O grupo saiu do templo e buscou refúgio em recanto menos assombrado pelo cruzar das vibrações deletérias com que eram bombardeados os da igreja. Se não estivessem unidos pela força haurida do etéreo durante as preces, certamente seriam perseguidos e apedrejados. Arnaldo e Alfredo nada poderiam fazer, pobres guardiães contra as investidas de espíritos mais ou menos depurados pelos sofrimentos. Os que buscavam agredir os sete tinham a catadura áspera dos malfeitores.
Quando Deodoro propôs orar pela salvação daquelas almas, foram deixados em paz. Sem saber o que aconteceria se não cumprissem o impulso da solidariedade, carregados de temores por julgarem não encontrar nos corações as virtudes do amor e do perdão incondicionais, começaram um terço, puxado agora por Joaquim. E foram caminhando pelas ruas, observando mais sossegadamente o movimento, distinguindo os elementos pelas auras de tênue luminosidade, segundo as diferentes cores, a maioria impregnada de tonalidades fortes ou escuras, como se propensos estivessem ao lusco-fusco do Umbral. Aqueles outros, os agressores, evidentemente haviam escapulido das Trevas.
Nem perceberam quando deram por encerradas as orações, tão envolvidos estavam com a paisagem espiritual. No meio da multidão dos desencarnados, passavam por um grupelho insignificante. Se estivessem preocupados em avaliar a roupa dos encarnados, trabalhadores, desocupados, senhoras com seus filhos, gente do povo que andava depressa, agarrando com força os seus embrulhos quando divisavam rapazotes avulsos ou reunidos, teriam sabido que a população em geral estava bem vestida, limpa, cuidada. Entretanto, o tremor dos sucessos desagradáveis os impelia para o reconhecimento dos habitantes do seu plano.
Deodoro foi quem instigou a análise de duas ou três figuras, segundo as características que precisou dentro da escala espírita publicada por Kardec:
— Vejam aquele indivíduo colocado sobre o viaduto, fazendo menção de se atirar. Se estivesse brincando, seria uma gesto de muito mau gosto. Mas desconfio que não queira chamar a atenção de ninguém e apenas reproduz os últimos instantes de vida, recordação calcinada pelo fogo do inferno que deve ser a sua alma. Joaquim, você acha que podemos convencê-lo a vir conosco, para entregá-lo a grupo socorrista atuante junto a alguma casa espírita? Gostaria de entender os processos mentais em jogo desde o primeiro momento, isto é, explorando as informações anteriores ao trabalho de doutrinação, para avaliar os resultados do influxo vibratório da benemerência institucionalizada.
— E se falharmos? — inquiriu o mencionado.
— Analisaremos, então, os processos que utilizamos e procuraremos aperfeiçoá-los, enquanto não recebermos as lições organizadas nas escolas do etéreo.
— Vamos tentar. Creio que o primeiro passo será enviar-lhe a informação de que estamos bem intencionados, através de uma onda de freqüência compreensível por ele. Isso alcançaremos através de prece na intenção de sua melhoria, a qual será secundada pelo seu protetor, que nos proporcionará os elementos de conexão vibratória. Peço ao que se sentir menos envolvido emotivamente com a nossa ação para que reze pelo grupo.
Hermógenes se prontificou, talvez ainda sob o efeito dos insucessos anteriores. Roberto percebeu a íntima intenção do serviço e resolveu ajudar o amigo, sustentando-o no mesmo registro energético, de acordo com os fluidos com que predispunha a exposição da aura. É preciso que se informe que o trabalho que iriam realizar pela primeira vez lhes parecia absolutamente natural, como se devessem executar exatamente aquelas atividades para o objetivo visado. Não precisou examinar com muita acuidade, para Deodoro perceber que estavam recebendo auxílio superior.
Principiou Hermógenes:
— Bons amigos da espiritualidade maior, mensageiros de Jesus, precisamos de vocês para efetuarmos um ato de amor por um irmão necessitado. Rogamos-lhes para nos darem força e sustentação fluídica, para enfrentarmos a oposição dos espíritos que têm por escopo manter em sofrimento o nosso candidato a assistido. Para tanto, necessário se faz que compreendamos quais os meios mais eficazes para demonstrarmos a nossa honestidade evangélica ao coitado que incrustou a idéia de que o suicídio seria a solução para os terríveis problemas que devem tê-lo deixado tão perturbado. Solicitamos, também, que sejam avisados os amigos socorristas mais próximos, para nos orientarem caso fracassemos nos procedimentos específicos do amparo a esta entidade.
Enquanto orava, a equipe foi aproximando-se do parapeito em que se situava o irmão a olhar fixamente para o movimento de veículos lá embaixo. Se percebeu que estava sendo cercado pelos fluidos da bondade alheia, não deu demonstração. Mas não houve tempo para agarrá-lo, despencando daquela altura em fragorosa queda, sendo abalroado pelos veículos que passavam em alta velocidade.
Observaram os estáticos socorristas, pasmos, que o outro se levantou, desafiando os carros a que o atingissem, rindo e se divertindo com a maluquice de sua insólita atividade.
Ato contínuo, os sete se deslocaram até onde se encontrava o infeliz, sem prestarem atenção ao método de aproximação do alvo através da vontade, e o resgataram para dentro do globo magnetizado que conseguiram formar, sem ao menos se darem conta dos processos envolvidos. Não pararam para refletir a respeito de nenhum fenômeno que estavam produzindo. Apenas tinham o desejo de ver o elemento que protegiam bem acomodado, seguro, em paz, confiante. Eram pensamentos e sentimentos trocados entre as mentes e os corações, formando uma como que única entidade assistencial. Esqueciam-se de si mesmos para pensarem apenas no outro. Se um titubeava, logo se imaginava diante de Jesus e restabelecia o vigor necessário para a prestação do serviço. Foi tanta a diligência que aplicaram ao agasalhar o irmãozinho que este dormiu de imediato, deixando Deodoro frustrado quanto a interrogá-lo.
Joaquim tomou a iniciativa das observações pertinentes ao enredo que se desenvolvia:
— Foi melhor assim. Agora temos a certeza de conduzi-lo até uma casa de atendimento evangélico espírita. Se, ao contrário, se desesperasse com a mesma energia com que enfrentou os carros no leito da avenida, talvez nós víssemos abalada a nossa deliberação. Observo no fato, como suspeitou Deodoro, a mão dos nossos amigos e benfeitores.
Notaram, mais desafogados, que vários espíritos estavam ao derredor ajudando a controlar a quantidade de energia com que mantinham preso aquele que mais tarde considerariam a sua “vítima”. Destacou-se um velho, que foi logo identificando-se:
— Eu sou o pai do rapaz que vocês dominaram. Tenho tido o desprazer de me ver desprezado por ele, desde que se jogou do alto do viaduto para a morte. Faz dezoito meses, um ano e meio exatamente, que se matou. O pior é que sabe que presenciei tudo e fica repetindo o gesto desmiolado tantas vezes quantas percebe que estou por perto. Os que o levaram ao suicídio, de vez em quando, passam por aqui, a observar o que vem fazendo o desgraçado, com perdão da má palavra. E vão embora rindo, como em muda promessa de que, se ele se regenerar mentalmente, irão persegui-lo de novo. Agora que está manietado e inconsciente, graças a Deus, poderá receber as informações a respeito da sua condição existencial.
Enquanto se manifestava, os recém-chegados foram fechando um círculo em torno dele, de modo que, quando menos esperava, se viu impedido de se locomover.
Deodoro e turma não sabiam o que pensar nem o que fazer, tomados de imensa surpresa, verdadeiramente atônitos com a atitude arbitrária dos que mal reconheceram como trabalhadores do etéreo. Um deles se prontificou a explicar-lhes:
— Se dependesse apenas de sua boa vontade, companheiros, o espertinho iria livrar o obsidiado das amarras com que vocês o prenderam. Não se deixem engodar pelas palavras. A malícia não é apanágio dos bons e dos justos, mas dos seres inferiores, ainda não acostumados aos prazeres da intelectualidade, em seus aspectos de respeito à verdade, à justiça, ao equilíbrio entre todos os seres do Universo. São ignorantes mas não são estúpidos. Muitos possuem inteligência bastante desenvolvida, apenas voltada para a realização do mal. Peço-lhes perdão pela insignificância de meus conceitos, mas apliquem a sua desenvoltura filosófica ao mundo fenomenológico ou acabarão considerados teóricos brilhantes, sem nenhum pé na realidade. Viemos a seu chamado, mas, a bem da verdade, por intercessão de nossos guias e mestres, dado o noviciado em que vocês se encontram. Vejo que são ainda sacerdotes católicos mas, por trazerem as obras de Kardec, devem estar mudando de opinião.
Estendeu a mão, solicitando um dos livros e admirou-se muito da contextura fluídica e da perfeição do acabamento:
— Amigos, a pessoa que lhes ofereceu este presente deve estar categorizada muitíssimo no alto. Nunca tive oportunidade de examinar nada semelhante. Sendo assim, retiro das minhas palavras a ingenuidade com que exprimi os meus sentimentos de velho conhecedor dos novatos e peço-lhes que me perdoem o atrevimento das lições. Deveria ter reconhecido a sua competência pelo fulgor de suas auras. Como, entretanto, vocês se escondem para não serem reconhecidos, fiquei a imaginar...
Deodoro não permitiu que prosseguisse. Apenas abraçou com muita ternura o irmão e lhe disse baixinho:
— Viemos para aprender as coisas mais elementares. Você tem toda razão em nos julgar eméritos nos desenvolvimentos teóricos. Nem poderia ser diferente porque dedicamos a nossa última encarnação aos devaneios teológicos, acostumando a mente aos argumentos mais sutis da intelectualidade desvinculada das necessidades humanas mais prementes. Veja em nós muito mais aqueles obsessores brilhantes a que você se referiu do que trabalhadores da seara de Jesus, apesar das roupas. Somos noviços e mal formulamos os primeiros votos de obediência aos cânones espíritas. Ficam para depois os votos da pobreza e da castidade. Que Jesus seja por todos nós!
Susteve a tempo a bênção pelo sinal da cruz, enquanto todo o grupo começou a se deslocar lentamente em direção ao que o novel amigo chamou de tugúrio do divino amor.
— Por que não nos deslocamos mais rapidamente? — quis logo saber o Monsenhor, mas se arrependeu, porque demonstrava ignorância num ponto de fácil intelecção.
— Antes de lhe dar todas as informações, vamos apresentar-nos, que estamos esquecidos das boas maneiras, que a tanto nos obrigam estas tristes figuras que são a causa maior de nossas preocupações. Meu nome é...
— Preste atenção, Monsenhor, gritou aquele que fazia passar-se pelo pai do suicida. Ele vai dizer que é gente muito importante. Eu conheço bem esta trempe. Eles se dizem serviçais dos centros espíritas, mas o que querem mesmo é perturbar os coitados que caem em suas malhas de vaidade e poder.
Em nenhum momento, pensou Deodoro em que o outro falava a verdade, entretanto, viu que a oportunidade era excelente para praticar o exercício preliminar dos socorristas, para avaliação dos pontos fracos dos infelizes. Dirigiu-se ao chefe do grupo que mantinha preso o suposto protetor:
— Perdoe-me, irmão, mas preciso pôr a limpo a advertência que me foi dirigida.
Aproximou-se do outro e começou ampla palestra elucidativa:
— Você, caríssimo amigo, poderia dizer-me que nome me será fornecido?
—Ele vai dizer que se chama Emanuel ou André Luís e que é amigo do médium famoso Francisco Cândido Xavier.
— Por que ele faria isso?
— Você não vê que a intenção deles é libertar o meu protegido, para prosseguirem azucrinando a paciência dele pela eternidade?
— Não consigo caracterizar esse intento pela análise espectral dos perispíritos, através da luminosidade das auras. Como você me faria ver o que não estou vendo?
O encaminhamento técnico da questão desbancou a argumentação subjetiva do prisioneiro. Em todo caso, ainda fez uma tentativa:
— Posso esperar para ver. Não me custa porque tenho o tempo todo e sei que eles não vão me magoar, enquanto vocês estiverem por perto. Quando vocês estiverem despreocupados, eles vão levar o grupo para um terreiro de macumba, onde existem muitos espíritos com força suficiente para dominar esse seu pequeno grupo.
— Você nos trata como pessoas de bem. Quais são os indícios de que realmente o somos?
— Isto é muito fácil de saber, porque vocês se interessaram em ajudar o coitado de meu filho. Esses aí, ao contrário, quiseram apenas me prejudicar.
Queria falar muito, mas não conseguia encontrar pensamentos que não esbarrassem na seriedade da fisionomia de Deodoro, que se utilizava de sua experiência com os delinqüentes encarcerados. Mas um dado se acrescentou ao domínio da psicologia da maldade, qual seja, a leitura dos pensamentos embrulhados em sentimentos péssimos, porque Deodoro, que transmitia e recebia as idéias dos companheiros, aplicou o mesmo sistema junto à mente do interlocutor. Imediatamente, pôde distinguir a necessidade de convencê-lo do enredamento de que estava sendo vítima, mas com razões insubsistentes, que era como a mentira se tornava translúcida na mentalização do outro.
Passou-lhe pela lembrança o fato de os colegas estarem aptos a conhecerem os seus julgamentos e emitiu a seguinte perquirição mental:
Quem estiver em contato com meu cérebro, envie-me uma resposta já, por favor. Quero testar a acuidade do acusador e dos acusados, preferentemente.
De imediato, os seis do seu grupo acenaram positivamente. Os da equipe de socorristas também o fizeram com desenvoltura. O coitado à sua frente, porém, nem notou que algo se transmitia segundo ondas mentais menos grosseiras.
Obrigado, pessoal. Foi fácil saber quem está tentando engodar-nos.
Adquirida a certeza da má intenção do infeliz, Deodoro desejou aprofundar o conhecimento das recordações dele, para demonstrar que estava a par da verdade. Concentrou-se nos reflexos obscuros do perispírito do outro e foi lendo a história recente de suas peripécias na zona umbrática, onde praticara os últimos agravos. Assustou-se, porém, com a facilidade de penetração no âmbito mais recôndito daquele espírito e arrepiou caminho, temeroso de estar a ferir os princípios de resguardo da personalidade do sofredor, que, ao se ver desnudado moralmente, poderia acusar o falso protetor de abusado e sem consideração, para dizer o mínimo. Mas não pediu perdão pela ousadia. Registrou, no arquivo que abrira na mente para os ensinamentos relativos à sua formação de anjo tutelar dos desgraçados, mais essa experiência e o sentimento correspondente e puxou a conversa para o desvelamento da personalidade maligna de quem o tentava.
Perguntou de chofre a Antônio Rodrigues, que assim se chamava o desditoso:
— Rodrigues, você conhece a passagem bíblica da tentação do Cristo?
— Evidentemente.
— Seria capaz de reproduzi-la?
— Mais ou menos.
— Mais ou menos não basta. É preciso repetir palavra por palavra todas as descrições que se encontram em São Lucas, São Marcos e São Mateus, como ainda exijo que interprete as palavras de Jesus.
— Que palavras, Monsenhor?
— As que reproduzem a citação que se encontra em Deuteronômio, capítulo VIII, versículo 3.
À vista da ignorância do outro, Deodoro pediu que o acusado reproduzisse o texto conforme São Mateus, capítulo IV, versículo 4.
João, que lhe passou o nome telepaticamente, não se fez de rogado:
— Respondendo ao tentador, Jesus disse: “Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus.” Quer que eu reproduza o texto do Pentateuco, onde “está escrito”?
— Por favor.
— É interessante que o trecho se refere aos quarenta anos que o povo judeu passou no deserto, após a fuga do Egito, vivendo com o maná que o Pai lhes enviava. Eis o tópico a que se refere Jesus: “[...] para dar a entender a você que não só de pão viverá o homem, mas de tudo o que procede da boca do Senhor, disso viverá o homem.”
Rodrigues não teve mais como esconder o mal de que estava acometido, mas recebeu esplêndido influxo energético capaz de tranqüilizá-lo quanto ao bem que se pretendia para ele. Não se comoveu, entretanto, inseguro quanto ao destino que o aguardava, após ser solto com menor poder, porque sabia que as suas armas lhe seriam retiradas, o que o transformaria de perseguidor em perseguido.
Foi Deodoro quem deu continuidade à conversa:
— Querido irmão, não se amofine por ter-lhe revelado que sabia quem era o obsessor. A bem da verdade, você conseguiu enganar-me no primeiro instante, como ainda estremecido fiquei ao presenciar a sua captura. Todavia, foi através de você que aprendi a lidar com as informações subjetivas dos seres em débito, a ponto de poder informá-lo dos seus últimos passos, na perseguição que vem empreendendo a três seres cuja culpabilidade não sei deduzir dos seus sentimentos. Eis que se define entre nós uma relação de intimidade, apesar de seguir em via de mão única...
Deodoro suspendeu o discurso, porque recebia diversas mensagens no sentido de que a sua fala não estava sendo acompanhada com a mesma singeleza de propósitos. Enquanto ia pondo o coração na mão, Rodrigues estimava a atitude como de fraqueza e ia mesclando aos pensamentos resultantes do temor outros mais atrevidos, para o convencimento de que estaria ciente de suas falhas e convicto de que precisava regenerar-se, oferecendo-se em intenção, desde logo, para trabalhar em favor, justamente, daquele que vinha perseguindo.
Calou-se o sacerdote, colocou a mão sobre a testa do indigente e orou fervoroso ao Senhor, desenvolvendo, ele sim, o tema da tentação:
— Senhor, perdoai esta criatura, que não reconhece em vossas palavras a verdade. Quer comer do vosso maná mas não deseja que os irmãos alcancem a mesma felicidade. Está envolto nas sombras dos crimes da época terrena e com eles alimenta o espírito de vingança, oferecendo a quem pretende dar-lhe um pouco de esperança, a vanglória de tê-lo como mestre, para que o adoremos em sua sagacidade e malícia. Fazei-o manso de coração por uns momentos, para que possa absorver os ensinamentos que os protetores, melhor do que eu, podem ministrar-lhe, ao menos com a finalidade de se lhe gravarem na mente, para posterior reflexão, segundo o princípio de que o amor que desejamos para nós sempre haverá de ser o amor que temos de distribuir aos semelhantes. Assim seja!
Estava emocionado. Cada termo, cada expressão, cada frase ficar-lhe-iam para sempre registradas na mente. Até despertar para as explicações que solicitara a João, já se encontravam todos diante de um prédio de dois andares, construção recente, em cuja fachada se lia: Centro Espírita “Tugúrio do Divino Amor”.