“Em um crescendo magistral, Sebastian Haffner narra a ascensão e a queda daquele que foi o maior espetáculo da engenharia política do Ocidente: o Reino da Prússia.”
Livro resenhado: HAFFNER, Sebastian. Preußen ohne Legende. 5 auflage. Hamburg: Btb Bei Goldmann, 1998.
Suum cuique - a cada um o que lhe é devido. Não fosse essa a inscrição gravada na Águia Negra, a mais alta comenda militar prussiana, poderia ser, por bem, o mote do maior prodígio da razão de Estado: o Reino da Prússia. Mas nações, bem o sabemos, reclamam seus mitos, e talvez a razão pela qual a Prússia não reclamou nenhum seja a de que ela jamais foi um Estado nacional, mas um Estado racional.
Ou talvez porque tenha sido, ela própria, um mito. Um mito paradoxal, bem entendido, por se tratar de um mito da razão - ou, caso se prefira, da razão de Estado. É o que nos faz crer cada uma das 536 páginas do tratado Preußen ohne Legende, do historiador – prussiano de nascimento - Sebastian Haffner (1907-1999). Prússia sem lenda (que seria a tradução literal do título alemão) é simultaneamente um tour de force e um capricho intelectual bem-sucedido do germanólogo que, já no quartel final de sua existência –a obra foi lançada em 1979 -, decidiu-se por dar sua peculiaríssima versão da história prussiana. Se méritos sobram ao livro, dois deles, em larga medida complementares, contribuem para remover a roupagem de lendas que envolve o objeto do autor: o preconceito que sempre enxergou na Prússia um bastião do militarismo e do autoritarismo, precursores do nacional-socialismo, e a suposta “missão alemã” da Prússia, que Haffner desqualifica de pronto e com argumentos irrefutáveis. Quanto ao militarismo e ao autoritarismo, Haffner é – feito raro – categórico e específico: o militarismo prussiano era uma contingência geopolítica e uma conseqüência da própria raison d´être do Estado prussiano; em contrapartida, o que por vezes é tido como “militarismo exacerbado” pelos historiadores contemporâneos era apenas uma versão mais disciplinada e radical do fenômeno que se difundiu por toda a Europa após a Paz de Vestáflia (1648), qual seja a nacionalização dos exércitos e a extrema militarização dos aparatos estatais. Já o estigma do autoritarismo foi, segundo Haffner, uma detração calculada dos vizinhos da Prússia, que foram por ela sublimados em razão da tolerância religiosa, da indiferença política e da xenofilia do Estado prussiano. A tão propagada “missão alemã” da Prússia é desconstruída sem maiores cerimônias: a ascensão da Prússia só foi possível após a destruição do poder do (Sacro) Império Germânico, em 1648, e o surgimento do Império Alemão em 1871 assinalou o início de sua “longa morte” (lange Sterben). Não obstante ser um Estado anti-nacionalista por excelência, a Prússia clássica, das láureas militares e estratégicas, foi um produto do século XVIII, época em que os Hohenzollern não cogitavam a hipótese de ter a Prússia à frente de um processo de unificação dos povos alemães. Nos deteremos nesse tópico mais adiante.
O que distingue Haffner dos demais historiadores germanistas talvez seja a forma apaixonada, quase hegeliana, com que trata a história prussiana. “Quase hegeliana” porque, diferentemente de Hegel e seu germanismo travestido, ele procura se distanciar dos fatos porquanto se detém em uma análise anti-acadêmica dos mesmos; em uma analogia próxima, ele reconhece seu “amor”, sem, porém, negligenciar-lhe os “defeitos”. Destaca-se positivamente em relação a Hans-Joachim Schoeps[1] porque, ao contrário de Schoeps, não faz de sua obra um panfleto ativista que vez ou outra deixa transparecer suas simpatias pela restauração da monarquia dos Hohenzollern; comparado a Leopold von Ranke[2], cabe a Haffner o mérito – ou a vantagem – de poder auscultar a história-alma da Prússia após sua extinção, o que as circunstâncias temporais impediram Ranke, nascido em 1795, de fazer. A chamada “escola germano-prussiana” de Heinrich von Treitschke, por outro lado, peca pelo ativismo nacionalista e pela leitura tendenciosa da história prussiana, segundo a qual a Prússia sempre teve como finalidade a consecução da “missão alemã”, e que as desgraças pelas quais a Prússia passou em 1806 foram responsabilidade do “elemento polonês” integrado à sociedade prussiana. Treitschke, porém, é uma cria do nacionalismo alemão que se difundiu após 1813 e um dos artifíces da esculhambação histórica que, nos séculos XIX e XX, situou a Prússia como o instrumento-líder da “unificação dos povos germânicos”, lenda que Haffner se propõe a destruir.
A “proto-Prússia”
No princípio, foi o land grab empreendido pelas ordens monásticas que, em nome do Sacro Império Romano-Germânico (doravante Império Germânico, e com razão, pois que de Roma tomava apenas a denominação e a retórica universalista católica), colonizaram as terras pagãs do norte da Europa. Coube a uma dessas seitas eclesiásticas, a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, no século XII, civilizar um dos povos pagãos que viviam às margens do Báltico. Por mais estranho que possa soar, tais bárbaros atendiam pelo nome de prussianos, e, ocorrência rara na história das conquistas, os civilizadores da Ordem Teutônica, depois de brutal cristianização (com métodos que o próprio Imperador por certo desconhecia) dos pagãos, adotaram o nome da tribo vencida. Imbuídos de um forte espírito cruzado, esse grupo de homens com uma vontade de poder hipertrofiada logrou materializar, após sucessivas revoltas dos prussianos, um aparato estatal que já nos séculos XIII e XIV se destacava pela eficiência e pela relativa tranqüilidade administrativa de que gozava. As conquistas da Ordem não devem, nesse sentido, ser menoscabadas: nas condições geográficas, econômicas e climáticas mais improváveis, em meio a hordas bárbaras cujo primitivismo era desolador e cuja forma de organização social era tribal, os cavaleiros teutônicos estruturaram um Estado cuja eficiência administrativa superava a do próprio Império em seus dias de glória. Os métodos utilizados para tal propósito não eram, certamente, os mais louváveis; de toda sorte, porém, não eram inusuais: o trato reservado pela Cristandade aos povos pagãos nunca primou pela misericórdia, e as eminências eclesiásticas sempre encontravam alguma providencial interpretação das escrituras que permitisse a um grupo de cavaleiros degolar bárbaros que não se convertessem tão-logo vissem o estandarte da cruz. O que, obviamente, não causa espanto, tendo em vista que pautas políticas e religiosas eram uniformes durante a Idade Média.
E havia, a oeste do rio Oder, a colônia Ascânia nos rios Spree e Havel, que, após sucessivas – e bem-sucedidas – expansões patrocinadas pelo Império, viria à luz da História como o Margraviado (Principado) de Brandemburgo. A metamorfose, porém, não se anteciparia: quando Albrecht, o Urso, iniciou a dinastia Ascânia no século XIII e transformou um descampado de terras pagãs e porções que pertenciam aos Wends[3] em uma colônia respeitável, a região passou a ser uma das jóias do Império, e os próprios ascânios eram vistos com prestígio entre a corte imperial. A extinção da dinastia, um par de séculos mais tarde, devolveu o Margraviado de Brandemburgo ao festival de desmandos e barbarismos que vigia antes da criação da colônia ascânia, e foi apenas em 1415 que o Imperador, ciente das pilhagens de barões cujos compromissos com o Império eram meramente verbais e do iminente perigo de que os suecos e/ou os poloneses se apossassem do principado, despachou para a região uma das muitas casas reais que protagonizavam o beija-mão imperial característico do fim da Idade Média: os Hohenzollern.
No mesmo ínterim cronológico, eclodiu na Prússia a guerra entre a Ordem Teutônica e a Polônia, resultando na derrota da Ordem em 1466, na incorporação da Prússia Ocidental (Westpreußen) à Polônia e na submissão da Prússia Oriental (Ostpreußen) à coroa polonesa, ainda que o domínio de facto permanecesse em mãos da Ordem. Face à desgraça dos cavaleiros teutônicos, o Império não moveu uma única viga, militar ou política, para auxiliar os civilizadores daquela distante terra báltica, o que justifica a pouca deferência do último Grão-Mestre da Ordem Teutônica ao declarar, em 1525, a dissolução do Estado da Ordem, que a partir de então passava a ser o Ducado da Prússia. E não haveria, 176 anos mais tarde, um Reino da Prússia, se esse último Grão-Mestre não fosse um Hohenzollern, dando assim azo à co-união do Ducado da Prússia – vassalo do rei polonês – ao Brandemburgo, em 1568. Esvaído meio século, as circunstâncias – sempre com o acaso tendo um papel fundamental no curso dos acontecimentos – permitiram, em 1618, a união pessoal entre o Ducado da Prússia e Brandemburgo, viabilizado majoritariamente em razão do engajamento do Império no que viria a ser a Guerra dos Trinta Anos. Em 1618, a “idéia” da Prússia e as quimeras do acaso acenavam para a ascensão de um astro que, no século XVIII, ocuparia um major role na mesa de apostas que seria a Europa setecentista.
“Travailler pour le Roi de Prusse”
A história da “proto-Prússia” – ou, se assim o quiserem, a pré-história (Vorgeschichte) da Prússia – nos 83 anos entre 1618 e 1701 é, qual nos séculos precursores, uma afortunada convergência de acasos. Que o Império não tenha esmagado-a na Guerra dos Trinta Anos; que poloneses e suecos não a tenham fatiado na Paz de Vestfália; que a destruição que os exércitos mercenários promoveram em Brandemburgo entre 1618 e 1648 não tenha se alastrado para o leste e chegado à Prússia Oriental: todos são fatores sobre os quais a sorte exerceu uma influência preponderante. A Prússia pós-1648 – o Ducado, pois que o Reino ainda não existia – açambarcou importantes porções territoriais no Reno, e daí em diante assistiu-se a um crescendo de poder que, embora não fosse sempre territorialmente correspondido, era moralmente assimilado. Aquele a quem seus contemporâneos chamaram de “O Grande Eleitor” logrou feitos que a pompa se ocupou de maximizar:libertou a Prússia Oriental da suzerania polonesa em 1660, conquistou a Pomerânia aos suecos na década seguinte e concebeu um projeto de Estado que almejava a coesão territorial da Prússia. Mas que o leitor, inebriado pelos sucessos do Grande Eleitor, não se deixe enganar: a pecha que a realeza européia atribuiu a Frederico Guilherme - O Grande Eleitor - era simultaneamente uma reverência e uma chacota. Seus êxitos foram, de forma inconteste, memoráveis; mas, ainda assim, ele não era mais do que Margrave de Brandemburgo, Duque da Prússia, Conde daqui e Marquês d´acolá – não era, em suma, um Rei. Chamá-lo de Grande Eleitor era, assim, como cognominá-lo de “Grande Anão”. E Frederico Guilherme não foi mais do que isso.
Cumpriu ao seu sucessor – Frederico III, eleitor de Brandemburgo, e, a partir de 18 de janeiro de 1701, Frederico I, Rei “na” Prússia – dar cabo à sua pretensão. A fundação do Reino da Prússia foi, com um mínimo de exagero, uma provocação bem-sucedida, mas aí a sorte já não mais exercia tão fundamental influência. O poder do Imperador, erodido desde 1648, era tosco; a Ordem Teutônica, por mais que vociferasse contra o reconhecimento do novo reino, foi voto vencido; o big deal do jovem Reino da Prússia era, pois, com a Polônia. E, contra todas as expectativas, triunfou. Frederico tinha uma coroa e a palavra “Reino” tinha um que de místico, assim como “democracia” hoje seduz até mesmo o mais roto analfabato político. O meteoro ascendia.
A láurea de Frederico I foi protocolar: ele apenas teve a coragem, e foi agraciado pelas circunstâncias favoráveis, de materializar a vontade d´O Grande Eleitor. Seu filho, Frederico Guilherme I, se empenhou na construção do poder militar em bases domésticas; seu neto, Frederico, O Grande, executou tal poder. Foram, ambos, bem-sucedidos, em contraste com os malogros d´O Grande Eleitor, que tentou viabilizar os dois em um único tempo. E a História pariu a lenda quando o trono austríaco vagou em 1740,e Frederico aproveitou a momentânea convulsão política em Viena para anexar a Silésia à Prússia. Em oito anos de guerra – 1740-48 -, o Rei da Prússia trocou de lado, violou alianças, lavrou paz em separado: levou três grandes potências européias à guerra – França, Áustria e Rússia -, e, ao fim da mesma guerra, nenhuma delas havia obtido nenhum ganho, à exceção da própria Prússia, que manteve a Silésia. Nous avons tout travailler pour le roi de Prusse – “Nós todos trabalhamos para o Rei da Prússia”, lamentou um diplomata francês. A expressão “travailler pour le roi de Prusse” passou a significar, desde então, muito trabalho por nada.
O Grande fez a guerra de novo, e a fez da mesma forma ilustrativa, quase esportiva, com que havia feito em 1740. Frederico conquistou a Silésia aos austríacos e a Prússia Ocidental aos poloneses. A conquista da Prússia Ocidental era perfeitamente justificável, pois precisava de um “corredor” (ao qual o século XX somaria o adjetivo “polonês”) entre a Pomerânia e a Prússia Oriental. Mas, no que tange à Silésia, a Prússia dela não precisava, e com isso Frederico deu cria ao que Haffner chama de “revolução diplomática” na Europa iluminista. Ao imiscuir a Prússia em assuntos pan-europeus, Frederico O Grande deu monta ao dragão: em 1756, ocupou a Saxônia, deflagrando, deliberadamente, a Guerra dos Sete Anos. Tragou contra si a tróica austro-russa-francesa e, uma vez mais, a sorte abraçou seus granadeiros. Bateu os austríacos em Leuthen, os franceses em Rossbach e os russos em Zorndorf, para depois ser sumariamente surrado pelos três. A morte da czarina[4] salvou seu reino, e, em 1763, as potências esgotadas lavraram uma paz, meio “a la Compiègne”, em Hubertusburg. A lenda atingia a maturidade, e o meteoro prussiano brilhava pela coroa de Frederico. Não houve, em nenhum outro período, uma projeção tão gloriosa do Reino da Prússia, fosse para seus próprios súditos ou para uma Europa que, em bloco, não conseguiu derrotar os granadeiros de Potsdam!
Requiem em Versailles
A quase-ruína avizinhou-se em 1806. Após um continuum de florescimento cultural, conversão de Berlim em meca do romantismo, estabilidade geopolítica e crescimento territorial – partilhas da Polônia, anexação do Memel, gracejos territoriais napoleônicos compreendendo a Renânia, Hannover, Hesse-Darmstadt e virtualmente todo o Norte da Alemanha -, a Prússia mudou de lados, declarou guerra à França e foi humilhada em Jena e Auerstädt. Esteve próxima da dissolução (tendo sido poupada pela intervenção do czar Alexandre junto a Napoleão), promoveu reformas políticas, econômicas, jurídicas e institucionais internas, e, em 1813-14, tomou parte nas “Guerras de Libertação” que pavimentariam o caminho para o nacionalismo germânico, e, por conseqüência, a ruína da Prússia. No Concerto Europeu era, nominalmente, uma das “cinco grandes”: mas era, também, uma potência domada, semi-independente, premida pelas contingências da Realpolitik orquestrada por Metternich. Não se tratava mais da Prússia pan-européia de Frederico O Grande, empreendendo guerras por conta e risco e meando todas as pautas políticas do Velho Mundo. Assemelhava-se mais a um Estado paradoxalmente senil, cujo algoz propiciou-lhe seu ápice, e, ao mesmo tempo, guiou-lhe a um suicídio triunfal. A Era Metternich, de 1815-1848, imprimiu aos soberanos prussianos um puritanismo que destoava do desprendimento e do Aufklärung da Prússia de Frederico O Grande. Após 1848, a restauração de Metternich soçobrou e os nacionalismos – o alemão incluído – triunfaram. As guerras de 1864 e 1866, respectivamente contra a Dinamarca e a Áustria, foram um display de poder frívolo, um anseio por glória derradeira, um exército que, ao último instante, massacra seus oponentes para então ruir seus flancos, em exaustão. A guerra contra a França, de sua feita, foi um requiem regido por Bismarck, e a Prússia então implodiu no Império Alemão inspirando a mesma apoteose com que deixou os escombros do Sacro Império Germânico e ascendeu ao firmamento das grandes potências européias. Emulou as escrituras, pois da Alemanha veio, e à Alemanha retornou.
O legado e a tragédia: fazendo justiça à Prússia
É necessário enfatizar: a Prússia morreu. Sua idéia de Estado está vinculada a um contexto em que os Estados eram racionais, e não nacionais. O breve intermezzo entre as guerras religiosas e as guerras nacionais permitiu um século e meio em que a política era um assunto de Estado alheio às massas, e foi nesse ínterim que a Prússia brilhou como uma jóia da razão de Estado. Resta a pergunta: o que vitimou a Prússia? Trata-se de uma indagação não esclarecida diretamente por Sebastian Haffner, mas ainda assim nós é possível concluir, com favorável margem de acerto, as razões de sua ruína: a Prússia tornou-se obsoleta. Se a racionalidade iluminista lhe permitiu florescer, o nacionalismo das massas usurpou-lhe a raison d´être. Em 1740 – início do reinado de Frederico O Grande -, o nacionalismo era um fenômeno desprezível; em 1871, era irresistível. É difícil crer que alguém deseje, sinceramente, seu “ressurgimento” – a Prússia e as idéias que lhe permitiram existir estão mortas, e o que está morto não retorna à vida.
Isso não nos isenta, todavia, de analisar, em retrospectiva histórica, o legado da Prússia, ou, com menos propriedade, o que se convencionou chamar de “Prussianismo”. A Prússia jamais foi uma nação organicamente constituída, a exemplo da França, da Inglaterra ou de Portugal: seu Estado foi um construto mecanicista, uma obra da engenharia política iluminista cujas engrenagens funcionaram harmonicamente por um século e meio. Não havia na Europa setecentista uma única potência cuja administração e burocracia fossem tão eficientes quanto a prussiana, cujo Exército – à época de Frederico O Grande – pudesse ser qualitativamente comparado aos granadeiros prussianos, cuja tolerância religiosa se aproximasse da absoluta indiferença do Estado prussiano em relação aos credos ou que a xenofilia fosse tão latente quanto no reino dos Hohenzollern. No terceiro quartel do século XVIII, um entre cada quatro prussianos era francês, holandês, austríaco ou escocês. À exceção da Inglaterra, a Prússia era o único Estado em que a tolerância religiosa era um realidade prática, com a ressalva de que o Estado prussiano jamais teve um braço como a Igreja anglicana. As terras prussianas jamais presenciaram guerras religiosas e o Estado se detinha na mais absoluta indiferença (um pietismo negativo, por assim dizer) em relação à crença de seus súditos; bruxas eram assadas na Nova Inglaterra e protestantes erm perseguidos na França enquanto a Prússia despontava, qual um corpo estranho, como o Estado mais esclarecido e tolerante de sua era. A aristocracia boçal dos Bourbons saqueava o Tesouro francês e os ingleses arruinavam suas riquezas na guerra contra a França na América, ao passo que a burocracia prussiana executava os comandos do engenho estatal com maestria e austeridade. Enquanto a razão vigiu, a Prússia escalava seus prodígios.
A modernidade a atropelou. Sem par no esclarecimento setecentista, perdeu sua razão de ser na explosão nacionalista do século XIX. Agigantou-se ao ponto de se fundir na Alemanha unificada, e, assim, perder a identidade que nunca teve. Seu ethos foi deturpado para servir à vulgaridade do nacionalismo das massas, e em uma geração o provincianismo deslumbrado da Alemanha guilhermina tratou de incutir na historiografia germânica uma tal “missão alemã” à Prússia, “missão” esta que jamais existiu. Prússia e Alemanha jamais foram entidades compatíveis: a Alemanha foi uma concretude romântica, fomentada pela paixão nacionalista e arrebatada pelo orgulho racial e lingüístico; a Prússia foi uma abstração racional, movida unicamente pela razão de Estado e pelo cálculo mecânico, onde o orgulho étnico-racial jamais existiu (vide a assimilação dos poloneses após a partilha da Polônia e a presença de poloneses étnicos entre os Junkers prussianos) e a língua alemã era tida em tão baixa conta que foi necessário que Bismarck, na década de 1860, vetasse o uso do francês nos documentos oficiais. O período áureo da Prússia é exatamente o de maior debilidade da Alemanha como um todo, e o triunfo alemão em 1871 significou o fim da Prússia enquanto Estado soberano. No instante derradeiro, o propósito, a “missão” à qual a Prússia se dedicou foi, liricamente, o imperativo categórico de Kant: tratar a todos, seja na sua própria pessoa ou nas dos demais, sempre como um fim em si mesmo, e jamais como um meio. Pois bem: o Reino da Prússia foi um fim em si mesmo, que, em seu bojo, estendeu ao Ocidente um dos mais refinados legados político-culturais do Iluminismo. A Prússia, metáfora de si própria, “trabalhou para o Rei da Prússia”!
Legou ao Ocidente a tolerância religiosa, a eficiência burocrática, a disciplina marcial, obras máximas do pensamento estratégico, o ideário xenófilo, a indiferença do Estado em relação àquilo que não o concerne e o dúbio dever ético que cada indivíduo tem para com o Estado e para consigo mesmo. As detrações sobre sua História não procedem – seus vizinhos mais a invejavam do que a temiam. Teve, segundo Haffner, uma “lenta morte”, que se inicia em 1871 e se estende até 1932, quando do golpe constitucional de von Papen contra o governo estadual prussiano de Otto Braun. O ridículo a que Hindenburg se prestou em 21 de março de 1933, ao lado dos nacional-socialistas, serviu apenas para macular a imagem da Prússia e vinculá-la, desonestamente, ao nacional-socialismo. Os que se escoram nessa tese – de que Frederico O Grande e Bismarck foram precursores de Hitler – se prostram à ignorância e se esquecem que desde 1871 o cosmopolitismo prussiano foi degenerando em um provincianismo chauvinista por parte de alguns Junkers, até que antes mesmo da I Guerra Mundial não existisse mais uma “identidade regional” prussiana, em razão da formação heterogênea e mecânica da Prússia. Quanto ao Decreto 46 de 25 de fevereiro de 1947, do Conselho de Controle Aliado, extinguindo o Estado da Prússia e qualificando-o como “um bastião de militarismo e reação”, foi não só a “violação de um cadáver” como uma falta de respeito cínica, superficial e cretina da qual os Aliados – ao menos os ocidentais, vez que Stálin era particularmente afeito a mentiras históricas – poderiam ter se poupado. Desde então a Prússia ingressou, pelo expediente dos tolos, nos anais da história universal como um modelo de autoritarismo, militarismo e atrocidades, o que jamais correspondeu aos fatos.
Se Haffner comete um deslinde, ele diz respeito a uma de suas hipóteses sobre a Prússia. Segundo o autor, a existência da Prússia era perfeitamente dispensável e o mundo poderia ter prosseguido sem ela; noutros termos, ele afirma que a artificialidade do Estado prussiano transcendeu sua própria natureza e se projetou no papel que a Prússia desempenhou na ordem internacional dos séculos XVIII e XIX. Isso não poderia estar mais equivocado: o mundo como ele é nos dias correntes jamais poderia existir sem a Prússia. Os Estados Unidos da América devem parte das circunstâncias que lhe permitiram existir a Frederico O Grande e seu apetite estratégico que deflagrou a Guerra dos Sete Anos, expandiu o teatro de guerra para a América, contrapôs ingleses e franceses e, enfim, arruinou o Tesouro inglês ao ponto deste tentar descontar o prejuízo nos colonos da Nova Inglaterra. A situação desoladora em que a França se meteu após as guerras contra os ingleses na América e contra os prussianos na Europa foi imprescindível à desordem e agitação sociais que pariram a Revolução Francesa, e não fosse a Guerra dos Sete Anos e suas conseqüências, é plausível que a revolução não estourasse em 1789.
Não haveria nacionalismos, Napoleão Bonaparte seria mais um corso ordinário, as ameaças às monarquias não se concretizariam, Karl Marx talvez não tivesse tido tão profícua carreira como intelectual revolucionário, Clausewitz não teria escrito o seu “Da Guerra”, a Alemanha não seria unificada, a I Guerra Mundial não teria eclodido, a Revolução Russa não teria ocorrido, o nacional-socialismo não teria existido,... Guerra Fria entre quem? Os Estados Unidos provavelmente não teriam se tornado independentes em 1776, as colônias luso-espanholas na América não teriam se tornado independentes no início do século XIX (pois que não teria havido as Revoluções Americana e Francesa para inspirá-las), o capitalismo liberal se restringiria às ilhas britânicas, a tolerância e a liberdade política seriam idéias marginais: enfim, o Ocidente é inconcebível sem o papel desempenhado pela Prússia. Que a geração atual e as futuras saibam disso certamente contribuiria para que se fizesse justiça à história daquele que foi o maior espetáculo da engenharia política do Ocidente.
Notas:
[1] Preußen – Geschichte eines Staates. (München: Ullstein Tb, 2001)
[2] Preußische Geschichte 1415-1871. (Goldmann: München, 1985)
[3] Os Wends eram um povo tribalmente organizado que vivia no norte da Alemanha, principalmente na Marca de Brandemburgo. Como os prussianos, foram tardiamente cristianizados.
[4] Elizabeth, que foi sucedida por Pedro III. Pedro nutria uma admiração tal por Frederico, O Grande, que não só lavrou a paz com a Prússia como combateu ao lado desta durante os seis meses de seu reinado. Seu assassinato, em julho de 1762, levou sua esposa Catarina – posteriormente “A Grande” – a preservar a paz com a Prússia, mas também à retirada da Rússia do conflito.