Em resposta à primeira missiva dos filhos, Plínio ditou e Margarida escreveu, entre outras coisas, o que segue:
“Sabemos que vocês não vão acreditar, mas a verdade é que Ari veio conversar com a gente, no centro espírita, dizendo que se arrependeu de ter tomado a droga que o desencarnou. Deus seja louvado!, porque, depois que ele se manifestou, nós pudemos reatar os laços do matrimônio e sua mãe, que estava morando com a tia Hortênsia, pôde voltar para casa perfeitamente curada.”
Eis um trecho da carta de Cleto, recebida dois meses depois:
“Eu e Ovidinho discutimos muito a respeito de poderem os que morrem voltar a conversar com os vivos e chegamos à conclusão de que isso é impossível, primeiro, porque Deus leva para o seu reino todos os que o fazem por merecer pelo esforço de realizar as obras do Senhor.; segundo, porque os que não fazem nada que Jesus pediu, caem nas garras dos demônios, sendo arrastados para as profundezas infernais. Quem é que veio em nome do nosso irmão? Se fosse um padre católico quem respondesse, ia dizer que, se foi para o bem dos vivos, com certeza era um anjo ou arcanjo, como no caso relatado na Bíblia, quando se conta que José foi visitado em sonho pelo Anjo Gabriel. Nós não respondemos assim, porque não acreditamos que Deus precise das criaturas para realizar a sua obra. Quando disse que chorei muito porque me vi diante do Arizinho, no templo, foi por inspiração divina, que me envolveu em seu halo de amor, dando-me a bem-aventurança da revelação de que não me faltaria jamais. Foi a confirmação de minha fé na verdade do Cristo, nosso Senhor. Bendito seja Deus! Bendito seja o Espírito Santo! Bendito seja o Cristo Jesus! Quanto às palavras que vocês ouviram no centro, pensamos que tenham vindo da pessoa que falou, iludida com o desejo de transpor os limites da matéria, ansiosa por ser a intérprete da vontade de Deus. Pode ter sido muito pior, se foi enganada pelo diabo, o qual costuma freqüentar esses antros de necromancia. Mas não queremos ofender a sua crença, porque acreditamos que vocês estão sendo sinceros. Um dia, virão até nós e irão reconhecer toda a verdade. Em tempo: Ovidinho está estudando e logo vai terminar o primeiro grau.”
Plínio não havia dito nada a respeito de estar recebendo ditados mediúnicos com informações precisas a respeito de pessoas desconhecidas. Precisou, então, de toda prudência para os filhos não o acusarem de tratar diretamente com as forças demoníacas. Para isso, socorreu-se de Margarida, concordando ambos em que cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. Por isso, as explicações dos fenômenos ganharam aspectos mais doutrinários, pela reprodução adequada de alguns textos de Kardec. Fiquemos num trecho sem citações diretas:
“Se Deus tivesse criado seres destinados à maldade e, portanto, desde logo enviados aos sofrimentos eternos, não mereceria os atributos de infinita bondade e misericórdia que lhe reconhecemos. Sendo assim, não podemos acreditar na existência dos demônios, os quais, para nós, não passam de espíritos infelizes, pouco adiantados, de baixa categoria, que se regozijam ainda em fazer o mal. Ora, o espírito que trouxe a identidade do Ari não ofendeu ninguém. Pediu desculpas e rogou pelas preces dos pais, para que pudesse ser mais feliz, já que estava agoniado por causa do consumo suicida das drogas. Se fosse um ser maligno, teria causado apenas maiores desgraças. Ao contrário, ficamos confortados e serenos, do mesmo modo que vocês nos tranqüilizaram quando nos mandaram notícias tão auspiciosas, tão belas, porque nós achamos que vocês estão bem longe do tráfico e dos vícios. Por favor, Cleto, escreva a respeito e não se preocupe demais com o nosso interesse em servir à causa espírita.”
Eis os termos em que os filhos comentaram as apreciações anteriores:
“Vocês estão transformando as moradas do Pai em outros tantos mundos parecidos com este em que vivemos. Do jeito que colocam a existência depois da morte, é como se não valesse a pena ter feito de tudo para cumprir os desígnios do Senhor. As pessoas vivem, depois morrem, renascem, vão para o cemitério e vão criando dezenas de novos corpos, de forma a causar o maior problema na hora da ressurreição, ao final dos tempos, para o juízo final. Quem é que herdará a terra? O que é mais incompreensível é que os espíritas dizem que umas vezes nascem como homens, outras, como mulheres, faltando apenas confirmar que um dia foram cães, macacos, árvores ou montanhas. Aliás, um dos pastores convertidos do Espiritismo para a nossa Igreja nos disse que essa idéia é corrente entre os adeptos dessa religião. Nós queremos que nos perdoem a insistência, mas é que gostaríamos que nós fôssemos todos juntos habitar no reino do Senhor, porque estamos cada vez mais cônscios de que lhes devemos a glória da eterna felicidade, uma vez que nos deram a oportunidade da vida. Que as bênçãos de Deus abram para as suas mentes as portas da compreensão, da mesma forma que nos favoreceram os sentimentos do mais puro afeto!”
Plínio, pela referência ao pastor, deduziu que os filhos estavam sendo orientados de maneira específica para as refutações aos cânones doutrinários do Espiritismo. Escreveu a missiva seguinte quase sem consultar a esposa, reservando a esta a parte final, para que dissesse o que bem entendesse. Eis um excerto de cada um:
“Notei, queridos filhos, que o teor de sua argumentação privilegiou certa postura azeda, áspera, inconveniente, em relação aos irmãos de nossa fé. Não vou responder aos seus dizeres, mas quero saber com que corpo vocês pensam que vão passar a eternidade, depois daquilo que vocês chamaram de juízo final. Será, vejam bem, que as moléculas que estão na composição de suas carnes já não pertenceram a outros indivíduos ou criaturas vivas? Meditem sobre isso.”
“Como mãe, não creio que vocês iriam admitir outro destino para nós, prevendo que uns vão para o céu e outros para o inferno. Pela tese espírita, todos nos reuniremos, sempre e inexoravelmente, no reino de Deus, porque teremos quantas oportunidades forem precisas para aprendermos a ser perfeitos. Uma só vida não lhes parece insuficiente para um crescimento santificado pelas virtudes fundamentadas nas prescrições das leis universais?”
A correspondência de Cleto foi quase um bilhete:
“Eu confessei que estou recebendo ajuda de um companheiro entendido em Espiritismo. Duvido que vocês tenham alguém ao seu lado que debandou da nossa congregação. Mas tenho de admitir que me sinto orgulhoso ao ver que meus pais estão preocupados com os assuntos da vida e da morte. Acho que é meio caminho andado para receberem as dádivas do Senhor.”
O elogio comoveu o casal, de modo que, na carta seguinte, ponderaram:
“Nós temos lido com muita atenção o livro de Kardec ‘O Evangelho Segundo o Espiritismo”. Trata-se de uma obra que desperta para a necessidade de se fazer o bem, de se manter o pensamento elevado e os sentimentos sob controle da razão, ao mesmo tempo que explica os pontos da moral evangélica. Refletimos sobre tudo o que vocês escreveram até agora e percebemos que estão empenhados em aprender como ganhar o seu lugar no paraíso. Talvez — vejam bem que se trata de uma hipótese — talvez vocês estejam desejosos de subir dentro da hierarquia religiosa, para o que estão esforçando-se em apresentar as razões bíblicas fundamentadas em dogmas de fé que não aceitam discussão. O Espiritismo não deseja magoar as pessoas.; apenas quer vê-las progredir. Para isso, é imprescindível que tomem consciência de que todos somos filhos de Deus, o qual distribui igualmente o seu amor infinito por todas as criaturas. Sendo assim, a nossa doutrina não estabelece pontos que não possam ser apreciados, discutidos e postos sob o crivo da razão. Isto quer dizer que o Espiritismo não admite qualquer dogma. A bem da verdade, este desenvolvimento nós redigimos depois de conversar com um amigo do centro espírita acostumado a realizar conferências, o Doutor Ariovaldo, cujos conhecimentos são sempre um estímulo para os estudos e instruções da comunidade.”