A primeira aula de Deodoro se resumiu na apreciação do que cada aluno esperava encontrar no curso. Dava-se ao professor a oportunidade de cotejar as opiniões, de forma a reunir em grupos os que pensavam diferentemente. Novato nos trabalhos dessa natureza, queria ver como se desenvolviam as lideranças e quais os verdadeiros motivos da escolha de sua matéria, aliás incluída entre as extracurriculares ou opcionais. No entanto, lá estavam os quarenta alunos regulamentares, havendo muitos ficado de fora.
Aumentava a responsabilidade do mestre? Para Deodoro não se punha o problema, tanto se preocupava com o resultado das pesquisas com a finalidade da redação do texto.
A segunda aula reservou-se para as observações pessoais dos discípulos quanto às expectativas do que encontrariam ao regressarem ao etéreo. Neste ponto, Deodoro quase ia desistindo de explicar o que lhe havia ocorrido, tão pertinentes foram os comentários de todos.
Com o Professor Joaquim, expôs os seus receios:
— Penso, querido mestre, que a minha escolha não tenha sido a mais feliz para desenvolver os processos por que passei até chegar aqui. Todos os meus alunos têm histórias muito interessantes, de forma que, se me permitir opinar, ao invés de elaborar um longo, minucioso e exaustivo relato de meus revertérios, seria mais proveitoso para o público encarnado passar-lhes a palavra, o que daria excelente coleção de contos ou de novelas curtas.
— Você não foi indicado para a tarefa aleatoriamente. Conforme me foi explicado, do projeto de elaboração de obras a serem divulgadas entre os humanos consta um vácuo no sentido de apresentar alguém de importância entre os de seu clã, especificamente no que concerne ao aspecto religioso. Você deverá conversar com Marcelo ou Mário, os encarregados da difusão mediúnica do ideário evangélico e espírita, para inserir a sua obra no contexto da generosa propaganda do etéreo. Fique tranqüilo quanto a essas fulgurações mentais de dúvida e saiba que, mais do que elas, relampejarão e trovejarão as tempestades da incerteza e do desespero. Ou você está pensando que realizar obra de fôlego, ainda que sob a luz da genialidade de sua capacidade intelectual, seja mero trabalho escolar? De resto, vá atrás dos autores espirituais dos livros editados na Terra para avaliar o quanto recebem de influxos altamente negativos daqueles que não acreditam na veracidade dos narrados. Escreva, querido amigo, como se o leitor fosse alguém que reunisse todas as qualidades da classe que irá colaborar para a redação. Não deprecie o seu nível de exigência, em consideração à média cultural dos leitores. Fuja de ser simples professor de primeiras letras no interesse dos que mal saíram das classes de alfabetização. Torne a sua composição o mais atraente possível mas não degenere quanto à qualidade lingüística, porque os temas de seu interesse se situam na alta categoria dos desenvolvimentos inerentes à Teologia, à Filosofia e à Doutrina Espírita. Assimile o método de Kardec e faça como ele, isto é, estenda-se sobre todos os aspectos e pontos de vista sob que é possível encarar os assuntos, extraindo dos argumentos a conclusão inarredável dos conceitos. Considere também o fato de que você mesmo não é capaz de registrar formalmente todas as intuições. Para isso, mantenha o ritmo dos acontecimentos, sugerindo, nas entrelinhas, que algo maior existe a ser pesquisado, examinado ou estudado, sempre cientificamente, mas que, para fazê-lo, deveria extrapolar os limites dos conhecimentos da atualidade psíquica, segundo o momento histórico a evidenciar. Corra o risco de não dizer tudo diretamente, mas abra o contexto para outras oportunidades de esquadrinhamento. Caso não dê a impressão de ter aprendido a ser modesto, humilde, sóbrio ou recatado, jamais perca a oportunidade de se revelar honesto, leal, compromissado com a verdade e desejoso de alertar segundo suas experiências mais sofridas, sempre no intuito de conduzir os leitores para as soluções, antes que penetrem na escuridão das consciências pejadas de culpas. Afinal de contas, ser professor não será jamais ministrar lições simples, mas propiciar a complexa possibilidade de aprender.
A terceira aula Deodoro reservou para captar as expectativas dos alunos quanto ao que relatar na obra que empreenderiam juntos. Permitiu que conversassem livremente mas estabeleceu que todos os pareceres se fundamentassem em exemplificação retirada de obras mediúnicas.
Após longas horas de debates, recebeu oito resumos para serem lidos perante a classe. O primeiro a encarregar-se da tarefa foi Roberto:
— Como sabem, freqüento as aulas na companhia dos parceiros que me auxiliaram a ordenar os relacionamentos com os irmãos que ofendi ou que não perdoei em tempo hábil, tanto que me indispus com alguns, mesmo aqui no etéreo. A nossa experiência, nesse sentido, se deu nas profundezas do báratro, onde reina a escuridão mais absoluta, apesar do poder de visualização específica quanto aos vultos dos que se constituem em inimigos. É muito triste a condição desses sofredores. No entanto, serão poucos os mortais que não guardam lembranças dos tempos em que se indispuseram contra os semelhantes, numa ou noutra passagem pelo etéreo. Aliás, existem conflitos tão horrorosos na face da Terra que mais não são do que o reflexo dos antros da perversidade mais ignominiosa, onde os seres se perseguem e se... Não vou adiante na descrição da maldade. Quero crer que me basta citar o fato de terem existido câmaras de gás coletivas ou bombas atômicas para caracterizar o ponto. Pois bem, desejo que não se dê relevância aos trabalhos que levamos a cabo ao socorrermos os irmãos infelizes. Será suficiente reproduzir este meu discurso para que se ofereça aos leitores o contraste com a luminosidade do que ocorre quando a natureza em seus três reinos é respeitada, ou seja, a felicidade de viver em meio às cores e formas, aos odores e sons, segundo os reflexos luminosos que imprimem às paisagens a felicidade da existência. Não são poucas as obras mediúnicas que descrevem o espaço etéreo para fixar os aspectos mais obscuros. Então, é preciso que se coloquem as personagens também em ambientes claros, coloridos, olorosos, como se aqui também se destacasse o sensório, não para a impressão de que os humanos estão no paraíso terrestre, mas para que não se lhes perca a imaginação ao fixarem, para o além, apenas locais terríveis, fétidos etc. Sugiro que a descrição da pequena comunidade agrícola e pastoril ganhe aspectos de serenidade, como se fosse a extensão de um jardim de paz e alegria. O nosso grupo quer imprimir no espírito dos leitores a vontade de regressar para estas plagas sem medo, com a segurança de que haverá um lar que os abrigará, conforme tiverem tido proceder evangelizado.
O amigo Joaquim, o sacerdote, foi o relator da segunda turma:
— Não preciso dizer que a nossa equipe também desejou fazer reparo quanto aos aspectos materiais, por assim dizer, do impacto que o nosso campo existencial deve exercer sobre os remanescentes sensórios de quem chega da carne. No entanto, enfatizamos outro aspecto relacionado a este, qual seja, o de que a cultura da humanidade deve ser apreciada sob a rigorosa perspectiva da continuidade entre os dois mundos, pela satisfação de se encontrarem os que aqui arribam no pleno domínio dos pensamentos e emoções, sempre de acordo com o que Roberto denominou de “proceder evangelizado”. Mas também se deve ressaltar a imediata imersão na dor a que a consciência obriga (e não por força do chuchar dos tridentes demoníacos), quando os indivíduos exerceram mal o pleno direito ao livre-arbítrio. Esta diretriz, conforme conclusão unânime, não deve ser apresentada aleatoriamente, como se alguém pudesse contrariar o princípio de causa e efeito, se for esperto o suficiente para convencer os guias ou protetores de que, ao invés de algoz ou agressor, foi vítima das circunstâncias ou do enredo trágico da vida. Daqui a necessidade precípua de se incentivarem os dons filosóficos do narrador ou da personagem principal, em diálogos estimulantes, conforme se deram na realidade do nosso cativeiro na biblioteca, onde algumas obras mediúnicas nos ofereceram decepções, porque fizeram constar que os espíritos são recebidos desde logo pelos obsessores, apesar de se virem envoltos por sentimentos de remorso e arrependimento. Há que se dar primazia à atuação dos benfeitores.
A terceira turma foi representada por Hermógenes:
— Chegamos à conclusão de que a formulação do texto deve seguir rigorosamente o tempo cronológico, porém, assinalando, com a devida constância, a dilatação ou a contração psíquica, como repercussão do desempenho intelectual, em função do interesse de se resolverem as questões levantadas para a reflexão e absorção da verdade pelos padrões do campo vibratório em que nos situamos. Em correlação com este tema, existe a necessidade de revelar que os espíritos encontram a facilidade de se recomporem justamente onde falharam, volvendo, como ocorreu comigo ao me matricular idealmente no seminário, aos bancos escolares, engolfando-me nos conhecimentos que não assimilei em tempo hábil. Aqui, cabe observar que existe sistema mais preciso, ou seja, o do desvelamento da memória obstruída pela desatenção da época de encarnado. Muitas obras mediúnicas ressaltam a necessidade inalienável do retorno à carne, fazendo crer que a reencarnação serve quase exclusivamente para recompor os aspectos que se perderam na anterior peregrinação. Faça-se crer que esse objetivo também existe, sem ser, contudo, prioritário, uma vez que a recomendação para novo implante do espírito na matéria densa se fundamenta em razões mais profundas e em rejeições mais dramáticas dos objetivos que não se concretizaram. Acreditamos que o episódio em que os pais do protagonista estão em crise possa revelar com propriedade o que vimos solicitar.
Falou Alfredo pela quarta equipe:
— Nós não nos ativemos aos aspectos do conteúdo. Sabendo que Deodoro é emérito na discussão dos problemas, quisemos deter-nos na formulação periférica do texto. Saímos em busca das obras consagradas e descobrimos quais os elementos que as tornam preferidas do público. Em primeiro lugar, não se pode dar-lhe o aspecto dos tratados. Quanto mais leve o desenvolvimento, mais deve eleger o discurso descompromissado, como se dá com as opiniões vulgares. Sendo assim, os diálogos devem merecer destaque, apesar de entravarem o livre raciocínio de quem acumula razões sobre razões. Em segundo lugar, sempre que possível, devem ser transcritos textos abonadores extraídos dos Evangelhos e das obras de Kardec, que é como se embasam os principais compêndios de caráter propedêutico. Como se trata do desenrolar de acontecimentos, sugerimos que os abonos se dêem expressamente de conformidade com o nível intelectual dos interlocutores. Se me fizerem, por exemplo, citar algum trecho, apesar de em diversas ocasiões ter-me recordado deles, não sei se isso dará verossimilhança ao contexto. Finalmente, depois de muito debatermos, afinamos os nossos instrumentos pelo diapasão da verdade e aceitamos que muitos episódios possam incluir discursos mais ou menos longos, desde que adequadamente desenvolvidos para incrementar na mente dos leitores a vontade de participar ativamente da confecção da obra, ainda que deixem para o futuro a sua crítica mais positiva, isto é, para o tempo em que estiverem freqüentando este ou outro educandário, com o dever de redigir algo semelhante. Admitimos, portanto, que se transcrevam estas diversas digressões, até sem a censura dos mestres, para que se saiba como é que reagimos nesta altura dos trabalhos.
A quinta equipe fez-se representar por Everaldo:
— O interesse na caracterização das personagens foi que nos conduziu as discussões. Para que os tipos não se repetissem em virtude das semelhanças das personalidades, o que não poderia ser diferente tendo em vista a formação idêntica de sacerdotes católicos e o desenvolvimento espiritual medir-se pelo mesmo comprimento de onda, para equilíbrio e formação do grupo, forçosa homogeneidade a ser explicada desde logo, julgamos imprescindível que os temores pessoais sejam a característica sobre a qual carregar na descrição das individualidades mais freqüentes no texto. Por outro lado, deve-se dar espaço também para figuras de maior e de menor desenvoltura tanto intelectual quanto sentimental, o que se alcançará se tornarmos mais insignes as participações dos infelizes e dos protetores. Quanto mais abrirmos em leque as possibilidades evolutivas dentro da escala espírita, mais resguardaremos a semelhança entre o nosso texto e “O Céu e o Inferno ou a Justiça Divina Segundo o Espiritismo”, do Codificador. É pouco o que temos para dizer, todavia, sem dúvida, será tópico dos mais dificultosos, tanto que muitas obras consultadas se limitam a duas ou três personagens apenas, enquanto nós estamos diante de um conjunto de seres bastante diferenciados entre si. Em meu próprio nome, devo ressaltar que fui aquele que mais se opôs às iniciativas arrojadas. Esse traço desejo ver mantido e salientado, o que me leva a finalizar, recomendando que todos os que se virem retratados, antes de se magoarem com a descrição dos defeitos, devem apoiar a demonstração do lento crescimento das qualidades.
Em sexto lugar, apresentou-se Arnaldo:
— Os meus companheiros de grupo e também desafetos, porque me crivaram de perguntas bastantes difíceis, forçaram-me a narrar todos os acontecimentos de que participei desde quando carreguei o Monsenhor das trevas para o mosteiro. Foram poucos os instantes em que nos afastamos, quase sempre ficando na sua presença. Sendo assim, quiseram saber, passo a passo, quais os desenvolvimentos morais, sentimentais, técnicos e intelectuais da personagem principal do texto a produzir-se. Disse-lhes, evidentemente, que o meu ponto de vista não haverá de prevalecer, porquanto caberá a ele definir os parâmetros literários da obra. Contudo, não ficaram satisfeitos e obrigaram-me a trazer, sob forma de perguntas, o que os intriga. Perdoem-me, pois, não poder oferecer conclusões mas interrogações. Para não ficar cansativo, nem vou numerar. Eis as questões. “Que pretende o sacerdote com a apresentação da história de sua vida aos mortais? Terá por objetivo tornar os membros das religiões predispostos a aceitarem a doutrina de Kardec? Desejará fixar os conhecimentos que possuem os espíritas, oferecendo-lhes interpretações para os tópicos não completamente desenvolvidos? Pretende municiar de argumentos aqueles que polemizam em torno dos conceitos básicos, como a reencarnação e o contato mediúnico de bom nível cultural, porque todos concordam quanto à existência das influenciações demoníacas? Caminhará na direção do entendimento diferenciado das lições de Jesus, reforçando as explicações de Kardec nas diferentes obras da codificação espírita? Buscará, nas raízes dos pensamentos humanos de caráter filosófico, não importando a procedência das teses, os pontos que deverão sofrer objeção? Especificará as reações subjetivas de sua alma, toda vez que se viu em débito com a verdade? Dará relevo à descrição dos aparelhos desenvolvidos no etéreo, com o intuito de prestar esclarecimentos técnicos ou apenas terá em vista conturbar os pensamentos dos cientificamente menos imaginosos, impondo-lhes a existência de um mundo pleno de mistérios e de milagres? Quererá contaminar os leitores com a expectativa de serem apaniguados pela excelência dos procedimentos, tendo como fundamento o fato de que, apesar de se confessar inferior, mesmo assim alcançou a felicidade de ser admitido na colônia na qualidade de professor e autor, muito embora haja peregrinado pelas paragens do etéreo e da crosta durante vários anos?” Devo dizer que as perguntas se produziram às dezenas e que estou citando algumas que vejo pertinentes segundo as exposições dos que me antecederam. Agora, o mais surpreendente: não exigem que se discutam as perquirições nem que lhes seja dada nenhuma resposta. Disseram-me que estarão atentos para o desenvolvimento da redação e que irão exercer o direito de opinião sempre que se lhes justificarem as dúvidas. Neste aspecto, estendo à classe toda esta última postura, porque absolutamente racional. Tenho dito.
À sorrelfa, ouviram-se comentários de desagrado. Todavia, Deodoro solicitou ao representante do sétimo grupo que se manifestasse. Foi a vez de Margarida:
— Na minha equipe, todos os colegas, numa ou noutra encarnação, desempenharam papéis femininos. Por essa razão, senti-me à vontade para incentivá-los à meditação dos pontos emocionais relativos aos contatos amorosos e sexuais, havendo chegado o pessoal a proposições que devem ser ponderadas pela classe antes do início do trabalho de escrita. Do ponto de vista dos encarnados, o fato de haver diferença biológica entre os sexos acarreta diferentes papéis entre os casais. Claro que estamos enveredando para considerações relativas às leis da natureza corpórea, tendo em vista que o macho fecunda e a fêmea concebe. Sabendo que Deodoro é conhecedor profundo das teses religiosas, gostaríamos de ver discutido o celibato clerical, mas não segundo as respostas dos espíritos que atenderam às solicitações do Codificador. O que sugerimos é que se configure como problema a descoberta de que os relacionamentos sexuais dos sacerdotes contrariam a lei da procriação e que as conseqüências se estendam para os dispositivos cármicos de atendimento aos reclamos de reencarnação das entidades com direitos a reparações por anteriores ocorrências entre os envolvidos no processo de regeneração espiritual. Não obstante, o meu pessoal abre mão da descrição das opressões psíquicas que o sentimento de culpa originou, conforme lhes demonstrei, de sorte que se deve deixar aos encarnados o entendimento da dor de consciência, como revolta do indivíduo contra si mesmo, isto porque, um pouco mais, um pouco menos, todos sabem o que significa a frustração dos planos de ascendência moral sobre a vontade, dado que a imperfeição é de todos nestas esferas de aprendizado dos valores evangélicos.
Encerrou a fase das dissertações o colega e protetor Eufrásio:
— Tal como os demais, encaminhei de propósito os debates da turminha para os aspectos que me interessavam, tendo utilizado a minha posição de orientador da personagem principal do enredo. Os parceiros, coitados, quase nem se manifestaram, limitando-se a ouvir-me, o que me obriga a pedir-lhes desculpas. Mas este intróito cá não veio sem oportunidade, porque o respeito que pretendo demonstrar aos colegas é o meu ponto para apreciação da classe. Refiro-me ao fato de que, por menos que se diga, sempre haveremos de colocar os membros da comunidade religiosa a que pertenceu Deodoro e colegas de peregrinação em posição inferior quanto ao desvelamento da realidade etérea. Nesta altura, devo consignar que muito me orgulho de haver pertencido à mesma congregação, onde encontrei muitíssimos irmãos completamente dedicados à pregação da palavra do Cristo, labutando dentro da alma para cumprirem os preceitos das virtudes teologais e as resultantes dos votos que declararam diante do altar e das autoridades eclesiais. Não cabe, neste momento, defender nem acusar qualquer instituição humana, mas não posso perder a oportunidade de afirmar que as imperfeições dos encarnados se transferem para todos os seus sistemas organizacionais, sejam particulares, sejam oficiais. Quando digo “todos”, estou incluindo, sem dúvida, os centros espíritas e suas associações. É preciso, pois, fazer como Jesus, ou seja, ir em socorro da humanidade, porque todos somos irmãos. Esta advertência transcende o narrado e objetiva prevenir para as reações posteriores do clero e dos seus representantes laicos. Não vamos aborrecer-nos se desacreditarem do que assinalarmos como tese espírita, o que ocorrerá fatalmente, uma vez que os nossos esforços deverão dar-se no sentido do convencimento de que a doutrina espírita vai um pouco além na compreensão da realidade deste nosso círculo existencial. Por outro lado, também devemos estar atentos para não magoar-nos com as críticas dos próprios espíritas, tendo em vista que iremos desenvolver um trabalho que, tudo indica, oferecerá extensão para além dos limites mais comuns das obras mediúnicas, sem o contrapeso das grandes novidades, dos acréscimos doutrinários ou das excelências literárias, em que pese a genialidade dos componentes desta classe.
Ninguém deixou de perceber o tom irônico do pronunciamento final de Eufrásio, sendo desnecessário evidenciar publicamente que incluía os parceiros entre os imperfeitos que classificara na carne, ainda porque, se se desse qualquer explicação, evidenciar-se-ia que a genialidade não era apanágio de todos. Entretanto, nem todos sorriram de imediato.
A quarta aula foi destinada a considerações referentes ao método a ser empregado na confecção do texto.
A quinta aula elegeu as premissas do mediunismo em função do ditado específico a ser produzido.
A partir da sexta aula e por mais dois anos, dedicaram-se todos a escrever e a reescrever cada minúsculo trecho da composição, esforçando-se Deodoro para caracterizar com proficiência todas as repercussões em sua personalidade das surpresas do etéreo, tendo em vista as concepções religiosas que se lhe incrustaram no cérebro pela longevidade da vida e pela inferência subseqüente de que teria merecido, no mínimo, rápida permanência no Purgatório para subir aos Céus.
Por esse tempo, a classe foi convidada a tomar contato com todas as obras da “Escolinha de Evangelização” transmitidas ao campo da matéria, como ainda se deu como obrigação o acompanhamento de todas as comunicações mediúnicas das obras dos colegas de outras classes.
De tudo se deu ciência aos mentores do educandário, de modo que os rascunhos iam e vinham, objetivando o aperfeiçoamento do conteúdo e da forma. Neste aspecto, levou-se em conta, de maneira primordial, a capacidade de recepção do médium que iria servir ao grupo. Era preciso coordenar o texto de sorte a propiciar ao encarnado diversas possibilidades de solução, dentro das especificações aprovadas pelos superiores, uma vez que trabalharia consciente dos dizeres e respectiva correlação idiomática, sem muita penetração na coerência do desenvolvimento temático.
Optou-se por conhecer às minúcias os procedimentos mentais em jogo, para facultar ao humano a possibilidade de apanhar a transmissão com bastante conforto material, sem exigir-lhe mais do que hora e meia a duas horas de trabalho mediúnico diário, abrindo-se, além disso, mais algum tempo para o envio dos poemas elaborados por outra classe. Mais do que isso, seria trabalho de escravo, tanto que se poderia acusar os mensageiros de obsessores.
Discutiu-se, finalmente, a necessidade de elaboração de notas de rodapé ou apostas ao final da obra para elucidação de pontos considerados obscuros após as transmissões, para conforto dos leitores que levantassem as mesmas questões. A conclusão se deu no sentido de se respeitarem os princípios da narração. Explicações paralelas levariam à obra as características dos tratados, o que não constava das diretrizes dos mentores. Foi sugerido que se relatasse o debate ocorrido em aula, para não fugir ao roteiro do gênero, destacando-se como ponto de honra dos editores a liberdade de contribuição para o engrandecimento do texto por meio das tais observações registradas em notas.
Um belo dia, postaram-se os autores em torno do médium e lhe ditaram a primeira página, com o título de “Orientação Inicial”, página provisória em que se expunham os temores quanto ao sucesso da mediunização e das transmissões. Tendo em vista que se realizaram até este ponto noventa e uma sessões, algumas observações ali contidas perderam o sentido, de forma que será melhor reler a introdução junto a este epílogo, apontando o generoso leitor o que deve ser reformulado.
Enfeixando o texto, reunidos os integrantes do “Grupo da Renovação” no lar do médium, elevou Deodoro os pensamentos ao Pai em imprescindível prece de agradecimento, na qual não se esqueceu de nenhum dos amigos, dos colegas, dos parentes encarnados e desencarnados, rogando pelos que lutam nas Trevas e no Umbral, requerendo a ajuda dos irmãos dos círculos de maior luz, concluindo:
“Senhor de infinito amor, inspirai os que se achegarem às nossas personalidades através dos contatos idealizados pelos escritos a que demos vida. Fazei que percebam a verdade de nossos seres de inferior qualidade e, ainda mais, a dos acontecimentos a que todos estão sujeitos após o desenlace carnal. Propiciai-lhes momentos de meditação para se liberarem dos pesos terríveis que se constituem os vínculos com a matéria e para se oferecerem à lídima influência dos protetores. Dai-nos o poder da palavra que comove e que arrasta, com o dom, porém, de promover a crítica lúcida e honesta de todos os conceitos que se formularam precariamente, com o intuito de facilitar a busca dos elos doutrinários com as teses de Kardec e com os ensinos de Jesus. Enviai aos vossos filhos encarnados, Senhor, os espíritos em franca ascensão, a fim de resguardarem a paz, porque os homens dela estão necessitados para a realização evolutiva que lhes facultará o ingresso nas hostes sacratíssimas dos socorristas. Libertai-nos de nossos maus pendores e favorecei que compreendamos a nossa missão evangelizadora, tornando-nos discípulos e não mestres, porque haveremos todos de aprender com as lições que houverdes por bem ministrar-nos, seja fazendo-nos arrostar, com coragem, os suplícios naturais dos resgates cármicos, seja pelas oportunidades de progresso ao encaminharmos, com descortino, os nossos irmãos à verdade. Consignai estes objetivos nas almas de todos, para termos a certeza de que estamos no dealbar de nova era para a humanidade, neste prenúncio do terceiro milênio da era cristã. Muito obrigado, Pai, por haver-nos possibilitado a transmissão deste empreendimento. Fazei que se transforme, se julgardes merecedor de vossa atenção, em alavanca para a transformação dos que ainda não se aceitaram como membros efetivos de vossa seara. Mais ainda, implantai neste texto a energia que nos faltou. Sendo assim, porque sois benevolente, generoso, misericordioso, e porque nos perdoais os erros como perdoamos os nossos obsessores, afastai a todos nós do mal, uma vez que da tentação não soubemos livrar-nos. Vosso é o reino, o poder e a glória para sempre. Assim seja!”
Finis coronat opus.
Indaiatuba, de 31.10.96 a 17.03.97.
OBRAS DE REFERÊNCIA
——————— — A Bíblia Sagrada. Antigo e Novo Testamento. Trad. de João Ferreira de Almeida. [s. ed.] Rio, Sociedade Bíblica do Brasil [1959].
KARDEC, Allan — O Livro dos Espíritos. Trad. de Wladimir Olivier (inédita).
——————— — O Livro dos Médiuns. Trad. de Wladimir Olivier (inédita).
——————— — O Evangelho Segundo o Espiritismo. Trad. de Wladimir Olivier (inédita).
——————— — A Gênese, os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo. Trad. de Wladimir Olivier (inédita).
——————— — Obras Póstumas. Trad. de Wladimir Olivier (inédita).
——————— — Revista Espírita. Jornal de Estudos Psicológicos. Trad. de Júlio Abreu Filho. [s. ed.], São Paulo, EDICEL [s.d.] 12 vols.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de — O Pequeno Príncipe. Trad. de São Marcos Barbosa. 7.a ed., Rio, Agir, 1960.