[nota do autor: com este terceiro capítulo, termina a introdução teórica ao relato do que foi a encenação de 'Mistérios Gozosos' no Teatro Municipal de Araraquara em junho de 1995, durante as comemorações da Semana Luis Antonio Martinez Correa, e, sobretudo, do que foi a recepção, inédita e espantosa, desse espetáculo]
Sobre alguns pressupostos teóricos
A Estética da Recepção surge na Universidade de Constança, onde um grupo de estudiosos da literatura decide, dentro de um clima de grande agitação cultural em todo o mundo, e especialmente na Alemanha , incluir em suas análises e interpretações um elemento antes negligenciado pelas teorias da literatura, o receptor (leitor/espectador). Era um momento de grande efervescência intelectual, com uma grande guinada para uma participação cada vez maior das pessoas nos fatos da vida pública. Na Alemanha, principalmente, depois dos horrores da guerra e, para usar uma expressão feliz de Hubert Fichte , “depois dos horrores do pós-guerra”, estudantes e professores se unem para realizar uma reformulação radical da Universidade alemã.
Um outro teórico desse período, Peter Bürger , escreve sua Teoria da Vanguarda (1973), tendo como ponto de partida o fracasso da Revolução Estudantil, vendo nele uma re-edição de um outro grande fracasso, o das chamadas vanguardas históricas, cuja aspiração de união de arte e vida acaba vendo suas (poucas) obras tomando o caminho que menos desejavam, o do museu. Para Bürger, no entanto, esse fracasso traz uma importante conclusão, a de que, embora não tenham conseguido realizar seus ideais, fizeram uma importante contribuição, ao revelar o caráter institucional da arte na sociedade burguesa. Os vanguardistas realizaram, na visão desse estudioso, uma “auto-crítica da arte na sociedade burguesa”
Para Bürger - e isso também parece estar implícito nas teorias de Jauss e de seus companheiros da Universidade de Constança -, o 'engajamento' é um dos elementos-chave para a compreensão da atitude básica dos revolucionários de então: todos eles, já então professores, acabam se engajando nas lutas estudantis e encarando esse fracasso de modo igualmente produtivo.
Tanto a Estética da Recepção, que acabou estabelecendo um novo paradigma para a Teoria Literária, como a Teoria da Vanguarda, com sua mirada marxista e libertária, tirando do fracasso lições para o prosseguimento do mundo, transformaram-se em referências obrigatórias para dois caminhos opostos, que, a partir de então iriam ocupar o palco do debate artístico-literário: de um lado, uma tendência que iria receber a questionável denominação de pós-modernismo, onde prevalece a visão do fracasso das vanguardas e dos ideais libertários, com seu potencial de polêmica vazia e de inconseqüência, com seu namoro descarado com o caminho pantanoso da impotência metalingüística; do outro, a proposta explicitada, entre outros, por Bürger, de uma necessidade de retomada do modernismo, avisando que suas aspirações, apesar dos sucessivos fracassos históricos (o das vanguardas históricas e o da revolta estudantil de 68), ainda se fazem ouvir neste nosso final de milênio: mais liberdade, mais democracia e melhores condições de vida.
Alguns argumentariam que isso nada tem a ver intrinsecamente com a arte. Mas, com a sua visão engajada do papel social da arte, tanto as propostas de Peter Bürger como as da Estética da Recepção defendem uma cada vez mais inevitável inclusão desses elementos ditos externos, não-imanentes, se quisermos chegar a uma compreensão desse panorama vertiginoso que foi a história da arte no nosso século. Nunca antes se sucederam tantos movimentos. Nunca antes se conheceram obras tão fugazes (os dadaistas, os happenings, etc.) e não-obras (muitos dos movimentos da vanguarda e da neo-vanguarda dos anos 60 deixaram uma enxurrada de escritos teóricos e de manifestos, contrastando com a sua, às vezes programaticamente assumida, impossibilidade de produzir obras de arte). Particularmente a Estética da Recepção, com a mudança de paradigma nos estudos literários que foi a inclusão do receptor em suas considerações, apresenta, a nosso ver, um caminho para a superação das visões imanentistas e para a inclusão de elementos antes negligenciados ou comprometidos por um jargão tomado de empréstimo à sociologia. Comprometidos, porque sobremaneira marcados ideologicamente e porque, muitas vezes, tendenciosamente panfletários. Com isso, lançam-se novas luzes sobre um debate tornado inviável entre nós, entre [pretensos] defensores do conteúdo e [supostos] defensores da forma.
Repetindo: a aceitação do receptor como parte constitutiva da obra de arte implica numa conseqüência inevitável e surpreendente: ele, o receptor, traz para o interior da obra todos aqueles elementos antes considerados a ela 'exteriores'. Antes disso, tinha-se como dado, que esses elementos não tinham nenhum interesse para a fruição/interpretação, constituindo-se, isto sim, em entraves e empecilhos até para uma verdadeira compreensão do específico da arte. Dominavam então as teorias da imanência. Para elas a obra bastava-se a si mesma. Privilegiava-se ora o autor, o emissor, ora a obra. Jamais se levava em conta o receptor. A história dos movimentos artísticos ao longo do nosso século mostra justamente uma tentativa oposta: unir arte e vida, sendo, como vimos, o 'engajamento', na visão de Peter Bürger, uma referência obrigatória para a interpretação. Em sua Teoria da Vanguarda, Bürger dedica um capítulo à questão do engajamento, além de propor, como saída para os impasses da discussão entre Adorno e Lukács acerca da arte de vanguarda, uma retomada dos escritos teóricos de Brecht. Este, como se sabe, foi um dos pensadores do nosso tempo a levar mais longe (tanto na prática teatral, como em suas formulações teóricas) a reflexão sobre as relações entre arte e sociedade e sobre o engajamento do artista na transformação da sociedade. A leitura da tese de Kathrin Sartingen (ver acima), entre outras coisas, traz elementos interessantes para esse nosso debate brasileiro, apenas aparentemente antigo e superado.
Obviamente, não podemos nunca perder de vista que o acontecimento teatral, no Brasil, muito difere do acontecimento teatral, por exemplo, na Alemanha, já que estamos tomando como pressupostos teorias nascidas naquele ambiente cultural. Entre nós, o acontecimento teatral é sempre, ou quase sempre, um acontecimento único: para quem realiza ou para quem freqüenta uma determinada encenação. A instituição teatro, no Brasil, praticamente inexiste, se quisermos ir às últimas conseqüências no que tange à aplicação das teorias tanto de Peter Bürger como de Iser ou de Jauss, teorias concebidas num país onde o teatro é uma instituição fortíssima e dona de uma longa e rica tradição. Para nós, fica difícil mesmo compreender, em termos concretos, isso que Bürger chama de instituição teatro, Kathrin Sartingen tem como interesse central justamente as questões surgidas nas diversas transposições culturais, investigando os seus vários caminhos e descaminhos possíveis. No caso da recepção de Brecht no Brasil, na visão da pesquisadora, com ganhos tanto para o ambiente cultural que recebe, e isso nós o sabemos muito bem, como para a própria obra do dramaturgo alemão, atualizada, transformada e revitalizada no ambiente a ela estranho, naquilo que ela chama de ‘uma recepção produtiva’.
(continua)
[no próximo capítulo, a descrição do cenário onde se deu o acontecimento, qual seja, a cidade de Araraquara, no coração da Califórnia brasileira]