Como os surrealistas, também a vanguarda soviética queria revolucionar a arte de um tal modo que, de longe, ultrapassava uma transformação de forma e conteúdo. O que se almejava era muito mais uma mudança de sua inteira função social. Mas enquanto Breton queria integrar a arte e a poesia no cotidiano, a União Soviética estava a caminho de subordinar a arte à produção. Em ambos os casos, deveriam ser reprimidas as formas de arte burguesas, mas os artistas e teóricos soviéticos enfatizavam uma afinidade da arte com a ciência e com a tecnologia; tentavam ligar a arte à indústria moderna; e exigiam que artistas se tornassem operários ou ‘especialistas’. Beleza, sonhos e criatividade não passariam de conceitos burgueses, vazios. Na nova sociedade soviética, a arte deveria encontrar uma função produtiva para si mesma e, nesta função produtiva, ela até mesmo deixaria de ser arte. “Morte à arte, viva a produção!”
Deste modo, a cientificidade do marxismo ortodoxo e o produtivismo da ideologia soviética pós-revolucionária entraram na visão de mundo do artista militante. O vanguardismo ocidental de Breton ia na direção oposta, impossível de se unir à indústria moderna, antifuncionalista, profundamente desconfiado ante a unidade de materialismo e positivismo e, a partir daí, libertar as qualidades de poetas românticos e decadentes de sua existência sombria para as margens da literatura. A vida deveria ser estetizada, não deveria a arte ser funcionalizada para a produção. (....)
Havia três importantes diferenças entre Breton e Lukács. Primeiramente, o próprio Breton era mais poeta do que crítico, os problemas da práxis, para ele, por isso mesmo se localizaram imediatamente na esfera da arte. Por isso, nele, a postura teórica se achava em conexão direta com o próprio criar. Segundo, como resultado de sua ocupação com a psiquiatria médica, voltou-se para Freud e, ainda antes de conhecer Marx, integrou a seu próprio pensamento elementos da teoria psicanalítica. Numa certa relação, para Breton, Freud desempenhava um papel semelhante ao que Georg Simmel ou Max Weber desempenharam para Lukács. O interesse de Breton por Freud trouxe-o para a psicologia, Lukács veio para a sociologia. Deste modo, Breton leu Marx ou Lenin e perguntou pela consciência, em vez de, como Lukács, perguntar pela sociedade. Em terceiro lugar, apesar do seu hegelianismo, Breton sempre foi pela especificidade e pela autonomia da revolução artística, tanto do ponto de vista intelectual como organizatório. (...)
A lógica da argumentação de Breton parte de que seria tarefa da revolução social superar a restritiva “dependência” das fronteiras econômicas e sociais. Até lá, deveria a arte zelar estritamente por sua “invulnerável autonomia”. Ele nega a idéia de uma arte proletária. (...)
Enquanto escrevia isso, Breton continuava ainda membro do Partido. Só em 1933 é que se deu a ruptura: por causa do seu apoio público a Trotzki, de sua discussão com Aragon sobre a subordinação da arte à política do partido, sua repulsa crescente diante do culto ao trabalho na União Soviética. (...)
Para Breton, eram distintas as teorias marxiana e freudiana, muito embora comparáveis, assim como política e arte – cada qual possui seus próprios objetos e objetivos. Em oposição a Wilhelm Reich ou Herbert Marcuse, Breton tentou a libertação radical do desejo reprimido na organização prática e convencional do comunismo-de-conselhos (Rätekomunismus). Esta migração (Verlagerung) significa também uma mudança semântica no significado da palavra desejo (do inconsciente para o consciente) – uma mudança que permitiu à International Situacionista assumir a palavra de ordem surrealista “Toma teus desejos por realidade”, como o fizeram os enragés de Nanterre (em lugar da suspeita “A fantasia no poder”, do Movimento de 22 de Março). A revolução poética precisa ser a revolução política, e vice-versa, incondicionalmente, e em plena consciência.
De: Peter Wollen: “A bitter Victory”, in: “On the Passage of a few people through a rather brief moment in time: The Situationist International 1957-1972”. Boston 1989, tradução do inglês: Eckhard Kloft. Araraquara, 2001, tradução do alemão: zé pedro antunes