Combinaram de se encontrar pontualmente às oito horas na casa do Freitas. O primeiro a chegar foi o Tuba, afoito como sempre.
- Cadê os caras, cadê os caras?
- Ainda não chegaram. Entra.
Entraram na pequena sala de televisão, e a Neide, a mulher do Freitas, levantou-se e, sem dizer boa noite e com cara de poucas amigas, rumou para o quarto carregando no colo a pequena Isabela, de três anos. Não gostara nada daquela idéia de reunião política na sua casa à noite. Por quê tinha que ser lá? Por quê não na casa do Orelha, que mora sozinho? Mas aí o Freitas disse:
- Eu já te disse, Neidinha, que a casa dele fede! Ele não limpa o cocó do cachorro do quintal. E não fala Orelha, é Orêia! Orelha é órgão, Orêia é nome próprio!
- Tudo bem, Azenam, dessa vez passa. Mas a gente ainda vai conversar, ah vai...
Ele odiava quando ela o chamava pelo primeiro nome. Significava que a briga ia ser longa e trabalhosa. Mas agora ele estava mesmo era excitado com a idéia da reunião. Afinal, ele era o líder!
A campainha tocou e o Tuba correu para abrir a porta. Entraram o Orêia e o Cosme. O Freitas desligou a televisão enquanto todos se acomodavam na sala. E, sentando-se na sua poltrona de assistir futebol, disse:
- Bom, pessoal, acho que podemos começar. Conforme a gente conversou naquele dia, no bar do Bituca, todo mundo está muito insatisfeito.
- É, a cerva não tava muito gelada e o provolone tava meio azedo! disse Cosme, mas o Freitas continuou:
- É, também, mas a gente falava da coisa, não é?
- Que coisa, cara? disse finalmente o Orêia.
- A coisa, a que tá preta! A situação, a falta de dinheiro, de emprego, de vergonha do pessoal!
Na semana anterior, no bar do Bituca, eles haviam ficado até as quatro da manhã discutindo bebadamente as questões políticas nacionais: desemprego, leis injustas, taxas de juros, juízes ladrões (desde o futebol até o STF), deputados inescrupulosos, senadores canalhas, governadores corruptos, presidentes ineptos... Botaram todo o mar de lama e podridão que cerca o governo sobre a mesa do bar do Bituca e beberam. Beberam, brigaram, discordando e concordando uns com os outros. Até que no final da noitada, o Freitas, cansado de reclamar sobre as sacanagens que "eles" fazem para ficarem com o dinheiro e o poder, soltou:
- Eu acho que a coisa tá tão preta que a única coisa que resolverá essa situação é uma revolta popular nos moldes da Revolução Francesa, incluindo necessariamente as decapitações.
- Boa, gritou o Tuba. Ó Bituca, traz a guilhotina!
Naquela noite decidiram. Embalados pela cachaça, fizeram um pacto pela Revolução. Trariam bandeiras, apitos e coquetéis molotov para a avenida da cidade, gritando palavras de ordem e xingamentos cabeludos. Aos poucos, as pessoas se identificariam e acabariam se unindo à causa. Milhares na avenida. Com sorte, logo a televisão apareceria. Entrada ao vivo no Jornal Nacional, entrevistas com eles, os líderes do movimento. Em pouco tempo estariam negociando em Brasília. E a primeira reunião era aquela ali, na sala do Freitas.
- Guilhotina! Gritava o Tuba com os pés sobre a mesinha de centro.
Alguém trouxe cerveja pra sala. Recomeçaram a discussão novamente, agora com idéias cada vez mais mirabolantes. O Freitas já imaginava as pessoas usando camisetas com seu rosto, tipo o Che Guevara.
De repente, a porta do quarto se abre e aparece a Neide, furiosa:
- Todo mundo pra fora!
- Neidinha, nós estamos definindo os rumos do país, estamos lutando para o nosso futuro!
- Revolução! Revolução!
A Neide não quis nem saber. Deu um pontapé na mesinha, jogando aquele monte de latas vazias para o alto, enquanto acertava um tapa na cabeça do Orêia. O Tuba, esperto, correu pra fora, mas o Cosme ainda levou um chute na bunda quando já atravessava a porta. Todos fugiram.
Aquela foi a primeira e última reunião da Revolução. Naquela noite, o líder revolucionário Azenan Freitas dormiu no sofá da sala. E no bar do Bituca, o único assunto permitido era futebol.
Renato Cação Cambraia não tem a mínima vontade de acampar com bichos-grilo e discutir política social. beco@netonne.com.br
BECO/A SEMANA, 17/01/03