As despedidas foram demoradas e as recomendações cobriram a vasta zona dos cuidados com os dizeres e intenções, até os recursos das preces e invocações do poder dos anjos guardiães.
Causou certo mal-estar a repartição das relíquias trazidas pelo espírito de Kardec, mas, finalmente, cada qual ficou com um volume, reservando-se para Deodoro a volumosa “Revista Espírita”, que não pesava mais que os outros exemplares nem ocupava mais lugar. Mas era o livro que mais informações concentrava. O Monsenhor, todavia, não deu importância ao fato de ser uma das obras “menores”, já que guardara de cor o inteiro teor de todos os textos.
Antes de se afastarem, cada qual definiu o próprio destino.
Everaldo: Vou ver se me encontro com um dos irmãos do convento, amigo de clausura, com quem combinei, brincando, naturalmente, que, se fosse viável, iríamos esperar um pelo outro na mesma cela que repartíamos em vida. Isto significa que vou deslocar-me para a minha querida Buriti, minha terra natal, a ver se reconheço alguém da família ali reencarnado. Mais tarde, vasculharei de alto a baixo o Maranhão e só depois é que me dedicarei ao “fratello” do convento.
Arnaldo: Não tenho muito a dizer, pois todos sabem que Alfredo e eu pretendemos integrar-nos neste contingente em defesa da casa espírita. Se estivermos muito imaturos para o trabalho, quem sabe sejamos convocados pelos instrutores da colônia. É uma perspectiva agradável, mas não é necessariamente essa a destinação que temos em mira. Para nós, o encontro com os familiares e amigos de antigamente não nos coage os sentimentos. Como vocês sabem, temos a exata compreensão de que fomos abandonados em mãos estranhas na última encarnação e permanecemos acreditando no paraíso dos padres por um bom tempo. Agora é exercer um ofício prático, porque não nos enfronhamos totalmente nos ideais da filosofia, posto que sejamos bem capazes de entender certos princípios de muita sutileza. Mas combinamos em deixar para mais tarde, sob orientação de professores especializados, as matérias que desde já comovem e fazem a felicidade do nosso generoso Monsenhor.
Roberto: O meu projeto é adentrar de volta no setor do Umbral de onde saímos, para procurar alguns companheiros de moléstia perdidos nas brumas do sofrimento. Já não trago vestígio algum da hanseníase e, se me reconhecerem, vão dar valor às minhas palavras de esperança na cura providencial através da compreensão da misericórdia e da justiça de Deus. Se me sentir, de qualquer modo, desesperançado eu mesmo, por causa das dificuldades naturais do empreendimento, não hesitarei em solicitar que os amigos me vão buscar. Tenho as coordenadas em que deverei emitir o sinal telepático, de sorte que não me sentirei jamais sozinho, ainda porque agora vou com a certeza de estar a merecer o apoio de meus protetores.
Deodoro: Não vamos estabelecer roteiro para nós três. Já concordamos em prosseguir aleatoriamente. Quem sabe recebamos intuições de como proceder para o exame da realidade segundo prismas insuspeitos para o nosso discernimento?! Deixar-nos-emos estar nas mãos dos amigos mais evoluídos, o que é o mesmo que deixar o nosso destino nas mãos de Deus.
Ia imitar a expressão de Jesus no pai-nosso, dizendo o trecho do “seja feita a vossa vontade”, mas recolheu-se a tempo de não censurar os amigos. Julgou que havia deixado bem claro o seu pensamento e propôs a Francisco que comentasse as deliberações, orasse a prece de despedida e solicitasse as bênçãos do Senhor.
Francisco não tinha muito que dizer, mesmo assim desenvolveu algumas idéias:
— Meus caros, na vida e na morte, o destino que cada um traça para si mesmo não está isento de ser compartilhado. Por isso, quando nos separamos por momentos, mantemos sempre a esperança de reencontrar-nos, segundo o equilíbrio moral e intelectual da hora da partida. Aí, enveredamos pelo mundo, descobrimos novas perspectivas existenciais, deparamo-nos com novos tipos, transformamos a nossa estrutura espiritual em função das experiências e pomo-nos mais espertos perante o Cosmos. Dada a separação, cada ser perpassa por eventos diferenciados, a ponto de conhecer novas diretrizes em todos os ramos do saber, cristalizando aspectos que dão outro tônus à personalidade, revigorando, entretanto, tudo o que de bom tem o caráter. Não esperem, pois, que o seu reencontro vá apresentar esta mesma comoção de pré-saudade, se assim posso dizer. De maneira alguma irão reconhecer-se nas pessoas em que se transformarem. Vão deparar-se com outros indivíduos, até que se disponham às narrativas das peripécias e recomecem a peregrinação em conjunto, adequando os objetivos às novas reivindicações espirituais. Mas é da natureza destas esferas que assim seja, porque, vejam bem, se o sujeito parte para nova encarnação e não volta mais desenvolvido, não irá alçar-se ao nível dos que, ao contrário, souberam aproveitar a nova oportunidade. Não lhes afirmo que o amor que une os elementos do grupo não se sedimente em princípios morais de primeira grandeza, como a sinceridade e honestidade dos sentimentos. Digo-lhes que novos relacionamentos servirão para novas conquistas para o círculo das amizades e poderá ocorrer de se juntarem espíritos com maior proximidade, de acordo com o grau de evolução específico. Devo avisá-los de que estes elementos que lhes passo têm uma formulação muito simples e qualquer pessoa, com algum discernimento intelectual, será capaz de imaginar que seja exatamente esse o fenômeno afetivo que se deva aguardar para o futuro. Mas não transportem consigo nenhuma malquerença, nenhuma contrariedade, nenhuma antipatia, por mais melíflua possa ser. Antes de partir, exponham as mágoas, os pensamentos de desagrado e peçam perdão por haverem guardado tais diferenças, mínimas que sejam. Se assim não fizerem, o tempo de afastamento, propiciando oportunidades de reflexão, trará certo mal-estar íntimo no desenvolvimento pernicioso dos sentimentos desarmoniosos. Outra vez advirto para a modéstia destas apreciações, contudo, prestem atenção no valor intrínseco delas para a consecução do ideal evangélico do amor às criaturas, por força de todos sermos filhos de Deus. Por exemplo, quase todos vocês estão em vias de deixarem o ambiente deste “Tugúrio”. É comum, em tais situações, quando se virem distantes do pessoal daqui, que desejem fixar conclusões a respeito das atividades acompanhadas. Nesse momento, tenderão a exercer seu espírito crítico a respeito de tudo. Caso cheguem a resultados desabonadores, não tanto pela falta de proficiência dos trabalhadores mas pela metodologia empregada, irão responsabilizar os dirigentes, inculcando em sua mentalidade que algo poderia ser feito de maneira mais eficaz. Não façam isso. Se for necessário comentar o que viram para estabelecerem um ponto de vista uniforme, desdenhem o desejo de justificar as próprias observações e mantenham-se atentos para o que tiverem absorvido das técnicas, evidenciando, de modo o mais científico possível, quais os mecanismos que ficaram sem domínio integral. Em subseqüente visita a este ou outro centro espírita, os pontos não aclarados merecerão outro tratamento e novas investigações, porque, no campo do socorrismo, o mais importante é sempre o bem-estar que se possa proporcionar ao próximo, sem o concurso da sensação de que estamos fazendo o serviço através de desforço sacrificial. Que Deus os abençoe, meus irmãos, e lhes dê outras razões para os seus penhorados agradecimentos. Vão em paz e enxuguem as suas lágrimas, na expectativa de novas realizações no campo das virtudes. Acompanhem-me num simples pai-nosso.
Quando Deodoro retornou do êxtase em que se deixou enlevar pelos sentimentos que as palavras de Francisco lhe despertaram, estava no pátio muito conhecido do seminário onde havia ministrado alguns cursos. Em sua companhia, apenas Joaquim e Hermógenes.
— Como viemos parar aqui?
A pergunta endereçou-se mais ao protetores do que aos outros dois. Foi Joaquim quem respondeu:
— Com certeza, tendo nós três acatado as orientações contidas no discurso do mentor do centro espírita, ficamos à disposição da iniciativa dos que cuidam de nós, a partir da história de nossas existências. Julgaram, evidentemente, que, neste local, iríamos ter o que aprender e para cá nos trouxeram. Nesse sentido, é muito provável que tenham lido em nossos corações que aceitaríamos de bom grado tal interferência em nosso livre-arbítrio.
Hermógenes, que se sentia como em casa, complementou:
— Devo imaginar que, se nos rebelarmos contra a orientação que se imprime à nossa educação, como acontecia aos seminaristas do meu tempo, seremos enviados para a reitoria, onde é certa a admoestação. Bem me lembro de vários acontecimentos neste educandário terreno.
Deodoro, no entanto, punha o seu senso filosófico a trabalhar:
— Sinto-me operando mentalmente sob restrição de várias ordens. Não posso comentar o que vi no centro.; não posso refletir sobre esta inusitada deslocação no espaço.; não tenho recursos para perceber quais os critérios utilizados para a seleção deste local.; não fui ouvido a respeito dos meus sólidos objetivos.; não tenho necessidade de dispor...
Não foi mais longe, interrompido por Joaquim:
— Caríssimo, vocês dois estão numa casa que lhes incita muitas recordações. Por aqui não passei nenhuma vez. Todavia, não me afeta o fato. Deposito nas mãos dos amigos completa confiança e lhes solicito ainda mais, isto é, que sejam explícitos quanto ao oferecimento que nos fazem de suas propostas de ensino. Se bem me recordo, esta não é a primeira vez que somos levados de um lado a outro. O que nos atinge, desta vez, é a falta de novidade, tanto que, anteriormente, ficávamos perplexos com os eventos. Agora, queremos imprimir a nossa vontade declaradamente nos feitos a que somos integrados. Não permiti ao amigo Deodoro que prosseguisse em sua linha de raciocínios, para não incidir em juízo precipitado e injusto.
Não tiveram tempo para mais nenhuma inquirição à vontade. O pátio foi recebendo uma leva de alunos que, sem serem tão numerosos quanto no tempo do professor, ocuparam todos os quadrantes, distribuindo-se em facções para jogos e lazeres. De pronto, chamou a atenção de Hermógenes que nenhum deles portava ou consumia qualquer espécie de merenda. Uns poucos refrescavam-se nas três bicas da fonte. Muitos dos mais velhos formaram várias rodas em que os temas de caráter religioso preponderavam, conforme rapidamente foram constatando os recém-chegados. No plano etéreo, viram muitos protetores vestidos de batinas, os quais não fizeram menção de tê-los percebido no ambiente.
Deodoro, não querendo fazer estardalhaço, manteve uma conversação telepática com os parceiros:
“Sinto que fomos aqui trazidos na qualidade de meros observadores. Diferentemente do centro espírita, os dirigentes espirituais da instituição não se aprestaram a vir receber-nos. Por que será?”
Joaquim foi quem se manifestou:
“Ou estamos ocultos para não sofrermos repelões vibratórios, porque emitiríamos evidentes sinais de perturbação espírita, uma vez que testemunharíamos em favor de tópicos contrários aos dogmas, conforme ocorreu-nos no mosteiro de onde fomos expulsos.; ou estamos aqui para apreciarmos o movimento dos alunos e professores em mera configuração fantasmagórica, como no caso das construções do etéreo, quando estivemos retidos na biblioteca. Neste caso, estaríamos envoltos por acontecimentos históricos e não da realidade em transição. Talvez, se esta segunda hipótese estiver certa, venhamos a observar Deodoro ou Hermógenes em atividade.”
Hermógenes não se conteve:
“Em matéria de possibilidades, tenho outra, fruto de minha imaginação criativa, qual seja, a de que estejamos sendo convocados para ouvirmos as lições ministradas de cátedra, segundo a novíssima concepção teológica dos últimos tempos. Sendo assim, iríamos atualizar-nos em curso de reciclagem, para o efeito da prestação de serviços em área de atuação onde temos melhores condições de aprendizado. Quem sabe esteja sendo dado o pontapé inicial do campeonato? Que campeonato? O de que participamos na qualidade de equipe convidada, com perdão da péssima figura, porque sinto que Deodoro me recrimina.”
“A sua construção mental está a insinuar-me”, refletiu o Monsenhor, “que as vibrações emitidas pelas entidades encarnadas estão conseguindo furar o bloqueio das defesas energéticas, para atingir...”
Novamente, Joaquim interveio:
“Peço-lhes perdão por haver começado com as suposições. Deveria, à vista de não termos conhecimento do fenômeno que nos alicia, ter proposto que orássemos por esclarecimentos.”
Deodoro percebeu que se deixaram levar pela fantasia e concordou:
“É justamente isso que deveríamos ter feito, ou melhor, que deveremos fazer a cada novo empreendimento de que formos alvo. A leveza dos pensamentos inócuos que se originam das divagações aleatórias é imprópria para a compreensão do que ocorre em sentido seriíssimo conosco. Estamos agindo como aqueles alunos que não prestam atenção às explicações, no aguardo da ajuda que possam receber no momento das provas. Se não nos dedicarmos com mais rigor aos estudos ou ao exame das condições ambientais em que estamos imersos, jamais iremos merecer oportunidades mais importantes e abrangentes. Aposto que, assim que orarmos solicitando aqueles esclarecimentos referidos por Joaquim, seremos transportados para outra conjuntura igualmente excitante.”
Ficaram alguns instantes no aguardo da transferência aludida. Enquanto isso, as atividades dos alunos se encerraram e todos regressaram ao interior do edifício.
Hermógenes buscou estimular a capacidade intelectual dos companheiros:
— Vocês vão perdoar-me, mas eu me sinto ainda como discípulo de Deodoro, como ainda respeito Joaquim pela autoridade que demonstra relativamente a todos os temas de que tratamos. Quando pretendo avançar um pouco mais, noto que vocês já vêm de volta. Não residirá aí a dificuldade de não termos recebido autorização para nova peregrinação etérea?
Foi Deodoro quem se deixou embair pelo desafio do ex-aluno:
— Se você está acreditando que se tornou um peso para nós, talvez esteja mais ou menos certo. Mas que critério deveremos utilizar para o julgamento de nossas melhores disposições espirituais? Só o fato de termos tido experiências de vida ou de interregno existencial no etéreo mais longas não terá o significado de estarmos mais categorizados para sermos recebidos desde logo numa colônia de desenvolvimento das qualidades evangélicas, de acordo com o que pudemos depreender das informações colhidas junto aos dirigentes do centro espírita. Desejará o irmãozinho, permita-me o tratamento afetivo, que ouçamos a sua confissão?
Longo foi o período de tempo entre a questão e a resposta. Se tivessem observado com atenção o movimento dos alunos vindo e voltando do pátio, teriam sabido que vários dias terrenos estavam decorrendo. Cada qual se recolheu em suprema análise do discurso de Deodoro, pela sugestão inclusa de que os valores desenvolvidos pelo caráter de cada um poderiam permitir semelhanças e diferenças quanto aos recursos disponíveis para o enfrentar dos problemas que se constituíam em percalços para o crescimento almejado. Cada qual estabeleceu que o Paraíso dos eleitos estava sendo vedado pela própria contextura de sua personalidade, despertando, finalmente, para o enredo de que estavam, de certa forma, sendo objetos.
— Temo que a minha resposta não se coadune com os desejos dos amigos de mais um companheiro para a viagem. Não sou um peso para vocês. Considero-me, aliás, a parte folclórica e agradável das tertúlias amigáveis que o nosso grupo glosava, sob o impacto das vigorosas deduções de meu querido professor. Afirmo-lhe, Deodoro, sem medo de ofender, que me antipatizava com a sua enérgica presença em sala de aula, porque possuía subida inveja do seu discernimento. Quando o reencontrei nesta esfera, reacendeu-se a antiga ojeriza, mas contive os ímpetos, condoído, principalmente, pela sua figura vetusta e acabada. Mas você progrediu, meu irmão, surpreendentemente, readquirindo as cores mais saudáveis da juventude, nestes quarenta e poucos anos que representa agora. Quanto a mim, a minha imagem, que deveria estar na casa dos vinte e poucos permanece lá pelos sessenta, pouco tendo progredido, com toda a certeza porque não me aferrei suficientemente aos estudos. Você, que tem a memória sempre pronta, sabe muito bem que desisti dos votos e que lhe informei que voltara ao seminário em época posterior, mais velho e mais experiente, velhice e experiência relativas, que o mais que fiz foi dar um piparote nos conceitos, assimilando o mínimo necessário para capacitar-me, pois desejava reaver os ambiciosos planos da mocidade, agora sem os ornamentos dos ideais. Em suma, para não tornar grandioso o que não tem nada de expressivo, julgo-me apaniguado pelas providências dos protetores que para cá nos trouxeram, com o evidente fim de me dar a entender que o meu curso se fez muito mais no pátio do que nas classes. Quando aguardamos o transporte para outro local, transporte que não se realizou, fiquei cismado. Agora, tenho a certeza de que, prometendo permanecer em estudos junto aos encarnados (se não forem os alunos daqui espíritos de sacerdotes mal formados)...
Joaquim, enxugando lágrimas provocadas por sensível compreensão do drama que se relatava, interferiu:
— Seria bom que esta hipótese fosse verdadeira, porque, então, estaríamos apreciando, ao mesmo tempo, o desenvolvimento das ações em dois planos etéreos. Infelizmente, acho que os discípulos são terráqueos.
Hermógenes notou a emoção do amigo e o abraçou carinhosamente. Coube a Deodoro aproximar-se dos dois, para unir-se no mesmo amplexo de amizade. Firmando nitidamente o sentimento de que compreendia e perdoava incondicionalmente o ex-aluno, sussurrou-lhe ao ouvido:
— Aceito a sua confissão, estimado companheiro, e lhe dou a bênção de Deus, porque jamais me senti agredido por sua antipatia. Quanto à sua proposição, não nos custa tentar o mesmo recurso, despedindo-nos e orando, para ver se somos, Joaquim e eu, encaminhados para outra região, enquanto você fica por aqui mesmo, segundo manifesta vontade.
Desta feita, Joaquim, estremecido pelo diálogo entre os que se reconciliavam, ergueu a voz para a prece de despedida:
— Senhor, se for para a felicidade futura destes irmãos e se assim se programou para nós três, fazei que a nossa inteligência se abra para as necessidades de progresso imediato de cada um, de forma que possamos seguir os nossos caminhos, sem o comodismo e as regalias de simples usufruto dos espíritos mais evoluídos. Que se abra para nós a perspectiva do trabalho ideal, atribuindo-se a cada um a carga que podemos carregar. Abri-nos também o coração para aceitarmos como compromissos os labores conseqüentes, sem os quais não se fixam as diretrizes que o nosso intelecto é bem capaz de registrar, para a repetição oportuna aos que nos parecem desajuizados. Providenciai-nos, pois, os meios de alcançarmos proficiência para a realização dos atos socorristas em completo domínio dos ensinos de Jesus. Assim seja.
Quando terminou a oração, encontraram-se Deodoro e Joaquim na pequena nave de uma igreja cheia de gente. Hermógenes havia bem compreendido que era ele mesmo quem necessitava das lições que um dia desprezara.
O tumulto dentro do âmbito espiritual fazia-se acentuado. Os fiéis também emitiam fortes vibrações de desagrado, como se impelidos para a prática de algum ato de violência.
Joaquim observou:
— Eis que se prepara o povo para a guerra. Tenho a reminiscência de haver participado, em alguma época em que fomentava a revolta nas almas dos encarnados, desta mesma atividade em que o ódio se mescla ao mais agudo sentimento de vingança. O que estranho é que tais fatos estejam a ocorrer dentro do sagrado recinto religioso.
Deodoro foi mais arguto nas considerações:
— A partir das recentíssimas experiências, posso concluir, à vista de sua declarada rememoração de episódios análogos, que para cá viemos trazidos na intenção de deixá-lo às voltas com esta específica situação de organização de forças para a invasão de territórios, legítima ou ilegitimamente, de posse dos latifundiários. Você, não sei se acompanhou o desenvolvimento das idéias mais liberais do sacerdócio vocacionado para os pobres. Digo isso porquanto faz quase um século que desencarnou. Por minha vez, senti o crescimento dos anseios de muitos padres de tornarem a sociedade mais homogênea economicamente e mais igualitária socialmente. Tomaram ao pé da letra a palavra evangélica, ou seja...
Aguardou que Joaquim citasse o texto bíblico.
— Eis, amigo, o trecho do Sermão das Bem-aventuranças a que você se refere, na versão de São Mateus, capítulo V, versículos 4, 6 e 10: “Bem-aventurados os que estão chorando, porque serão consolados. — Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. — Bem-aventurados os que estão sofrendo perseguição pela justiça, porque o reino dos céus é para eles.”
Deodoro interveio:
— Prefiro São Lucas (VI: 20 e 21): “Vocês são bem-aventurados, vocês que são pobres, porque o reino dos céus é para vocês. — Vocês são bem-aventurados, vocês que estão tendo fome agora, porque serão saciados. — Vocês são felizes, vocês que estão chorando agora, porque irão sorrir.”
— Então é bom acrescentar os versículos 24 e 25: “Mas infelizes de vocês, ricos, porque estão tendo sua consolação no mundo. — Infelizes de vocês que estão saciados, porque terão fome. — Infelizes de vocês que estão rindo agora, porque serão condenados aos prantos e às lágrimas.”
— Bem lembrado. Não lhe parece claro que Jesus prometia, como está escrito, “o reino dos céus”? Pois aí é que houve sérias divergências de pontos de vista dentro da Igreja.
— Tanto houve, concordou Joaquim, que agora estamos vendo que o sacerdote incentiva as invasões, amparado por alguma carta pastoral da diocese, que tais coisas não se fazem sob o risco da excomunhão.
— Será que para cá viemos na condição de observadores ou estamos sendo intimados, subjetivamente, a auxiliar no desarme dos espíritos contra os irmãos?
— Não temos nenhuma possibilidade disso, Deodoro. Note que os de batina são dois ou três, no máximo, enquanto os demais instigadores são meros arruaceiros.
— Não concordo com o qualificativo. Arruaceiros seriam se estivessem despojados de qualquer sentimento de ajuda. No entanto, pelo que entendemos e concordamos, de qualquer modo, se fundamentam nas palavras do Mestre, mal aplicadas segundo o nosso ver, mas sempre edificantes, já que a pregação do Cristo se deu no sentido de dar a quem nada tem a proteção do Alto. Qual é mesmo a promessa escrita?
Desta vez, Joaquim apenas murmurou:
— “Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.” (São Mateus, V: 3.)
— E como entender a expressão “humildes de espírito”?
— “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra.” (São Mateus, V: 5.)
— E qual o conselho implícito do Senhor?
— “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.” (São Mateus, V: 8.)
— “Limpos de coração” ou “pacificadores”...
— “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.” (São Mateus, V: 9.)
— Pretendi caracterizar que a incitação de Jesus não continha violência. Será, então, perniciosa a intervenção religiosa no campo social, à medida que promove a luta entre os homens? Quando vivo, julgava que sim. Agora, estou tendendo a reconhecer que os que sofrem não poderão jamais aprender as matérias doutrinárias do Espiritismo, sem se dedicarem aos estudos regulares e específicos, para o que têm de ter recursos de toda espécie. No meu tempo, vivendo um tanto na Europa, acostumei-me a outro tipo de cultura, sem as ânsias da conquista individual. Mas as nações fizeram em larga escala o que estamos a pique de ver neste recanto afastado da civilização. Preciso confessar-lhe, Joaquim querido, que não me sinto capacitado a julgar dos méritos ou dos deméritos de tal atitude. Que pensa você?
— Tenho medo de não ter nenhuma idéia muito clara a respeito do tema. Deveríamos abrir Kardec e não permanecer ilhados pelos cânones do catolicismo de que estamos impregnados, mormente sob a influência direta deste local eivado de recordações eclesiásticas.
— Você também sentiu o envolvimento catastrófico para o nosso discernimento das intempéries promovidas pelos seres em reunião?
— Totalmente. Acho que aqui não haverá de ser o melhor local para as reflexões a que nos habituamos. A minha tendência é a de me aplicar ao esclarecimentos dos pontos evangélicos aos que se incitam para a prática do ato de vandalismo. Por certo, aqueles que estão recebendo a grave ascendência de caráter grosseiro têm a seu favor a intercessão dos protetores. Nós é que estamos presenciando um ato sem que possamos caracterizar qualquer atividade para amenizar os dissabores dos encontros conscienciais futuros, pela prática da injustiça, da maldade...
— Joaquim, creio que estamos meio perdidos. Não seria mais justo que nos inscrevêssemos em algum curso regular, em alguma instituição de ensino superior, para o que...
— ... para o que, caro Deodoro, devemos elevar os pensamentos em prece, porquanto nos ficou demasiado evidente que não temos o vezo do socorrismo. Desta vez, faça você a solicitação transcendental, por favor.
O Monsenhor abaixou a cabeça, a significar que se sentia muito pequeno, e rezou:
— Amigos e benfeitores preocupados com a nossa evolução, ajudem-nos nesta crise do intelecto e do sentimento. Chegamos a uma encruzilhada terrível, porque incapazes nos reconhecemos de realizar algo proveitoso para o povo em vias de cair em tentação, porque não se afasta do abismo do ódio, especialmente pela malversação dos ensinos de Jesus, que deveriam estar sendo pregados e explicados neste ambiente onde a paz e a concórdia deveriam reinar. O que é pior nesta nossa postura socorrista é que não somos capazes de reconhecer exatamente onde é que está o maior perigo, já que os que se rebelam também apresentam razões muitíssimo claras de que estão sendo despojados do bem mais precioso, conforme lhes foi prometido pelo Nazareno, qual seja, o de que possuiriam a terra, promessa que se cumpre em relação à Igreja, que mantém vastas propriedades. O que não nos parece lícito é não respeitarem o princípio da mansuetude, conforme a sugestão de Jesus. Leiam em nossos corações o nosso desejo de partilhar dos trabalhos do amor em prol da humanidade e considerem a nossa lucidez quanto à necessidade dos conhecimentos. Haverá alguma esperança de sermos atendidos? Qual será o sinal que receberemos desta vez?