Estranhou Adonias a forma afetuosa e íntima com que foi recebido. Parecia que o médico estava comportando-se como um velho amigo, cuja benquerença fosse incontroversa e correspondida. Mas apertou o outro também contra o peito, sem sentir-lhe nas costas a mesma camada de gordura que sentira em Dona Genoveva. Entretanto, havia muito mais carnes do que nas suas próprias costas.
Como a ler seu pensamento, Adão lhe falou:
— O amigo pregador fala e faz o que diz. Quando prega contra a exploração dos pobres, torna evidente que nenhum ato contra eles efetua, tanto que o seu corpo está a demonstrar uma tendência extrema ao sacrifício. Aposto que o seu aperto e a sua apalpadela nas minhas costas lhe deram uma idéia bem diferente de mim, porque sou uma pessoa nutrida, apesar de não ostentar excessos. Estou certo?
A pergunta pegou o padre de surpresa, mas, estando a adotar desde há muito tempo a técnica de apenas falar a verdade, não se apurou:
— Está quase certo. Está certo quanto a eu achar que o doutor vem tratando-se muito bem, embora eu já tenha ouvido falar que o senhor trabalha bastante em prol dos necessitados, pelo menos no que tange ao restabelecimento dos que toparam com sérios problemas faciais. Quanto a mim, eu como muito bem sempre que posso.; ocorre que não posso sempre, mesmo porque, até quando a comida é farta e aparentemente saborosa, meu paladar não me entusiasma a saborear com gosto os acepipes. Devo afirmar-lhe que, em outros tempos, tendo ouvido falar dos sacerdotes que se empanturram e se tratam como reis nas casas dos paroquianos mais abonados, exibindo panças respeitabilíssimas, eu mesmo, por minha conta e risco, resolvi, tacitamente, censurá-los, limitando o meu consumo de alimentos ao mínimo necessário para sobreviver, fazendo, à imitação do Cristo, jejuns de quarenta dias, faltando apenas o deserto para completar a divina imagem. Aliás, se me permitir adiantar-me mais um pouco nos aspectos de minha saúde, tenho a lhe contar que sinto profundas deficiências — intermitentes, é verdade — quanto a todos os meios sensórios de entrar em contato com o mundo material. Falando como para um leigo, sofro também da vista, do olfato, do tato (veja estas cicatrizes de queimaduras que só pude observar depois de acontecer o desastre, porque não sinto as dores) e ainda ouço mal, quase sempre. Se o senhor puder me encaminhar para alguns colegas seus, especialistas, eu ficarei agradecido. Antes que o senhor tenha a palavra, devo acrescentar que ainda hoje senti forte tontura, precisando descansar e tomar um pouco de água fresca para me restabelecer.
Passou-lhe pelo pensamento perguntar a respeito de duas coisas que estavam intrigando-o, as dimensões do prédio e o título da revista, mas resolveu esperar um momento oportuno.
Foi a vez de Adão:
— Vejo que o amigo está lendo um artigo de nossa revista “Medicina Universal”. É uma publicação da casa, porque achamos que todos os artigos importantes que se publicam no mundo científico merecem ser reproduzidos para os profissionais que atuam conosco. Na verdade, no nosso décimo subsolo, temos uma gráfica completa, onde editamos essa e outras revistas universais de Pedagogia, de Direito e de mais uma dúzia de ramos do conhecimento humano, segundo os vários departamentos de nossa instituição. Você não estranhou de nunca ter visto este tipo de publicação?
— Estranhei o nome, mas agora está explicado. Falta-me que o senhor esclareça por que o prédio desceu os seus andares em lugar de subir.
— Tinha a certeza de que você (permita-me o tratamento familiar) iria interrogar-me a respeito. Ocorrem dois fatos primordiais: o primeiro é que, quando da construção do edifício, a prefeitura estava limitando a altura dos prédios na região a cinco andares e nós precisávamos de dezoito.; o segundo, é que necessitávamos ocupar um lugar no centro, para que a nossa congregação se espraiasse de maneira uniforme pela cidade toda. Mas acabamos descobrindo um fator muito importante: o da segurança em relação aos malfeitores, porque o nosso sistema de resguardo das pessoas e dos bens materiais se tornou extremamente favorável ao fechamento dos acessos de fora para dentro, como também de dentro para fora. E não pense que não tivemos ambas as tentativas. Apenas, foram frustradas na hora certa e por quem de direito, havendo nas prisões estaduais alguns facínoras que se deram mal conosco.
Era um dos temas prediletos de Adonias, de modo que, pensando em testar a integridade moral e religiosa do outro, provocou-o:
— Com o devido respeito, Doutor Adão, esses que o senhor qualificou de “facínoras” não são pobres diabos rejeitados e maltratados pela sociedade, que se viram coagidos a praticar crimes de sobrevivência, como eu chamo todo aquele que visa a restabelecer um certo equilíbrio econômico, porque lhes falta o essencial, enquanto para muitos sobeja o supérfluo?
— Eu entendo o seu ponto de vista, Padre Adonias, mas acho também que o reverendo não tem como justificar um ato de agressão tão profundo quanto o de se voltar contra pessoas e aparatos técnicos de alta sofisticação, inteiramente devotados ao bem público. Se o governo suprisse todas as deficiências sociais, ainda assim eu acredito que haveria muitas pessoas maldosas a praticar crimes horrendos, ou o senhor acha que as pessoas ricas, só porque não atacam senão através de uma legislação que as protege não mereceriam ser afastadas por um tempo do convívio social, até entenderem que a lei maior é a que considera que todos devemos amar-nos uns aos outros porque somos filhos do mesmo Pai? Eu lhe peço desculpar-me por enveredar em assunto de sua competência, mas a minha intenção em chamá-lo para esta nossa “Igreja Cristã da Misericórdia Divina” foi a de fazê-lo integrar-se à nossa equipe de atendimento espiritual e de incentivo ao bem, conforme a sua pregação em praça pública, conforme os relatórios que me foram apresentados pelo nosso corpo de investigadores e conforme eu mesmo pude constatar nas três vezes em que fui ouvi-lo.
Adonias fez um gesto como a solicitar um tempo para analisar as diversas idéias que lhe ocorriam, tentando estabelecer uma lista em que vigorasse um princípio de crescente prioridade e importância. Com paciência, Adão se pôs em silêncio a observar as transformações físicas e de vestuário do outro. Ele também organizou umas questões, mas reservou-as.
O padre, finalmente, definiu o que julgou imperioso perguntar:
— Sei que o senhor deve ter alta graduação na hierarquia desta comunidade, caso contrário não ocuparia um ponto tão elevado neste prédio, nem teria a deferência de tratamento respeitoso pela mocinha do balcão de informações. Sendo assim, por que me escolheu de preferência a tanta gente mais equilibrada, segundo fatores socioeconômicos e religiosos, conforme o padrão de sua entidade?
— Pensei que você me fosse questionar a respeito da natureza do atendimento que prestamos às pessoas, já que me referi a assistência espiritual e a incentivo ao bem. Mas tudo está relacionado, de modo que posso começar explicando-lhe que todos os que trabalham nesta nossa Igreja o fazem em absoluto voluntariado. Quando não têm recursos ou rendas próprias, residem na nossa ala de habitação, transitoriamente, até formarem um núcleo familiar que lhes dê a garantia do aconchego de um lar, pela equitativa distribuição das tarefas e funções inerentes à natureza gregária dos seres humanos. Você irá encontrar muitos jovens que nos prestam serviços de recados, outros que se empenham em ajudar nas tarefas menos especializadas, todos a troca de aprender algum ofício, mantidos quase todos pela instituição, sempre no intuito de reintegrá-los às próprias famílias, quando se sabe o paradeiro delas. Ora, esses jovens, como também muitos adultos retirados das ruas, você verá, precisam de acompanhamento educacional de sentido cristão, especialmente para a aquisição dos valores morais de respeito dos direitos de todos, pelo amor que Jesus teve por nós. Você irá cobrir uma ausência muito sentida do orientador antigo, o qual partiu para o além, como irá acontecer com todos nós, mais cedo ou mais tarde. O que nos levou a considerar a hipótese de chamá-lo para tarefa de tão alta responsabilidade foi o fato exatamente de não estar comprometido a não ser com seus princípios filosóficos que transpareceram em todas as ocasiões em que fomos ouvi-lo. Não estranhe de eu estar me referindo a “nós”.; é que já reunimos o corpo diretivo da Igreja e julgamos que você perfaz todos os requisitos. Será que preciso enumerá-los?
— Por favor!
— Inicialmente, você é muitíssimo bem dotado de inteligência e possui memória excepcional, conforme tivemos ocasião de constatar ouvindo-o repetir, “ipsis litteris”, extensos trechos da Bíblia. Depois, jamais chegou a nosso conhecimento de que haja aceitado dinheiro, seja para o que for, muito embora guardasse uns trocados para poder viajar de trem, trocados que Dona Genoveva nunca lhe negou. Isto tem importância transcendental para nós, porque, conforme lhe disse, não obtemos nada nesta casa que não seja de proveito espiritual.
— Mas tudo tem seu preço. Como é que vocês conseguem manter os aparelhos em funcionamento e as pessoas alimentadas e vestidas?
— Esta sua pergunta esbarra num comentário que ouvi de sua boca na derradeira palestra a que compareci. Não é verdade que você investia contra as riquezas acumuladas de sua própria religião? No entanto, boa parte de sua vida confessional foi...
Adonias solicitou que Adão interrompesse a alocução, mas não interpôs nenhum raciocínio contrastante para refutar os argumentos do médico. Apenas se limitou a fazer o queixo descair até encostar no peito, ao mesmo tempo que deixava escorrer um pranto suave pelas faces.
Se tivesse erguido os olhos, teria visto que o mesmo acontecia ao médico. No entanto, quando aquele momento de concentração emocional teve fim, o outro já se recompusera.
— Doutor, o senhor sabe muito bem que a minha pregação não vem sendo contra os ricos, mas contra o mau uso dos bens, porque muita gente está na miséria, o que, indevidamente, está justificando os altos índices de criminalidade em todo o país. Aliás, devo suspeitar, pelo que leio nos noticiários das bancas de jornais e nos poucos momentos em que me ponho diante da televisão, que existe toda uma onda de violência no mundo todo, até nos países onde a tecnologia está tão avançada que se atreve a mandar pessoas a estações espaciais e em viagens interplanetárias. Acho que, se Jesus voltasse, iria volver seu divino olhar para o sofrimento monstruoso dos povos inferiores economicamente, buscando reforçar os conselhos de irmandade e de coerência com os desígnios do Pai de levar todo o rebanho para o seu reino. Desse jeito, infelizmente, por mais que nos esforcemos de forma a mais lídima e honesta possível em evitar que as pessoas cometam seus pecados mortais, o diabo irá recolhendo em magotes as infelizes almas dos que desrespeitam as leis de Deus. Se é para isto que o senhor está convocando-me, devo dizer-lhe que estou pronto para assumir a vaga que me está sendo oferecida.
— Não deseja saber mais nada?
— O doutor reparou, por certo, que a minha decisão já estava tomada antecipadamente, porque me pareceu correto reintegrar-me num corpo religioso, para exercer de forma mais coesa e conseqüente a minha pregação. De que me valeram estes últimos anos de peregrinação na rua? Com certeza, no futuro, não encontrarei ninguém que me dê com tanta emoção quanto o Seu Homero um simples copo d’água, ou me transporte com o coração agradecido pelas ruas da cidade, como o motorista a quem um dia aconselhei no recesso do confessionário. Venho pensando muito seriamente numa atividade que reúna forças que se congracem em torno de ideais comuns e hoje senti que ela existe nesta sua Igreja, a qual me parece muito mais um hospital e um orfanato, uma santa casa de...
As palavras custavam a chegar, porque Adonias não desejava oferecer definições que não correspondessem aos anseios de benemerência de quem registrou no próprio nome da instituição a palavra “misericórdia”. Vinha-lhe à lembrança as “santas casas de misericórdia” de antigamente, mas não desejava estabelecer comparação. Deixou morrer então o tema, fazendo um sinal ao médico para que prosseguisse em seu ritmo de informações, já que lhe parecia que muita coisa ainda deveria saber para bem se compenetrar de suas funções.
— Você sabe que Jesus praticou a multiplicação dos pães e dos peixes. Está nos Evangelhos. Como terá ele produzido esse verdadeiro milagre (há quem diga que não houve milagre algum), não nos importa considerar. O que é preciso ter em vista é o fato de essas multiplicações terem sido ocasionais.; normalmente, compravam-se víveres com que alimentar os apóstolos e os discípulos, que abandonaram, muitas vezes, as suas profissões, com mais certeza após a morte do Mestre, quando a peregrinação em busca dos adeptos da nova religião se fez obrigatória. E como arranjavam dinheiro? Não se esqueça de que Judas Iscariotes era o tesoureiro do grupo, conforme várias passagens que você mesmo pode reproduzir.
Adonias fez um gesto para o médico prosseguir, que bem se lembrava dos trechos aludidos.
Adão continuou:
— Eu acho que o dinheiro era coletado entre o povo da mesma forma que os sacerdotes faziam. O tema do óbolo da viúva...
O gesto de Adonias demonstrava certa impaciência.
— ... e a amizade com pessoas abonadas, como José de Arimatéia, por exemplo, além de tanta gente importante que procurava Jesus, como doutores da lei, ricos fariseus que se aproveitavam das sombras da noite...
Adonias não se agüentou:
— Doutor, por gentileza, diga que a sua Igreja passa a cestinha, a bandeja, o chapéu, a sacola entre os que comparecem...
Foi Adão, desta vez, quem se impacientou:
— Sem dinheiro, é o que eu quero dizer categoricamente, ninguém faz nada no mundo. Sendo assim, não provindo das organizações criminosas e não se desviando das finalidades mais nobres estabelecidas pelo setor governamental, nós aceitamos, contabilizamos e prestamos contas públicas, mensal, semestral e anualmente, sendo todos os balancetes enviados para o Tribunal de Contas, de onde jamais voltaram sem o competente visto de aprovação. Penso que este não irá constituir-se no obstáculo que irá impedi-lo de se juntar a nós.
— Ao contrário, Doutor Adão, será esse o elo que firmará a nossa corrente de solidariedade, porque eu não me recusarei jamais a receber assistência gratuita, já que perdi completamente o meu orgulho de pessoa que se impunha pela presença respeitosa de minhas batinas e paramentos. Se confiarem em mim, se me derem uma atribuição de caráter nobilitante, envergarei o uniforme da instituição e assumirei com plena satisfação e possível felicidade as funções de orientador dos serviços educacionais de caráter moral e religioso.
Adão conteve um íntimo impulso de abraçá-lo. Em todo o caso, desejou investir num outro setor que tocava os melindres do padre:
— O senhor acha que, pelo fato de a pessoa não ir à missa, irá parar no inferno?
Adonias olhou meio de soslaio para o médico, desconfiando da provocação. Não hesitou, porém, em responder:
— Pior do que isso, meu amigo — e agora eu é que me darei o direito de chamá-lo por você —, você há de convir que, pelo fato de ter sido expulso da congregação e, mais ainda, excomungado, eu é que deveria mais do que ninguém suspeitar de que a Igreja Católica Apostólica Romana, como também nenhuma outra, terá o direito de determinar quem vai ou quem não vai gozar as eternais delícias do paraíso ou ser atormentado para sempre nos báratros infernais.
— Que são báratros infernais?
— Você quer a definição oficial das religiões ditas cristãs ou deseja ouvir a minha interpretação dos textos sagrados?
— Só o que se contiver no seu coração.
— Pois eu acho que Deus é justo de modo soberano. E, como diz o nome de sua Igreja, é misericordioso. É bom e não iria criar nenhum ser que pudesse ser votado ao sofrimento até o final dos tempos. Como é que o senhor vê esse mesmo ponto?
— Não se aperreie por tão pouco, meu irmão. Você irá receber os nossos livros de regras, onde estão assinaladas as doutrinas que seguimos. Você irá estudá-los e só depois disso é que se habilitará ao trabalho que lhe destinamos. O que eu chamei de voluntariado deve ser entendido como anuência consciente e adesão incondicional às nossas idéias. Mas nenhuma porta está fechada, pois somos bem capazes de moldar os nossos princípios pelas noções que reconhecermos mais coerentes com a verdade, aquela que rege as leis de Deus. Posso tomar-lhe mais um pouco de seu tempo, para contar um fato interessante que ocorreu a um dos nossos colaboradores mais efetivos?
— É o senhor que tem ocupações fixas e definidas. Eu só estou aqui como a mosca...
Não soube concluir. Sempre iniciava uma frase e nunca deixava de encerrá-la. Naquele caso, contudo, não chegou a vislumbrar um inseto sem interesse imediato em explorar o ambiente. Foi Adão quem rematou:
— ... como a mosca que se vê sobre uma refeição completa coberta por uma toalha. Pois bem, o sujeito chegou arredio e estabeleceu como objetivo não se oferecer sem antes assimilar todas as instruções. Não se satisfez com as leituras que lhe apontamos. Então, sem constrangimento algum, solicitou matrícula numa das turmas mais elementares, sendo ele, embora, advogado.
— Permita-me, doutor, interrompê-lo. Não obstante a sua sugestão, não creio que o meu cabedal de conhecimentos não baste para as primeiras turmas. Sei que posso estar parecendo muito pouco humilde.; mas a verdade de meus recursos o senhor conhece muito bem. O que eu desejava deixar bem esclarecido é que ficarei à disposição integral da Igreja, com uma única ressalva: que me permitam, uma vez a cada quinze dias, ir visitar a minha família.
— O seu horário ficará ao seu próprio encargo, de modo que as turmas se adaptarão a ele. Não há um rigor extremo, mas é preciso fixar algumas aulas para que todos nos programemos em função delas. Mas isso é o que há de mais fácil, você verá. Agora eu pretendo submetê-lo a uma série de testes clínicos, porque eu não acho que você sofra de distúrbios neurológicos diversos. Antes, gostaria de me desfazer da impressão de que haja um foco único de perturbação em seu cérebro...
— Uma espécie de tumor?
— Ou tumor, ou edema, ou coágulo ou simples pressão nevrálgica provocada por alguma virose intermitente, dado que você apresenta crises e depois se sente bem. Antes de examiná-lo, quero fazer uma experiência que poderá parecer-lhe tola. Mas faça conforme eu lhe pedir que depois eu lhe darei todas as explicações científicas.
— Sem termos técnicos, por favor.
— Não se preocupe. Eu quero que você pense em algumas pessoas ou fatos que possam haver causado sensível estado emocional em sua alma, como a perda de algum ente querido, o sofrimento de algum parente próximo, a confissão de alguém que realmente se haja arrependido.; o que quer que o tenha levado às lágrimas. Ao pensar e sentir o coração bater de maneira diferente, faça uma prece com muita fé em que irá alcançar a ajuda divina para aliviar as pessoas referidas. Olhe, antes, para aquele quadro na parede e me faça uma descrição breve do que ali se contém.
— Vejo umas crianças brincando na rua. Ao fundo, um coreto no meio de uma praça.
— Está bem! Agora concentre-se.
Adonias não teve dificuldade em escolher as rotas e sujas figuras de crianças de cinco e seis anos que vira fumando craque debaixo de um viaduto. Em pouco tempo, perdeu-se em um emaranhado de sofrimentos, de perseguições, de enxotamentos, de fome e de doenças e se viu, de repente, perante pessoas adultas levadas em um camburão da polícia. Sabia que era possível ao Senhor intervir para mudar aqueles destinos. Então orou, cheio de fé, sabendo que as suas palavras não poderiam deixar de ser ouvidas, porque o Cristo havia prometido aos discípulos que sempre estaria com eles.
Passaram-se dez minutos. Quando Adonias voltou a si, parecia que um suave cântico angelical preenchia de sons delicados aquela atmosfera tépida e olorosa, pois uma fragrância muito doce de âmbar se fazia sentir até de modo acentuado. Olhou para o quadro e distinguiu as seis crianças que brincavam de roda, três meninos e três meninas, sendo capaz de observar, no coreto, as figuras de uns músicos e, no alto da torre da igreja, no fundo da praça, dois sinos, acima dos quais, uma cobertura em forma de pirâmide, sobre a qual se via uma cruz dourada.
Pensou estar sonhando, tanta a perfeição de seus sentidos. Mas Adão o trouxe à realidade e o fez descrever todas as suas sensações.
Depois de dizer que se lembrara dos jovenzinhos de quem se condoera e de que entregara o destino deles nas mãos de Deus, falou da prece comovida, de como sentiu de novo a realidade e perguntou a respeito dos sons, dos odores, das imagens.
Adão se apressou em explicar:
— Todos esses elementos estavam aqui mesmo. Você é que não os sentia. Então, chegou a hora de explicar o “milagre”. Quer que eu seja absolutamente didático ou posso ir de etapa em etapa, sem informações paralelas?
— O que eu não entender, eu pergunto.
— Muito bem! Você sabe que o cérebro é que permite a todos os órgãos funcionarem em harmonia. Ele é constituído de matéria orgânica...
Adonias fez um gesto para que o médico omitisse essa parte.
Adão prosseguiu:
— Cada setor do cérebro comanda uma parte do organismo. Se uma bala, por exemplo, perfurá-lo de um lado a outro, dependendo da direção do projétil, são atingidos centros de importância para a fala, para a audição e assim por diante. Mas a gente não comanda o funcionamento da massa encefálica. A gente só busca dar sentido a um roteiro de pensamentos e sentimentos, coerentemente com as preocupações e interesses gerais e do momento. Ninguém previamente faz um roteiro de quantos passos haverá de dar até atingir determinado lugar: à medida que vai caminhando, vão-se vencendo os obstáculos que se apresentam, alguns de modo corriqueiro, outros, excepcional. Aí os pensamentos se ajustam às circunstâncias sem perder de vista a meta final, o destino que havíamos estabelecido de início. Isso vale para tudo na vida, até mesmo quando a gente pretende ser médico ou sacerdote. Há quem chame a isto de vocação, de aptidão profissional, de tendência psíquica ou de consciência da realidade mental em consonância com o mundo exterior. O nome não importa.; a verdade é que, por mais universalizante possa ser o nosso ideal, ainda assim temos de reger os procedimentos normais de todo organismo vivo, sentindo fome, conhecendo o medo, ultrapassando os limites dos sofrimentos etc. O cérebro, para cada um de nós, pode-se dizer, é quase todo o universo. Veja, por exemplo, a sua preocupação com os pequenos consumidores de drogas: você sabe que estão sem perspectivas de vida como realização até meramente biológica, que dirá quanto à consecução dos ideais cristãos do amor, do perdão, das virtudes, isso sem dizer que estão destinando-se ao sofrimento após a morte, porque, segundo pude deduzir de sua inferência quanto às diretrizes impressas nas criaturas pelo Criador, você acredita piamente que existe uma justiça a ser distribuída entre todos, cabendo aos que se sacrificaram pelos semelhantes uma justa parcela de felicidade. Não é isso que o traz preocupado quanto ao destino dos criminosos, sejam eles pobres ou ricos, estejam condenados ou não pela justiça dos homens, ou até sejam vistos como heróis porque se desconhecem seus atos de perversão?
Adonias pensou que a pergunta fosse meramente retórica e não respondeu. À vista da fisionomia do médico a solicitar uma explicação dos íntimos sentimentos, resolveu ser bastante sintético:
— É verdade.
— Pois bem, meu amigo, o cérebro, para efetuar todas as manobras que lhe são exigidas pela vontade do indivíduo ou pela necessidade do corpo e da mente de se ajustar às condições ambientais do momento, funciona através de um sistema de fluxo e refluxo que, para simplificar, irei chamar de mecânico, com base nas reações físico-químicas dos ingredientes que o compõem e que se regem através de um sistema elétrico, por falta de melhor palavra, dispondo-se ordenadamente cada informação que se recebe, segundo a participação do conjunto dos nervos ou dos tecidos magneticamente carregados, transferindo-se os dados de uma para outra região, conforme se queira, por exemplo, pôr à disposição da parte consciente ou se objetive guardar para uso oportuno, o que se chama de memória. Agora vou entrar no que lhe interessa mais de perto.
Adonias ia dizer que não era sem tempo, mas limitou-se a sorrir agradecido pela deferência da simplicidade das explicações. No fundo do coração, bem que gostaria que o médico expusesse tudo cientificamente, por meio dos recursos técnicos desse ramo do conhecimento, mas refletiu que era bem melhor entender pela rama a ficar absolutamente alheio às informações.
Como a ler em seu pensamento, Adão prosseguiu:
— Você já ouviu dizer que o cérebro humano e de algumas espécies de animais tem o dom da prevenção ou da intuição. O que talvez não saiba é que esse conjunto maravilhoso despende energia, sutil e melíflua, mas energia (de resto de vários tipos), o que possibilita a medição das atividades nesta ou naquela área, segundo a motivação externa. Estamos a caminho de colocar medidores no cérebro para auferir conhecimentos especiais a respeito da utilidade de cada segmento de matéria encefálica. Por exemplo, já trabalhamos com “microchips”, com perdão do barbarismo, para orientar os impulsos nervosos frustrados por lesões irreversíveis.
Adonias começava a desconfiar de que Adão iria demasiado longe, deixando os temas de seu interesse de lado. Com esse pensamento, resolveu pedir vez para falar:
— Caro amigo, o meu poder de raciocínio acusa para o perigo de me dispersar, caso você continue a desfilar conhecimentos de caráter muito geral. Por que você me pediu, finalmente, que pensasse numa razão emocional para que eu efetuasse uma prece sincera, cheia de fé, como você recomendou?
— Desculpe-me. Eu me entusiasmo facilmente ao falar do cérebro, que não é, veja bem, a minha especialidade. No entanto, tendo em vista a oportunidade que você me propicia de analisar um caso muito especial, eu vou desenvolvendo o assunto, ligando um pensamento ao outro, sem me ater à meta principal que é o seu esclarecimento. Então, fique sabendo que o momento doloroso da recordação das aflições foi para concentrá-lo e dar-lhe a possibilidade de criar um vínculo religioso com as entidades que você respeita e que lhe dão a segurança e até a certeza de que seus rogos serão atendidos. Aí, você criou uma espécie de euforia, que eu chamaria de doutrinária e que lhe restabeleceu a paz, normalizando todas as funções cerebrais pelo padrão mais elevado. É como os místicos entram em contato com as forças do etéreo provindas do Criador. Depois você me diz se discorda de algum ponto específico, de algum termo, de algum conceito não muito bem expresso, porque você é o dono do “métier”. Agora a parte crucial: ao mandar para a região do cérebro todos os neurônios em que se concentraram seus mais altos investimentos emocionais, você forçou um crescimento de atividades no setor, de forma que o seu nível de felicidade atingiu o apogeu. Nesse momento, o local em que se dava o encontro dos ingredientes causadores da depressão ficou em absoluto abandono, porque não é comum atuarem em conjunto essas duas regiões. A sua alegria contaminou os centros sensórios e fez que houvesse uma infiltração neles de elementos produtores de reações positivas ao meio ambiente. Numa pessoa normal, esse tipo de reação não carece de estímulos adicionais. No seu caso, em havendo algum óbice à normalidade das reações, o sentido da fé adquire um vigor preponderante para pô-lo em condições de usufruir os recursos orgânicos em estado de penúria. Se me permitir uma conclusão mais ou menos materialista de um dado bíblico, eis que assim se explicam os fenômenos de cura praticados por vários profetas e as célebres palavras de Jesus: “A sua fé o salvou.”
Adão parou para respirar e para dar tempo ao outro que refletisse. Depois de alguns minutos, concluiu:
— Nós vamos entrar agora na minha sala de consultas e vou fazer sua cabeça passar por uma tomografia computadorizada. Vamos ver o que existe aí dentro que possa estar prejudicando o meu amigo.