Apanhou o rascunho atirado no lixo e leu devagar: ‘Isto aqui... Isto aqui é um capítulo do livro! Posso começar um conto a partir de uma frase, um poema, uma música...Se eu tiver o tema, as palavras surgirão borbulhantes, alimentarão as torrentes de um rio que desaguará em um mar de ideias. O leitor espera, por algo que seja um caldeirão fervente de cenas, cenários e ação, porque as digressões são cansativas. Muitos, reconhecendo essa técnica saltam as páginas que discorrem sobre um regato louro. — Sabes que é no ‘regato louro’ que a literatura acontece. O foco narrativo se esgota nos primeiros parágrafos. Clarice era mestra em beber água no regato louro. Pensar em regatos louros. Exatamente porque não existem regatos louros. Assim se foge... — Pode ser!
— É...Aquilo que parece digressão, na verdade, é momento propício para refletir. O escritor aproxima-se do leitor e propõe o debate e lança uma pedra no regato louro: ‘Quantos tempo vive uma pedra?’ E qualquer resposta que obtiver será tomada como reflexão. Julgou ouvir o eco da voz de Umberto, refletindo sobre o que pensa uma pedra, e se sentiu no dever de explicar a pedra que foi para ela, falar de percalina-verde-drummond, arrancada da boca de Boitempo. Embora tenha dito que muita coisa de seu livro era de autoria do pai, esquecera-se de mencionar o avô. Ora, se Corina vendeu a coleção encadernada em percalina, verde sem ler, Chanana que à época tinha sete anos, também não deve ter lido. E muito menos Dulcineia que saiu de Montes Claros, enrolada em cueiros de três meses. Só havia duas possibilidades: a primeira é que nada impedia que o avô tenha produzido aquela escrita; a segunda e a mais provável é que Jeremias, mesmo não tento alcançado a Coleção de Obras Célebres, estabeleceu um diálogo com ‘Boitempo’ para homenagear o poeta mineiro. De qualquer modo, Percalina-verde-drummond presta homenagem não apenas a Carlos, mas se estende a todos os poetas que esperam tanto a ressurreição dos mortos, quanto a consagração da poesia. ***
Adalberto Lima, trecho de Estrada sem fim...
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