Adonias deixou-se enfeitiçar pelo sonho, cuja lembrança se mantinha vívida em sua memória. Tendo analisado todo o entrecho do drama que ali se desenhara, concluiu que a mente estivera trabalhando mais ou menos à revelia, buscando soluções independentemente de seu raciocinar sempre lógico e conclusivo.
“Preciso tomar pé da realidade”, ficava a repetir, fechado no pequeno dormitório, a passar as mãos pela face, notando o crescimento milimétrico dos pêlos.
“Não vou arrepender-me de cortar os cabelos nem vou lamentar a falta da barba, mas fazer isso levado pelo intuito de burlar as expectativas de uma pessoa que nem conheço e que já veio habitar em minha consciência, isso está sendo demais. Vou esperar até que ocorra algum fato muito importante que justifique a minha saída desta cela. Condeno-me eu à reclusão por crime de lesa...”
Não sabia o que havia lesado e ali ficava pensativo, na iminência de sair para surpreender o pai entrando ou saindo de casa, com medo de que não soubesse o que dizer-lhe, ele que tantas palavras tinha para a sociedade dos homens, pregando a união da pátria em torno dos ideais cristãos, condenando os atos de violência e os crimes contra a vida e o patrimônio.
“Não fosse por minha base cultural e religiosa, iria suspeitar de que vivo como os piolhos de minha cabeça. Se a sociedade dos homens agisse como eu fiz, iria mandar-me para o monturo das coisas inúteis, parasito que sempre vivi do trabalho alheio, sugando o sangue de meus pais o tempo todo, sem lhes corresponder efetivamente...”
Suspendia os pensamentos para que a agressão não se desse de maneira direta, ficando apenas a sugestão do mau aproveitamento dos dias vividos, muito embora, até o desligamento da Igreja, todos fossem unânimes em festejá-lo como sacerdote de imensos recursos, a provocar no seio da comunidade frêmitos de gozo moral no vislumbre do paraíso.
“Mas eu não devo arrepender-me por me afastar das regras eclesiásticas e por censurar a atitude geral do clero de fomentar a rebelião dos pobres contra os ricos, ao mesmo tempo que amealha tão imensa riqueza para si mesmo. Não me arrependo de haver cortado os cabelos. Não vou arrepender-me jamais por intentar atrair uns discípulos com minha pregação ao ar livre...”
Adonias tinha alguns livros abertos à sua frente, espalhados pela cama e até pelo chão. Lia um trecho aqui, outro acolá. Prestava atenção nos dizeres. Buscava compreender cada palavra. Tentava não refletir a respeito dos seus problemas íntimos, achando que, se o fizesse muito cerradamente, teria de sair correndo em busca do Adão, que lhe abria uma porta, a primeira depois da excomunhão.
“Acho que descobri, finalmente, por que estou tão envolvido com essa personagem misteriosa. É que me vejo de novo a me integrar numa congregação, conforme os anseios mais antigos. Hesito, sim, mas é que preciso adquirir a certeza de que isso irá ser um benefício para minha vida. Quando penso nos trabalhos manuais do seminário e, mais ainda, do convento, sinto falta do que fazer. Será que Adão me oferecerá algum meio de me distrair, diferentemente deste afastamento de tudo. Bendita a hora do banho, que me leva a sair da minha cela...”
Ao cabo de quinze dias, quando a barba já aparecia no retrato do espelho e os cabelos despontavam, escurecendo um pouco a calvície forjada, Adonias resolveu que estava na hora de abandonar o tugúrio familiar. Lembrou-se de relance de que ficara naquele vaivém indefinido para se encontrar com Fernando, mas chacoalhou a idéia pela recordação de que julgara o pai com suficiente saúde para procrastinar ainda uma vez o encontro de ajustamento de contas.
Mas não iria sair de batina, nem branca, imaculada, nem negra, soturna. A calça seria preta. Não tinha dúvida. Os sapatos lustrosos, que as irmãs haviam polido desde sempre, substituíram as carcomidas sandálias de couro cru. Estranhou o uso das meias ainda em estado de novas, há muito esquecidas no fundo da gaveta, mas, caso não as pusesse, os pés reclamariam ainda mais do aperto do calçado.
“Esparramei os dedos, achatei as solas dos pés, vinquei os calcanhares de profundas ranhuras e ainda exijo de mim mesmo a comodidade de cura acostumado à boa vida de paróquia abonada. Que sofra um pouquinho aquele que não sentiu os ardores do inferno, onde adentrei com ares de Jesus Ressurrecto, que outra imagem não tenho para realizar a comparação da fulgurante presença com que inundei de luz a profundeza das trevas abissais. Se não tivesse sido um sonho, eu bem que poderia julgar que, depois de morto, irei reaver os meus direitos cassados pela Santa Madre Igreja. Que Deus me perdoe!”
— Mãe, eu gostaria de usar uma das camisas de sair do pai, uma gravata discreta e um paletó escuro. Vou buscar uma vida nova e quero apresentar-me às pessoas que não me conhecem como uma pessoa normal. Sei que vou fantasiar-me, segundo o meu e o seu ponto de vista, mas a fantasia será a mesma da maioria dos homens de minha idade. O que lhe prometo, querida progenitorazinha, é não me deixar envolver jamais pelos valores materialistas dos homens, nesta época ainda mais incentivados por toda a parte pelos meios de comunicação de massa.
Dona Genoveva, realmente, não estava afeita a tanta explicação. Nem precisava delas, que o filho parecia estar recuperando o juízo social, porque ela reconhecia nele o bom senso dos justos e dos bons. Sendo assim, passou-lhe tudo que lhe pediu, acrescentando à lista um chapéu de feltro comum, desses com aba, fita e laço, que o marido havia guardado desde muitos anos, porque agora, na velhice, ou andava de cabeça descoberta ou preferia uma boina surrada ou um moderno boné com dizeres de propaganda.
— Com essa cabeça pelada, o sol vai promover uma queimadura certa.
— Bem pensado, mãe.; mas eu vou colocar esse chapéu lá fora, que não quero passar diante do espelho com reflexos de burguês, ainda mais que carrego estas notas que a senhora me emprestou...
Quando saiu, após ter tomado um lanche reforçado, percebeu que caminhava um pouco mais pesado, que adquirira alguma carne suplementar.
Dona Genoveva é que caiu em convulsivo pranto porque lhe parecia que era o marido que se afastava lentamente. Reduzia a figura de ambas as pessoas amadas a um cabide coberto de roupas, mas, no íntimo, sabia que o mundo ainda deveria girar bastante até que a felicidade voltasse atrás, para a época em que ela, o marido e as três meninas iam domingueiramente cumprir as obrigações religiosas, com o orgulho de haver gerado o oficiante.