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Ensaios-->OS MISTÉRIOS ARARAQUAROSOS (5) -- 23/10/2000 - 18:47 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
[OS MISTÉRIOS ARARAQUAROSOS chega a seu quinto capítulo. O leitor Leonardo Almeida Filho, em e-mail que hoje me enviou, se diz aflito com a iminência de saber, finalmente, o que terá acontecido na apresentação do espetáculo no Teatro Municipal de Araraquara. Como era desejo nosso e ele muito bem localiza, por trás de todo um aparato teórico incontornável, vivo se encontra o espírito do folhetim, que esta publicação em capítulos pode e deve reavivar. Que os outros leitores possam também, neste capítulo quinto, saber toda a verdade sobre 'o que teria acontecido em Araraquara naquele mês de junho de 1995' (é claro, na trilha sonora aquele tchantchantchantchan indefectível). Boa leitura.

__________________________________________________
(continuação)

Sobre a “Semana Luis Antonio Martinez Correa”


Um dos mais prestigiosos eventos culturais da cidade hoje é a “Semana Luis Antonio Martinez Correa”, que promove artistas locais e que traz para a cidade encenações e work-shops dos maiores criadores teatrais brasileiros, além de promover atividades culturais nos bairros da periferia e espetáculos públicos ao ar livre no centro da cidade. Esse evento trata ainda de resgatar as tradições culturais da cidade, homenageando a cada ano um de seus criadores e fomentando o trabalho cultural em vários níveis. Numa de suas edições, em 1994, foi criado, por exemplo, o Arquivo Histórico Municipal.

É bastante para uma cidade que vive hoje uma vida cultural rarefeita e pouco assistida materialmente, o que aliás não se constitui em exceção no cenário brasileiro. A vida cultural se faz da abnegação e do quase heroísmo de alguns renitentes. O palco do Teatro Municipal, por razões mais do que óbvias, costuma, muitas vezes ao sabor dos ventos políticos do momento, abrigar o que se produz de mais óbvio em nossa produção, peças com nomes consagrados, elencos constituídos de artistas da televisão, enfim, tudo o que satisfaz sua elite bem pensante e auto-suficiente, longe da efervescência cultural que fez de dois de seus filhos uma lenda nacional. Raramente se lêem resenhas dos espetáculos nos periódicos locais. Raramente se ouve comentar algum grande acontecimento ou mencionar sequer uma ida ao teatro. No Curso de Letras da Unesp local, falamos sobre teatro para uma clientela que, em sua maior parte, jamais viveu uma experiência teatral. Quanto aos professores, poucos vivem diretamente ligados à vida cultural da cidade e, por razões que não caberiam no espaço deste trabalho, pouco têm contribuído para o seu fomento. É claro que estamos generalizando. Salvem-se as honrosas exceções.



Sobre a apresentação de Mistérios Gozosos em Araraquara


Neste ano de 1995, dentro da 'Semana Luis Antonio Martinez Correa', foram programadas duas apresentações do espetáculo Mistérios Gozosos, com o Grupo Uzina Uzona, sob a direção de Zé Celso Martinez Correa. É preciso dizer que já se contava como certo um escândalo. A fama de 'porra-louca' do diretor parece ser a única referência sobre ele na cidade, pelo menos a mais próxima de uma unanimidade. No Teatro Municipal ele era até há bem pouco um nome indesejável, com montagens que costumam até mesmo 'estragar' materialmente o teatro . Neste ano, finalmente, a coisa se deu: algo assim como o retorno do filho pródigo, gostariam alguns, ou a visita da velha senhora (essa entidade chamada Zé Celso Martinez Correa), como outros poderiam preferir. Já se comentavam alguns telefonemas anônimos sobre uma peça com sexo explícito, fazendo prever escândalo e confusão, reações indignadas por parte das autoridades e da família araraquarense. Setores do conservadorismo local já se movimentava em torno do pior, que era o que muitos afinal, cada qual dentro do seu horizonte de interesses e de expectativa, ansiosamente, esperavam. Certamente, mesmo as expectativas mais positivas e bem informadas, não poderiam descartar a hipótese bastante provável de mais um “frege”, para usar uma expressão bem antiga.



Sobre o espetáculo


No dia 18 de junho de 1995, um domingo, fomos ao Teatro Municipal de Araraquara para presenciar algo que já se anunciava imperdível, com um sentimento de perda por não termos estado presentes à primeira apresentação, na noite anterior, de Mistérios Gozosos. Chegamos sem saber absolutamente nada do que ocorrera na véspera, sem ter a menor idéia do burburinho e da celêuma criados em torno do espetáculo. Mergulhamos, sem saber, naquele “pântano de salivação” (para usar uma expressão muito hilária do escritor Uilcon Pereira, que hoje vive em Araraquara) em que a cidade havia se transformado.

Naquela noite, a peça já não contava com alguns objetos tomados de empréstimo à Igreja Matriz local (um turíbulo, por exemplo). Depois viemos a saber que os padres, em suas homilias nas missas daquele domingo, haviam veementemente desaconselhado a ida ao espetáculo. Não é difícil imaginar que, no sábado, algumas pessoas possam ter ido ao teatro com um horizonte de espectativas bastante peculiar - crédulo e piegas talvez -, levados pelas promessas do título, esperando algo assim como um auto religioso, um espetáculo instrutivo e comovente. Pode ser ainda que tais espectadores, é o que geralmente acontece, na sua decepção, não tenham resistido até o final, ou, caso tenham-no conseguido, não chegaram a perceber que realmente era disso que se tratava, de um auto, de uma encenação profundamente religiosa, com elementos bastante peculiares da nossa tradição católica portuguesa, cujas festas religiosas, segundo se sabe, incorporavam dados da vida profana como a escatologia e a sexualidade. No domingo, igualmente, não se repetiu a cena da véspera, em que dois policiais, cedidos pela Polícia Militar, entravam em cena para arrastar preso a personagem do santeiro. Enfim, tudo isso viemos a saber depois, através de tantos e tão variados relatos.
No domingo, o que vimos foi um acontecimento teatral belíssimo, que tomou conta de todos os espaços do teatro, instalando um clima de magia e interação, e que, de tão forte, conseguiu espandir o seu efeito para fora do recinto, pelo hall de entrada, pelos arredores, pela cidade inteira.
Estava um pouco aflito, é claro, com a hipótese, às vezes muito próxima de se concretizar, de ser instado a tomar parte na encenação. Já nos idos de 68, eu me assustava com a violência da encenação de Gracias, Señor!, criação coletiva do grupo Oficina. Confesso que nunca consegui ficar muito à vontade diante do assim chamado “teatro de agressão' e diante da possibilidade de ser arrastado para a cena contra a minha vontade. Mas esses são problemas muito pessoais e, se acabaram por interferir na minha fruição direta do espetáculo, nem por isso devem ser levados em conta no momento de proceder a uma avaliação do mesmo. (Sobre isso não consigo ter mesmo nenhuma clareza.)
Foi construída uma enorme passarela, da porta de entrada do recinto até o palco. No meio e acima das cadeiras. Assim, no mesmo plano dos olhares dos espectadores é que as cenas se sucediam, e também pelos corredores laterais, e também pelo saguão do teatro (entrada e saída dos atores que cantavam). Durante as duas horas de duração do espetáculo o espectador era chamado a fazer o possível, movimentando-se (até desconfortavelmente, é preciso dizer) para acompanhar cada momento. No centro e ao fundo do palco foram colocadas duas arquibancadas móveis, para possíveis interessados.
O próprio diretor, atuando como narrador do espetáculo, cuidava de criar tanto um distanciamento crítico, no sentido mais brechtiano da palavra, como uma inevitável (e, num plano bastante pessoal, pelas possíveis conseqüências, até indesejável) empatia. Zé Celso percorria literalmente todo o espaço do teatro, do palco até os fundos, as laterais, caindo às vezes por entre os espectadores, embasbacados alguns, indiferentes e entediados (conforme alardeavam depois) os já iniciados e experimentados nesse tipo de aventura.
Ele dirige o espetáculo enquanto o espetáculo acontece, como foi notado por um dos articulistas do jornal O Imparcial . A direção se torna visível, como se tornam visíveis todos os elementos da encenação. Isso, voltamos a afirmar, cria um distanciamento, mas, paradoxalmente também, com aspirações à empatia. Busca-se, certamente, a adesão do público, o envolvimento para o aqui e agora da encenação.
A música, belíssima, composta pelo próprio Zé Celso e pelo compositor Zé Miguel Wisnik , era executada ao vivo por uma banda e cantada pelos atores, tudo como nos melhores momentos musicais de Brecht e com o clima de magia e envolvimento também dos concertos de música pop.
Zé Celso parece brincar, neste nosso pós-tudo, com a convivência dos opostos: distanciamento e empatia juntos, quase que simultâneos, agora que já vimos tudo, agora que ainda não sabemos nada. Tudo é zero outra vez. Tudo é começo. A peça trata justamente do princípio da nossa civilização cristã, da natividade. Numa das fotos estampadas no jornal O Imparcial, temos a reconstituição do presépio, os atores em círculo, em torno a uma forte luminosidade, um menino que nasce. No início, a voz do narrador anuncia o ano de 1950, quando Oswald escreve a peça (sua esposa, Maria Antonieta de Alkmin estava grávida), como o ano em que a mãe do encenador (no caso, o narrador) estava grávida. Dela nasceria Luis Antonio Martinez Correa. Com isso, o público já começa a ver que está dentro de um acontecimento que vai ocorrer ali, somente ali, naquele espaço emblemático, na cidade da qual o encenador saiu para se consagrar no teatro em São Paulo e ganhar nome também fora do país como encenador de vanguarda. Arte e vida juntos outra vez. Doce utopia de todas as vanguardas.

A natividade mostrada na peça já não é um estábulo, com uma mangedoura, perdido em terras longínquas de um certo oriente. O cenário é o mangue, lugar de degradação humana, de prostituição. Zé Celso contrapõe a virgem, vestida de azul celeste num dos extremos da passarela, e a puta, Eduléia, no centro do palco, lasciva e capciosa, com o seu bordão, com seu chamado: 'Vem, benzinho! Vem!' Entre elas perambula o santeiro, aquele que vive da venda de imagens sagradas. O texto se constrói em cima dessas oposições: profano e sagrado, virgindade e impureza, capital e miséria social, enfim, trabalhando com contradições bastante católicas, bastante brasileiras. Num dado momento da encenação, Zé Celso faz surgir três bandeiras, três santos: São Oswald (de Andrade), São Glauber (Rocha) e São Nelson (Rodrigues), três patronos da arte da compreensão da vida brasileira. O Brasil, que sempre se orgulhou de ser o maior país católico do mundo, aprende com Zé Celso e seu grupo a canonizar seus próprios santos. O mangue produz os seus filhos. O Brasil produz os seus santos. E é inevitável que o espectador prossiga nessa ladaínha, incluindo nela os nomes do próprio encenador - um dos nossos santos ainda vivos, em seu prolongado e homeopático martírio, e de seu irmão Luis Antonio, e de tantas outras vítimas dos nossos atropelos. Para Zé Celso, o teatro sempre foi muito mais do que a mera instituição, que, já falamos anteriormente, para nós nem mesmo existe no verdadeiro sentido da palavra. Para ele o teatro é a própria vida. O engajamento existencial marca todas as suas realizações, em permanente desafio às categorias das teorias defensoras da isenção e da imanência.

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[Nos próximos capítulos, vamos saber o que se disse - e como, e quanto se disse! - do espetáculo, acompanhar a 'recepção reprodutiva' mencionada nos capítulos teóricos iniciais. Se o leitor, naqueles dias, caminhasse conosco pela cidade, até o último boteco do último de seus arrabaldes, o assunto eram (tchantchantchantchan) os MISTÉRIOS GOZOSOS, de Oswald de Andrade, com o Grupo Oficina, sob a direção de Zé Celso Martinez Correa, no Teatro Municipal de Araraquara.]





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