ponto de luz, não distinguindo nada parecido a um rosto, a uma cabeça, a uma pessoa.
Fechou imaginários olhos e refletiu numa só frase fundamental de seus conceitos religiosos:
“O homem foi criado à imagem e à semelhança de Deus, mas essa criatura não corresponde àquilo que resulta da união da alma com o corpo. Essa imagem do Senhor, eu deveria ter acreditado sempre, era apenas um foco de esplendor luminoso, cuja pálida concepção estou podendo efetuar a partir deste ser que sou hoje, despojado do invólucro carnal, sem forma definida, puro pensamento ou inteligência, segundo o que os espíritos disseram a Kardec, cuja teoria sou forçado agora a reconhecer como correta. Se me deram ‘O Livro dos Espíritos’ para responder às minhas perguntas, sabiam o que estavam fazendo, de sorte que, se me concentrar nele, terei muito em breve superado esta ilusão da mais completa imaterialidade, porque me revestirei, ou melhor, porque dominarei o envoltório fluido denominado de ‘perispírito’ que me serve de trajo neste ambiente ainda muito denso próximo ao círculo terrestre. Vou manter-me quieto, sem desejos estruturados segundo as premissas existenciais corpóreas dos encarnados, para volver a minha recordação aos tempos anteriores à minha vida de padre, porque, a crer no espiritismo, eu devo ter vagado por estas paragens através de milênios, muito embora tudo deva levar-me a crer em que jamais meu nível evolutivo haja contemplado nada tão adiantado quanto este meu espírito de agora. Eu sei que os meus sentidos deverão estar bem mais aguçados do que justamente nos instantes em que me sentia em pleno domínio deles e isto ultimamente, quando estava morto e não sabia. Tenho de compreender que o fato de assumir a consciência da morte, ou melhor, da existência em uma vida muito diferente, haverá de representar um passo adiante no sentido de me propor uma figura semimaterial adaptada ainda melhor ao viver em contato com os seres que me são semelhantes. Ora, se tenho o poder da visão, esse poder não deve ser único nem estar localizado no meu ser num ponto equivalente ao sistema orgânico constituído de esferas oculares, de retinas, de aparato orgânico transformado em filamentos elétricos cujos impulsos iam imprimir as informações, recebidas através dos fótons, ao centro nervoso do cérebro capaz de decifrar as mensagens de imediato, como o fiz vendo Adão e Alice. Acho que sinto também o hálito delicioso que a jovem expira sobre mim, mistura sagrada de seu perfume de donzela e de seu tépido e sutil toque de ar atmosférico. Preciso sentir na boca, ou em algo que a configure, o gosto de minha saliva, se possível impregnada do gosto do medicamento que se espalha por todo o meu sistema sangüíneo ou linfático, que agora não estou em condições de examinar com propriedade científica seja o que for. No entanto, prestando atenção, sou capaz de perceber que tenho uma língua a investigar a textura dos dentes e do palato ou céu-da-boca, conforme a maneira popular de dizê-lo. E esta música suavíssima...”
Foi quando reparou que o suspirar de Alice e até as suas batidas cardíacas estavam ficando distintas para seus ouvidos. Abriu os olhos e avaliou que sua visão se localizava como se possuísse ainda uma cabeça recostada no colo da enfermeira. Desejou esfregar os olhos e fê-lo sem dificuldade, verificando que as mãos mantinham o mesmo molde de quando era vivo e de quando pensava estar vivo.
Nesse momento, desejou sentar-se, conseguindo realizar todos os movimentos sem nenhum esforço físico penoso. Sua sensação foi de que só agora estava acordando do desmaio, mas refugou essa idéia, consciente de que passara por um fenômeno de recuperação de identidade espiritual ou espírita, conforme lhe ocorreu que Kardec lhe teria sugerido a palavra se estivesse ali presente.
Apanhou a mão da enfermeira e beijou ternamente, umedecendo-a de lágrimas, fazendo o mesmo com a mão do médico. Ajoelhou-se, suspendendo a batina branca que estava vestindo, sem surpreender-se por estar trajando-a, porque fora a imagem de sacerdote que se fixara mais arraigadamente no pensamento, crente de que poderia trocar de roupa por um ato de sua vontade, e agradeceu ao Pai o benefício de uma transformação tão isenta de sacrifícios e de problemas. Assumira o controle de suas emoções, sabendo que havia subido um degrau na longa escadaria evolutiva.
E disse a prece que deveria considerar a mais estremecida de toda a sua existência:
— Senhor, eu não sei direito como é que devo saudá-lo neste meu agradecimento pelas luzes que tenho recebido de sua Providência Infinita. Muito obrigado, Pai, por me haver cumulado de tantos bens e de tantas prendas pessoais, sobretudo, por me haver concedido a bênção de tantas amizades e de tanta gente bondosa que me estima e que me ouve. Mas não desejo pedir por mim mesmo, porque, aquinhoado de tanta misericórdia, eu bem vejo que pouco tenho trabalhado pelos seres deveras infelizes que me têm estimulado à prece por eles e por quantas pessoas estejam favorecendo a sua condição de extrema miséria moral e física. Entendo, Senhor, que cada pessoa é responsável por si mesma, mas não posso deixar de observar que são muitos os que coagem os irmãos à prática dos crimes mais nefandos não só contra os outros, mas também contra seus próprios organismos, condenando-se a mais e mais existências de profundos sofrimentos, em todas as esferas. Constitua-me, Pai, meu Deus e Criador, numa pessoa esquecida de mim e dê à minha constituição intelectual os recursos supernos de compreensão dos deveres morais que toda criatura deve conhecer para ser o esteio de seus irmãos. Faça-me uma entidade integrada no serviço de benemerência desta Igreja Cristã de sua sacratíssima misericórdia e me possibilite atender, desde logo, as pessoas a quem amo e que precisam de algumas palavras de conforto e de incentivo. Peço-lhe perdão por me dirigir diretamente ao meu Pai que está nos céus, quando deveria pedir a intervenção dos espíritos de luz, dos espíritos mais perfeitos, de meus anjos da guarda e de meus protetores, que devem ter o direito, bem mais que eu, de se dirigirem à Suprema Inteligência, causa primária de todas as coisas.
Adonias desejava estender-se mais em sua prece mas esbarrou com uma dificuldade invencível, qual seja, a de que, para efetuar um pedido digno de ser atendido, tinha de obter mais recursos dentro dos parâmetros que a sua nova condição existencial lhe pudesse fornecer. Foi por isso que olhou com a mais profunda solicitação de apoio e de comiseração para o amigo médico e lhe requereu uma prestação de serviço cuja magnitude colocava no céu, entre as estrelas:
— Adão, por favor, explique-me por que, em sendo eu lúcido e até certo ponto inteligente, não consegui atinar sozinho com o fato de estar morto há tanto tempo. Não há aí uma situação existencial orientada por algum espírito que vem evitando que eu me degenere, no sentido da percepção muito maior dos males do que dos benefícios oferecidos aos seres que progridem?
Adão e Alice se entreolharam e sorriram com uma alegria incomum. Coube a Alice responder:
— Se o nosso bondoso Padre Adonias nos permitir, iremos deixar para depois as respostas a um interrogatório que vai demorar muito tempo para concluir. Atrevo-me a responder porque preciso que me ouça um pouquinho, já que reconheceu em mim a mesma pessoa de sua convivência em vida. Apesar de nossos liames afetivos, soubemos respeitar as diretrizes eclesiásticas que nos obrigavam à castidade, de sorte que, em nossas reflexões eivadas de sentimentos religiosos, púnhamos o amor ao Pai acima de todas as coisas, conforme sabíamos que Jesus nos havia insistentemente recomendado. Antes, porém, de responder a respeito do véu que lhe ocultava a própria consciência da natureza da existência que levava no etéreo, é preciso considerar que muitas das respostas facilmente são encontradas nas obras básicas que você deixou para depois. Sendo assim, como já está chegando o momento de sua primeira palestra, é de todo recomendável que se dedique a uma leitura organizada e séria dos livros fundamentais que lhe denunciarão as estruturas que mantêm o nosso sistema em pleno funcionamento. Faça do mesmo modo que em relação às informações colhidas em “O Livro dos Espíritos”, deixando para mais tarde as questões que se originarem desses estudos. Quanto a mim, devo dizer que preciso despertar-lhe algumas emoções esmaecidas sob os escombros dos últimos insucessos vitais, porque não demorará para que você pergunte quem fomos nós anteriormente à pregressa existência corpórea. Aí, os mistérios tenderão a crescer, porque a sua memória deve desbloquear-se à medida que for resolvendo os problemas advenientes dos postulados incompletos de cada circunstância vivida antes e depois do fato da morte, Mas existe um termo importante na sua questão, qual seja, o da inteligência. Acho que é bom que medite a respeito do que representa para o despertar da consciência o fator intelectual, bem como o sentimental, propugnando-se, como questão, o seguinte dilema: se o que vem antes é a expansão dos conhecimentos, ou se é a aquisição intuitiva do mundo em que o indivíduo se insere e que se vê na necessidade de dominar, para viver em harmonia com os preceitos e leis que o regem. Sei que o meu paciente talvez venha a se surpreender que tenha sido esta modesta coadjuvante de sua reintegração ao plano existencial de além-túmulo quem lhe proponha uma diretriz de metodologia tão complexa, para a absorção das primeiras verdades ao seu alcance, neste ambiente diferençado, contudo, faço-o por expressa recomendação dos mentores desta colônia espiritual para que demonstrado fique, definitivamente, que os problemas devem ser circunscritos e resolvidos um a um, sem atropelo, na confiança de que o Pai nos irá assegurar a felicidade de encontrar as melhores respostas, correspondente ao desenvolvimento espiritual que formos aperfeiçoando. Está confuso? Pois saiba, meu amigo, que a sua capacidade de retenção está desobstruída, de forma que, ao se vir só, vai encontrar todas as minhas palavras reproduzidas de forma absolutamente clara, segundo a ordenação que sua própria feição mental preferir dar-lhe. Desculpe-me a precariedade das informações e o fato de não lhe responder diretamente à questão que nos propôs, entretanto, posso solicitar-lhe que atente para a própria indagação, porque a resposta você já tem armazenada na memória, desde que sabe tanta coisa de cor. O que é indispensável neste instante é sair deste edifício, para percorrer os locais por onde você tem andado desde que deixou o corpo denso da matéria, a fim de caracterizar, de modo claro e insofismável, o que você via, dando-lhe a definição de suas substâncias quanto a pertencerem à crosta do planeta ou à faixa do etéreo em que nos situamos.
O jorro de informações não teve o condão de alhear a mente de Adonias. Ao contrário, sorveu com muita ganância tudo o que lhe disse a enfermeira (ou seria a irmã de caridade?) e se propôs a, obedientemente, atender a todas as indicações de atividades, a começar pelas andanças do lado externo daquele templo (ou seria toda uma instituição espírita, nos moldes das cidades descritas em algumas obras mediúnicas que lhe vinham claramente à memória?)
Com muito receio de estar sendo, ainda, um peso para seres de tanta luminosidade e conhecimento, perguntou:
— Será que merecerei que me acompanhe alguém esclarecido quanto à realidade que deverei desvendar?
Foi Adão quem lhe respondeu:
— Faz tempo que você não tem andado por aí sozinho. Caso esteja temeroso de nos dar trabalho, esqueça. É essa a nossa obrigação primacial, porque, antes de sermos guias ou guardiães, temos de nos diplomar socorristas. Sendo assim, mesmo que você saia aparentemente desacompanhado, sempre que precisar de esclarecimentos oportunos, será suficiente pensar em quem poderá responder e logo obterá o que julgar necessário para prosseguir esquadrinhando o mundo aí fora. Responderemos por um processo mais ou menos parecido com a idéia que você faz da telepatia e que nós preferimos aproximar dos procedimentos das telecomunicações, porque nos utilizamos das ondas...
Adão sentiu que Adonias iria despertar o velho hábito das rejeições no âmbito dos conhecimentos físicos e, portanto, resolveu que deveria suspender a fala. Considerou que era melhor deixar o outro intrigado e não imerso desde logo num problema específico de sua personalidade e pôs um ponto final em sua atuação junto ao assistido:
— Vou entregá-lo às boas mãos de Alice que hoje está liberada para acompanhá-lo numa turnê a que não faltará o ingrediente indispensável da simpatia mútua, através da rememoração dos acontecimentos que ocorreram em dias felizes...
Novamente achou que era melhor não prosseguir, porque sentia que Adonias tinha a predisposição aos questionários. Por isso, encerrou, definitivamente:
— Fiquem nas mãos de Deus, porque haverão de colher algumas imarcescíveis flores de amor.
De fato, Adonias e Alice buscaram sair do prédio de mãos dadas, como se estivessem restabelecendo algo que parecia sentimentalmente poderoso.