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Erotico-->17. A VIDA AOS PEDACINHOS -- 23/09/2003 - 06:47 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Na manhã seguinte, entrou em cena a cunhada, Dona Hortênsia, chamada por Antonieta, pelo receio desta de que Plínio não desse conta das tarefas de enfermeiro, de cozinheiro, de faxineiro e de provedor.

Chegou e já foi reclamando de tudo:

— Esse “pamonha” está com histórias. Como é que foi perder o emprego? Vagabundeava, sem dúvida, porque não tem iniciativa para nada que não seja ir daqui até o bar, até o futebol e que sei eu de mais antros do vício e da perdição. Não é à toa que deixou o Arizinho morrer, Ovidinho agredir o policial e o Cleto desaparecer. Agora vai matar a mulher, porque, polenta mole, não consegue fazer nada que preste.

Enquanto falava, ia arrumando as malas da irmã com os pertences dela, sem autorização nem reclamação do cunhado. João, o marido de Hortênsia, apenas servia para carregar para o carro os embrulhos e pacotes, acomodando-os em silêncio.

A mulherzinha acordou a irmã e fez questão de perguntar sobre os remédios:

— O que é que você está tomando que o médico receitou?

Margarida, coitada, não sabendo onde estava e confundindo as pessoas, caiu de joelhos a implorar perdão:

— Mãe, eu fui culpada de tudo! Perdoe-me, pelo amor de Deus, porque estou em falta com a minha família. Não cumpri as minhas obrigações e agora tenho de procurar o Ari no centro...

A menção ao centro levou Hortênsia a concluir que fora o marido quem transgredira os princípios canônicos do Catolicismo, de que ela era fervorosa e fiel seguidora. Tanto bastou para desancá-lo:

— Se você, palerma, está pensando que vai dar vez aos demônios para tomarem posse de minha irmã, está muito enganado. Não apareça em minha casa. Mais tarde, se ela quiser voltar, quando estiver boa, isso é com ela. Por enquanto, vou assumir a responsabilidade de cuidar da saúde dela. Veja que nem me reconheceu...

Plínio quis explicar o seu papel mas, a um gesto do concunhado, preferiu permanecer calado. Evidentemente, Hortênsia estava preparada para refutar qualquer argumento, porque não podia aceitar nenhum resquício de culpa por parte da irmã quanto aos acontecimentos que pulverizaram a família. Então, o contabilista colocou em confronto o haver e o dever, aguardando que houvesse equilíbrio nas contas de quem se propunha a auxiliá-lo, mesmo que nada houvesse requisitado.

— Responda você quais os remédios e as doses.

Plínio esclareceu que eram necessários tais ou quais procedimentos, entregou os papéis do posto de saúde, deixou claro que precisavam ser realizados os exames assinalados e que havia uma consulta marcada. Fez tudo muito meticulosa e automaticamente, como a entregar o posto ao substituto, como no escritório.

Enquanto o casal acomodava a mudança no carro, Margarida foi à cozinha, pegou uma jarra, encheu de água e foi despejar sobre o aparelho de televisão. Plínio correu e chegou a tempo de evitar o banho:

— Que é que você está fazendo?

— Estou regando a plantinha.

— Que planta coisa nenhuma. Faz tempo que o vaso foi parar no quintal.

Jogada a água, Plínio devolveu a jarra à mulher, justificando:

— Para flores inexistentes, a água não importa que esteja em estado gasoso.

“Então foi assim que a televisão pifou! Santo Deus! E eu querendo botar a culpa no defuntinho. Perdão, meu filho!”

A ocasião, porém, não favorecia grandes lucubrações filosóficas ou doutrinárias, de modo que, de forma mais prática, pôs-se ele a deslocar o pesado aparelho que repousava sobre uma cômoda, para levantar o tapete, a fim de examinar os estragos no assoalho. Acertou na mosca: lá estavam formando-se algumas placas malcheirosas de mofo.

Meia hora depois, estava sozinho, livre para correr atrás da documentação que lhe daria o direito de receber o salário de fome dos desempregados.



Dois dias depois, foi visitar o preso. Lembrara-se de que pedira seus objetos pessoais, roupas, antigos brinquedos, livros, cadernos e tudo que pudesse transformar em dinheiro (o que ele não dissera), para os fins que tinha em mira. Entretanto, Plínio fora prevenido na reunião que nada que os internos pedissem deveriam receber, porque o comércio aviltava os produtos para a aquisição dispendiosa dos psicotrópicos e demais estupefacientes. Levou apenas, para não chegar de mãos vazias, um pacote de bolachas e outras guloseimas, pensando em adoçar os lábios do respondão.

Foi um desastre o encontro. Assim que tomou conhecimento de que a mãe não estava, Ovidinho percebeu que não alcançaria manipular o pai. Pegou o pacote, em meio a muitos palavrões, e sumiu da vista da atônita criatura que lhe dera origem.

Plínio procurou imediatamente o setor administrativo, desejando conversar com alguém com responsabilidade. Depois de mais de duas horas de espera, foi recebido por uma psicóloga, que anotou, nas fichas do recluso, todas as queixas que o pai fez questão de registrar. Só depois disso é que esclareceu:

— O seu filho, “Seu” Plínio, é dos mais rebeldes.; por isso, está no pavilhão dos que são considerados perigosos. Isso é muito ruim para ele, porque os outros são mais experientes, mais desonestos, mais viciados, mais criminosos, e não dão chance nenhuma a que os novatos prevaleçam. Inclusive, agem através de brutalidade, sem nenhuma consideração pelos que demonstram fraqueza. Quando os jovens são mais acessíveis...

O pai resolveu engrossar o caldo:

— Estou vendo que a senhora não está querendo obrigar o meu filho a me aceitar. Vem com essas histórias que eu não posso resolver. Até parece que não só o meu filho mas todos são irrecuperáveis. Eu não quero saber de mais nada. Quero que a senhora (veja bem, estou sendo delicado e estou pedindo por favor), que a senhora me diga o que é que eu devo fazer para levar o meu filho embora daqui.

A psicóloga, talvez por ter recebido ameaças muito piores, dignou-se a folhear o processo, fingindo que não sabia os termos em que se solidificava a permanência do garoto no isolamento social. Depois de certo tempo, tendo demonstrado interesse pelo caso e avaliado que Plínio se acalmara, mostrou o despacho do juiz, crente de que o homem não saberia ler o que estava escrito. Mas Plínio calcou o dedo sobre o papel, impedindo que a funcionária puxasse o calhamaço, tendo lido, para surpresa sua, que o supracitado e qualificado indivíduo deveria permanecer sob a guarda dos poderes públicos até o encerramento do processo de número tal, que corria sob tal vara.

— O senhor entendeu? O seu filho, para sair, precisa de outra ordem do juiz.

Demonstrando insatisfação com a atitude do pleiteante, a mulher abandonou-o sozinho, sem “até logo”, sem aperto de mão, sem sorriso convencional, sem sequer um olhar compassivo de “boa sorte”.



Plínio não facilitava as coisas para si mesmo. Em lugar de enfrentar os problemas, ficava a imaginar que superaria todos os obstáculos dedicando-se aos aspectos formais da doutrina espírita, como no caso do Ovídio, que julgava, nos refolhos da consciência, que viera para pôr à prova a sua paciência, no intuito de mutuamente resgatarem os seus débitos. Sendo assim, raciocinava que era melhor que ele ficasse aqueles três anos no reformatório, para, depois, sair com a responsabilidade dos maiores de idade.

Não via nele, com olhos humanitários, a entidade espiritual revestida por densidade corpórea. Também não via o filho como um ser de carne e osso necessitado de esclarecimento e apoio. Não correlacionava as obrigações paternas com os deveres filiais, passando a distância do preceito basilar do “honrai o vosso pai e a vossa mãe”, do decálogo mosaico. Mal-e-mal se recordava de ter sido um dia agasalhado pelos progenitores.

Mas essas idéias, como intuições, foram criando raízes em seu coração, de modo que a morte do Ari, em momento de profunda depressão, fez com que ansiasse por encontrar-se com os amigos do centro espírita.

De passagem, devemos referir-nos ao fato de, por duas ou três vezes, ter saído para reunir-se aos “habitués” dos bares da redondeza, não os achando dispostos a conversar seriamente sobre tema algum. Ao derredor de uma garrafa de cerveja e de uns salgadinhos, queriam saber da escalação deste ou daquele jogador de sua preferência, como ainda disputavam o significado de algum acontecimento violento ou sobre a ruptura dos padrões vigentes por algum ocupante de cargo nos escalões do governo. Quando muito, davam-lhe pêsames tardios pelo passamento do filho ou demonstravam conhecer a paranóia que assoberbara a mente de Margarida. Adentravam, imediatamente, de forma resoluta, nos processos costumeiros de alienação do momento, com a manifesta intenção de fugirem das pressões profissionais ou familiares. Queriam apenas distração, buscando certo prazer em se perturbarem através do álcool e do fumo.

Houve um momento em que Plínio pareceu persuadir-se desse roteiro dos perdulários do tempo, perguntando ao grupo:

— Quando, até uns meses atrás, eu vinha participar do chopinho, vocês me achavam este “chato de galochas” que pareço hoje?

Um deles, mais chumbado pela bebida, observou:

— Você não é chato mas, como aquele ministro, “está” chato, porque traz o peso da desgraça para o nosso meio. Se bebesse até cair, talvez não nos obrigasse a nada. Mas fazendo perguntas desse tipo, só atrapalha a nossa felicidade. Eu brindo a isso.

Plínio, na hora, não entendeu que o outro pudesse ter razão. Mas, como também não tivesse o que responder, pediu desculpas e voltou para casa, sem ter sequer tocado num copo de cerveja, mesmo porque o dinheiro estava muito curto e mal daria para uma única garrafa.



Uma hora depois, cruzava os batentes da porta de entrada do centro espírita, sem saber exatamente o que havia ido fazer ali.

Foi recebido com festas por Ariovaldo, que desejava muito saber como estava Margarida.

— A irmã levou-a embora e me proibiu de ir vê-la. Faz uma semana que estou sem notícias. Quando ligo para lá, a empregada diz que está tudo bem e mais nada.

— Se precisar da gente, estamos às ordens.

— Hoje é dia de palestra?

— Hoje as reuniões são reservadas e não públicas. Não sei se os doutrinadores aceitarão a sua presença. Em todo caso, vamos ver se Moacir já chegou e eu deixo você com ele. Certo?...

— Está bem.

De fato, Moacir estava recolhido a uma das salas, sentado à mesa de reuniões, perante uma pilha de livros, lendo um deles. Assim que deu com o ex-chefe, abriu um imenso sorriso e levantou-se para abraçá-lo:

— “Seu” Plínio, foi muito bom que tivesse vindo espontaneamente. Eu e Silvinho precisamos muito conversar com o senhor, mas não aqui. O senhor pretende assistir à função desta noite?

— Para falar a verdade, eu não sei bem o que quero. Acho que preciso conversar seriamente com alguém sobre os acontecimentos que me envolveram nestes últimos tempos, porque estou me sentindo aéreo como nunca antes. Mas se for estorvar, fico no corredor...

— Se não tiver medo da presença dos espíritos, eu o convido para assistir à doutrinação, que vamos começar dentro de dez minutos. Apenas, não poderá ficar ocupando um lugar na mesa. Vai ter de se sentar na fileira junto à parede. Algum problema?

— Nenhum.

Ato contínuo, buscou uma cadeira, não sem antes receber um livro das mãos do amigo, com a recomendação de que lesse um trecho qualquer. Por sorte, tinha levado os óculos de leitura, de modo que pôde acomodar-se com o volume aberto ao acaso. Era um exemplar de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, de Allan Kardec.

Deu com o seguinte trecho:

“Quando a morte vem ceifar em suas famílias, levando sem respeito os jovens antes dos velhos, vocês dizem geralmente: Deus não é justo, porque ele sacrifica quem é forte e cheio de futuro, para conservar os que viveram por longos anos, cheios de decepções.; porque ele leva os que são úteis e deixa os que não servem mais para nada.; porque ele despedaça o coração de u’a mãe, ao privá-la da inocente criatura que dava toda a sua alegria.”(1)

Foi-lhe difícil decifrar todo o conteúdo de tão pequeno excerto, pois as lágrimas escorriam insopitáveis. Mas não sentiu vergonha ou receio de ser mal interpretado. Dava simplesmente vazão aos sentimentos que se despertaram pela recordação dos filhos e da esposa.

“Um dia, eu quis abandonar tudo, trocando uma vida sem cor pelas luminosas praias do Nordeste. Hoje, daria o que me cobrassem, a minha alma talvez, para ter de volta Margarida, Anacleto, Ovídio e Ari. E todas as preocupações de pai...”

Mas não houve mais tempo nem para o pranto nem para os remorsos, uma vez que sua atenção se voltou para os trabalhos mediúnicos.

Quem já compareceu a uma sessão de doutrinação, sabe que, após as preces de abertura, lêem-se dois ou três tópicos de alguns livros selecionados, enquanto as luzes são amainadas e o som é desligado. Em seguida, o orientador encarnado solicita dos guias espirituais que tragam alguns irmãos do etéreo necessitados de informações ou conselhos. Assim que um dos médiuns dá passividade, põe-se o espírito a comunicar-se através dele, respondendo às perguntas que lhe são endereçadas pelo responsável pelos esclarecimentos. É assim que os dramas das entidades são referidos, prescrevendo o doutrinador, que é o nome que se dá ao dirigente da reunião, este ou aquele procedimento moralizado pelas normas extraídas das recomendações evangélicas de Jesus. Quando desconhece o espírito o fato de que se encontra em plano diferente ao dos terrenos, se demonstra a ele, com delicadeza e tato, que precisa compenetrar-se do mundo em que ingressou.

Plínio perguntava intimamente qual o nome e qual a história de cada um, porque lhe parecia que tratar episodicamente de pacientes ocasionais era passível de engodo ou de ilusão da parte dos médiuns. Contudo, não obteve nenhuma informação precisa, como nome de família, localidade da moradia, época do desenlace vital e outros dados que revelassem a verdadeira identidade do manifestante. Guardou, no entanto, as dúvidas que lhe brotaram para futuro questionar junto aos amigos. Não queria, por outro lado, perder a oportunidade de contatar qualquer parente ou conhecido que freqüentasse as regiões umbráticas, tendo-se concentrado a ver se vinha alguém a seu chamado. Não veio, ou melhor, se veio, ele não soube reconhecer. Talvez um que disse ter falecido há pouco tempo por uma síncope cardíaca pudesse ser o Simões, mas não deu nenhuma pista de que fosse ele mesmo.

“Quem sabe um desses que estão escrevendo me traga as notícias que estou pedindo.”

Frustrou-se mais uma vez, porque nenhum dos médiuns escreventes ou psicógrafos, conforme foram designados na hora, tinham captado nenhuma mensagem dirigida particularmente a alguma pessoa.

A principal conseqüência da noitada foi que Plínio, gentilmente, se escusou quanto a conversar com os dois amigos, voltando para o lar despojado de alguns preconceitos religiosos.



Gostaríamos de relatar o dia-a-dia de Plínio, a partir do momento em que se compenetrou de que estava realmente sozinho, ainda não totalmente afeito à idéia de que tinha protetores e obsessores do lado espiritual. Em todo caso, queria crer em que tudo o que presenciara na noite da reunião mediúnica condizia com a verdade, mesmo quando o médium imiscuía seus pensamentos e emoções aos comunicados recebidos do mundo transcendental.

Os matizes dos revoluteios psíquicos vão ser referidos pelas ações, de modo que devem os leitores estar atentos para os significados morais de cada procedimento. Por exemplo, no dia seguinte, levantou-se cedo, pôs-se diante do aparelho de televisão, matutando para quem poderia vendê-lo e por quanto. Percorreu a vista pela sala e foi avaliando qual o capital que levantaria com a venda de todas as peças. Foi aos dois quartos, entrou na cozinha, vasculhou o quintal e, chegando à garagem, pôs-se a imaginar sem o carro:

“Terei de ir de um lado a outro a pé ou de condução. As compras faz tempo que não preciso transportar nele. O trabalho acabou. Se tiver necessidade de voltar a dirigir um desses, será porque estarei com novo emprego. O melhor vai ser causar-me esse problema. Verei como me viro.”

Foi assim que alienou o veículo, seguindo-se os poucos aparelhos eletrodomésticos e eletrônicos, os móveis e demais petrechos, esvaziando os cômodos, passando nos cobres inclusive os velhos tapetes e as cortinas. Só não vendeu uma das camas de solteiro, a mesa da cozinha e as respectivas cadeiras, o fogão, a geladeira e o liqüidificador. Quanto a este, fez questão de, com o dinheiro apurado, quitar o carnê, porque não se admitia endividado. Conservou também um guarda-roupa, mas vendeu a máquina de lavar e até o ferro elétrico. Muitos trastes e roupas de pequeno valor pediu aos do centro espírita que viessem recolher.

Esvaziou a casa porque, assim pensava, não tinha precisão de oferecer a ninguém mais o bem-estar material que fora a sua luta da vida inteira.



No próximo final de semana, quando foi procurado pelos dois colegas de trabalho, deu-lhes a impressão do mais absoluto domínio sobre todos os seus pertences. Sabia onde cada coisa estava, porque reservara um local para cada coisa. Quando lhe pediram uma folha de papel para anotações, não tinha.

Foi Silvinho quem estranhou:

— Chefe, o senhor está nos extremos da penúria!

— Não é verdade. Vou tornar-me, se for preciso, o maior pão-duro da paróquia, mas não vou mais correr atrás de dinheiro. Se for preciso, passo adiante a casa e vou morar nalgum albergue.

Moacir não conteve o riso, contagiando os outros dois, que passaram a rir sem saber exatamente por quê.

— Pois, quanto a mim, caríssimo Senhor Plínio Saldanha, não acredito em nada disso, porque eu sei que você não irá recusar a nossa oferta.

Silvinho acrescentou:

— É verdade, viemos como Satanás para a tentação da glória terrena. Ou seja, viemos para um convite, conforme Moacir vai expor.

Plínio antecipou-se:

— Posso adivinhar?

Os dois acederam por meio de gestos.

— Pois bem, vocês estão com medo de serem despedidos, porque devem estar treinando alguns membros efetivos da igreja evangélica no trato dos bens financeiros...

Saldanha, no plano espiritual, analisava a desenvoltura da expressão do afilhado e sorria, percebendo que havia bom humor e sagacidade nas observações. Pensava ele:

“Mas este é um bom sinal! Quer dizer que os sentimentos já não se norteiam pelos problemas individuais. Plínio está preocupando-se com o próximo. É um recomeço muito promissor...”

Não lhes parece claro que a conversa terminou em acerto, quanto à abertura de um escritório contábil em sociedade? Foi isso mesmo que tiveram para comemorar, precisando Silvinho ir ao empório mais próximo buscar meia dúzia de latas de cerveja não alcoólica, que beberam sem estar gelada.

Emocionou-se Plínio com o fato de ter sido designado como ocupante do principal cargo, mantendo-se a antiga hierarquia. O problema mais premente era a falta de recursos, mas, enquanto dessem encaminhamento à papelada, todos teriam recebido os valores que lhes eram devidos, Plínio mais prontamente e os outros dois um pouco mais tarde, porque deveriam ajustar-se às exigências financeiras dos patrões.



Demorou para Ovídio receber o pai durante as visitas a que este não faltava. Um belo dia, em lugar de mandar o repetido recado de que fosse tratar da própria vida, ei-lo que vem em pessoa para conversar.

— Meu filho, obrigado por me receber!

Era atitude com que o mequetrefe não contava, todavia, não se perturbou:

— Estou precisando de um favor muito importante.

Plínio pôs-se prevenido quanto às drogas mas interessou-se, tendo em vista que as palavras não se faziam acompanhar de impropérios:

— Pode dizer sem medo de ouvir nenhum sermão.

— Preciso fazer uma tatuagem.

— E daí? Você já fez tanta coisa...

— Você está começando um sermão...

— Desculpe. É que, para se tatuar, não sei por que está pedindo permissão.

— Que permissão, que nada! Eu não quero contrair AIDS...

— E as picadas nunca lhe preocuparam?...

— Fiz exame de sangue. Aliás, todos os da minha ala fizeram, e o meu resultado deu negativo.

— Graças a Deus!

— Acontece que muitos que estão comigo contraíram a doença.

— A direção, sabendo quem é portador do vírus, vai separá-los, com certeza.

— É o que dizem para as verbas em que estão de olho. Mas a verdade é que vai ficar todo mundo junto mesmo.

— Vou pôr o advogado em cima do caso.

— Já tem mais de vinte. Ou você pensa que só eu tenho pai?

— E para que a tatuagem, agora?

— Aí é que está. Eu tenho ficado na minha. Não abro a boca mas sou obrigado a olhar feio para muita gente. O pessoal, apesar de mais velho, me respeita, porque pensam que eu espetei o “delega”. E eu não sou tonto de desmentir ninguém. A fama é de que não devem mexer comigo. Também não “dou bandeira”. Mas, como você pode imaginar, muitos saem e outros entram. Se um desses novos vier se engraçar comigo, vou ter de meter-lhe uma lâmina no bucho.

— Não faça nunca isso, pelo amor de Deus!

— Você não sabe o inferno que é isto aqui. Sem a tatuagem para impor respeito na hora, posso ser apagado por um metido a besta qualquer.

— E o que você quer de mim?

— Vou mandar um cara com uma lista de material. Você pode comprar ou dar o dinheiro. Vou mandar alguém de confiança e você vai ver, depois, a tatuagem, para saber que não comprei droga nenhuma.

— Vocês não têm esse material?...

— E como é que você acha que muitos estão com AIDS?

No mesmo dia, Plínio morreu com uma quantia superior à que julgara suficiente, mas não quis saber de procurar os melhores preços. Pelo menos para isso serviu o dinheiro que tinha arrecadado.


(1) Kardec, Allan — O Evangelho Segundo o Espiritismo. Trad. inédita de Wladimir Olivier.

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